O Unguento Milagroso

O menino Francisquinho estava debilitado. Uma doença de pele se expandiu pelo seu rosto, começando a fechar um de seus olhos. Nem podia mais brincar de circo, pois era o trapezista. Não conseguia mais trepar na ameixeira: olhava de longe as ameixas amarelinhas. Nas jabuticabeiras, nem pensar; precisava peia para subir nelas. Cada vez que, sem querer, coçava o rosto, gemia de dor. Chorava a toa, a toa....

Mas naquele dia, voltou aos berros pra casa, com o rosto to-do ensanguentado. Havia entrado no galinheiro e lá fora agredido por uma galinha, defendendo sua ninhada. Foi um Deus nos acuda! Água fervida, panos de flanela, água oxigenada, tubos de pomada, tudo se misturou no corre-corre! O pouco de tranquilidade chegou quando, da farmácia, o menino voltou todo lambuzado de pomadas, trazendo um vidro de remédio pra beber de hora em hora.

Nem as rezas e, muito menos, o farmacêutico e o médico ob-tinham sucesso no combate àquela doença que, aos poucos, ia co-brindo o rosto de Francisquinho. Ninguém conseguia descobrir uma forma de minorar a situação. A preocupação aumentava cada vez que um remédio novo era experimentado e não surtia efeito. As plantas oferecidas pelos vizinhos eram logo transformadas em chás que, igualmente, não traziam melhora.

Nas várias visitas, a madrinha dependurava no pescoço de Francisquinho um novo escapulário. Depois, véu cobrindo a cabe-ça e fita vermelha sobre os ombros, se dirigia à igreja e, terço nas mãos, rezava, rezava... Com as mãos postas, olhava para o céu, pedindo ajuda a São Benedito e a São Judas Tadeu, santos de sua devoção. Como promessa, lá em casa, a vela continuava acesa no oratório. Só mesmo um milagre podia curar o pobre do menino...

Compadres e comadres se puseram a cochichar, indicando benzedeiras e mezinhas, pois, diante dos remédios infrutíferos, somente elas poderiam resolver a doença. Na verdade, todo mundo já sabia que havia mesmo muitas doenças que não se resolviam com remédios da farmácia. Começava então o desfile de doenças e de pessoas afetadas, provando a infalibilidade das benzeduras, das infusões e dos patuás. Porém, cada vez que alguém aconselhava a procura de rezas e benzeduras, o pai protestava.

- Filho meu não vai a procura dessas bobagens. Se nem o farmacêutico que conhece todos os remédios vendidos na farmácia, nem o médico, que estudou anos e anos, estão conseguindo desco-brir a doença, que fará um borra-botas qualquer que não sabe nem escrever o nome...

A negra Vitalina, empregada da casa, havia cuidado de Fran-cisquinho, desde seu nascimento. Por isso, se explica seu desespero, diante do sofrimento do pobrezinho, imposto por aquela doença que ninguém conseguia debelar. Mas não podia entender a rebeldia do patrão. Que mal tinha levar o menino pra ser benzido, na casa de Nhá Das Dores? Se reza não faz bem, mal também não faz... O que custava tentar, se nem o farmacêutico nem o médico, com seus remédios e pomadas, conseguiam curar aquela doença que tomava conta do rosto do pobrezinho?

Então, um certo dia, às escondidas do patrão, que não acredi-tava em nada daquelas coisas, Vitalina resolveu levar o menino a um curandeiro que morava no bairro do Moquém. Já lhe haviam ensinado o caminho; era só contornar o morro do Engenho, no bairro da Serra, onde morava seu irmão, e seguir em frente.

Naquele dia, levantou-se mais cedo do que de costume e foi à casa de Nhô Dito Marcelo buscar o cavalo que ele lhe havia prometido, na véspera. Já trouxe arreado e com um pelego na ga-rupa. Disfarçadamente, entrou pelo portão do fundo. A preta Mar-celina já esperava carregando o menino. Com uma das mãos livre, levantou uma pequena trouxa.

- É o virado. Aproveitei uns pedaços do frango que sobrou da janta de ontem.

Ao enfiar o pacote dentro do bornal, dependurado no arreio, estranhou o pelego colocado na garupa.

- Ué, pra que esse pelego na garupa?

Vitalina, mãos na cintura, apontou com os olhos o irmão do menino doente que acabara de pular a janela do quarto dos fundos. Vinha correndo com os cabelos desgrenhados e os sapatos depen-durados na mão esquerda.

- Ué, mas vai levar o Vicente? Pra que?

- Pra ele não contar nada, tive de prometer levar ele também. É um moleque tão enxerido e enredeiro que é bem capaz de sair falando coisas por aí. E vai acabar estragando tudo. Então achei melhor levar ele.

Enquanto Marcelina acomodava o garupeiro, Vitalina ajei-tou-se nos arreios e pôs Francisquinho no colo. Com um aceno de mão dirigiu o cavalo, seguindo pela rua de Baixo. Passou pela igreja de São Benedito e, depois de entrar pela rua da Raia, seguiu a estrada ensombreada pelos bambuzais, escutando a orquestra matinal das cigarras. Respirou fundo o ar gostoso da madrugada e benzeu-se. Seja o que Deus quiser!

Depois de contornar o morro do Engenho, como lhe ensina-ram, olhou comprido a encruzilhada que se bifurcava em duas direções diferentes. Eram duas estradas iguais, mas uma delas, a da direita, tinha uma porteira. Qual delas tomar? O cavalo resfolegava e relinchou baixinho, deixando a dúvida no ar... O sol ainda andava escondido numa enorme nuvem que o vento não conseguia mudar de lugar. Um forte cheiro de mato encharcava o ar da manhã.

A espera não foi muito grande. Um cavaleiro apareceu na es-trada da direita. Apeou para abrir e fechar a porteira e, uma vez na estrada, tornou a montar.

- Bom dia, cumprimentou Vitalina.

- Bom dia, respondeu ele, tirando o chapéu, em que posso servir?

- Me disseram que por estas bandas mora um curandeiro. Mecê, por um acaso, sabe qual caminho que eu tenho de seguir pra chegar lá?

- É esse outro caminho. Por onde eu vim é o caminho da fa-zenda do Major João Alves. Mas, que mal lhe pergunte, qual o curandeiro que a senhora procura?

- Me disseram que por estas bandas tem um curandeiro mui-to bom, mas não me deram o nome dele...

- Logo na descida do morro, mora um preto de nome Sebas-tião. Vá ver que é ele o curandeiro que procura.

Depois dos agradecimentos, os dois se despediram e Vitalina puxou a rédea, levando o cavalo pela estrada indicada pelo cavalei-ro. No final da descida do morro, logo numa curva, saía da estrada um caminho estreito e sinuoso. O cavalo parou e, resfolegando mais uma vez, relinchou baixinho novamente.

Vitalina aproveitou a parada para cuidar do menino que, desde que saíra de casa, não parava de soluçar. Passou, bem de leve, um pano úmido sobre a ferida. Ao mesmo tempo, desentrou-xou o virado. Comeu pouca coisa, pois toda aquela afobação lhe tirara a fome. Francisquinho, todo choroso, não comeu quase nada. Só Vicente se lambuzou da gordura ainda morna que encharcava a farofa e vertia nos pedaços de frango.

O sol já andava alto queimando as franjas das árvores e der-retendo o orvalho disfarçado nos melões-de-são-caetano, dependu-rados na cerca que margeava a estrada, quando Vitalina parou o cavalo diante do casebre plantado no meio da roça, rodeado de coqueiros. Nas janelas e portas dependuravam-se os mariôs que apontavam pela presença dos Eguns. No terreiro um cachorro latiu. Ainda em cima do cavalo, Vitalina gritou:

- Ô de casa!

Um preto, já com fios de cabelos cor de cinza na carapinha, apareceu à porta, ralhando com o cachorro.

- Boa tarde, em que posso lhe servir?

- Por um acaso, mecê não é o curandeiro que chamam de Se-bastião?

Depois que o preto assentiu com um meneio da cabeça, apre-sentou o menino todo assustado.

- Eu trouxe este menino pra mecê examinar.

Apeou-se, deixando o menino sentado no arreio, retirou o freio da boca do animal e deu-lhe água tirada da cacimba. Enquan-to o cavalo ficava pastando o mato ralo, entrou pela porta da frente, com Francisquinho ao colo, subindo dois degraus de tábuas soltas. As folhas de coqueiro que cobriam o casebre tornavam o ambiente mais ameno e fresco. Vicente, que veio logo atrás, ficou admirando aquele ambiente onde se descobriam o xaxará de Omulu, o macha-do de Xangô, a espingarda de Oxossi e os brinquedos de Oxum...

Quando colocou Francisquinho em cima de uma mesa en-costada na parede, Vitalina parecia despertar de um sono repentino. Logo, retirou o xale da cabeça e, diante da insistência do curandei-ro, limpou a garganta.

- Vive chorando à-toa, coça tanto a ferida que chega a san-grar, já bebeu e passou tanto remédio que é até judiação. Não, não, ninguém ainda benzeu o menino porque o pai não deixa. Já, já, primeiro foi o farmacêutico que tem farmácia na cidade e depois o médico que mora na cidade vizinha. Como a ferida não dá sinal de melhora, resolvi, então, trazer o menino. É, é, eu soube por Nhá Das Dores, a comadre de meu patrão. Ela é benzedeira, mas não quis benzer o menino porque a reza dela não faz efeito sem o con-sentimento do pai. É, é, o pai não quer nem saber de rezas e benze-duras e não acredita em curandeiros. A mãe, coitada, é professora. É, é, fica na escola de manhã, até meio dia e à tarde lida com um mundo de crianças que vão lá em casa pra aprender melhor e fazer bordados. É, é, cuida bem do menino, sim, mas não pode fazer nada, pra não contrariar o marido.

Vicente, atento à conversa, aventurou um risinho maroto.

- Ela veio escondido do pai...

Vitalina esbugalhou os olhos e resmungou uma censura qualquer. Enquanto forçava Vicente a sentar-se numa tripeça, vol-tou-se para o curandeiro.

- É, é sim, eu vim escondido dele. Não tinha outro jeito.

Vitalina calou-se. Lá fora, o vento balançava o milharal e pa-recia enrolar as folhas das bananeiras. Algumas nuvens se forma-vam lá pelas bandas do morro.

O curandeiro, cabeça baixa e olhos fechados, ouvia tudo pa-cientemente. Quando Vitalina parou de falar, ele levantou-se deva-gar e achegou-se ao menino choroso, estendido sobre a mesa. Com resmungos misteriosos e incompreensíveis, numa evocação aos orixás, após passar de leve as mãos por aquela casca grossa que cobria o rosto do menino, dirigiu-se à cozinha.

Enquanto Vicente balançava os olhos, arregaladamente buli-çosos, um forte cheiro de incenso e cachaça, misturado com fuma-ça de cachimbo, invadiu a sala, ao mesmo tempo em que se escu-tava uma surda cantiga, acompanhada com bate-pé. Depois de alguns minutos, Sebastião voltou com os olhos sorridentes.

- É impinge, e das brabas! Mas ele vai melhorar. Volta daqui uma semana, na mudança da lua.

Vitalina não olhou para trás. O sol já começava se esconder atrás do mato que rodeava a lagoa de Virgilio Capitão. O cavalo resfolegava e relinchava alegre como que adivinhando a volta para casa. Quando contornou o morro divisou a casa do engenho. Um cheiro gostoso de melaço umedecia a boca. Não custava nada dar uma chegada para abraçar o irmão. Vicente esfregou as mãos e abriu a boca num sorriso enorme, só de pensar que ainda podia levar melado, pra comer com farinha.

- Hôa! Hôa!

Tifano, puxando as rédeas, parou as duas bestas que tocavam a moenda e sorriu ao ver a irmã amarrar o cavalo no mourão da porteira. Abraçaram-se e conversaram por alguns minutos. A uma ordem de Tifano, o moleque que mexia a garapa descansou a pá ao lado do tacho para ir buscar o litro de melado que acabara de sair. Veio também uma garrafa de cachaça para o compadre Tonico.

- Nem um café?

- Não, não. Eu sei que a pressa é má conselheira, mas preciso de chegar logo, se não vão desconfiar da minha ausência alongada. Até de repente e Deus lhe pague.

O cavalo ainda teve tempo de beber água do coxo que ficava ao lado da porteira, enquanto Francisquinho e Vicente se lambuza-vam de garapa.

A tarde se esparramava pelas sombras dos coqueiros e co-meçava a subir o morro. Bem no alto um gavião rondava embalado pelo vento. As cigarras alongavam, com seu canto modulado, uma tristeza enrolada nas sombras que as árvores arrastavam pela estra-da. Os ruídos da boca da noite se espichavam pelo mato e se dis-persavam nas águas barrentas da lagoa.

Enquanto isso, aproveitando o sereno que o frio da tarde co-meçava a recompor, Sebastião se pôs a esquadrinhar o mato que beirava o riacho, em busca de ervas. Todas elas eram bem conhe-cidas. Mesmo assim, para selecionar as folhas, amassava-as com os dedos e as cheirava com força. Com um punhado delas nas mãos, voltou para o casebre. Então, colocou as folhas amassadas numa panela de barro e derramou, sobre elas, água fervente. Em seguida, misturou as folhas espremidas e trituradas com gordura de porco e óleo de capivara, formando um bolo verde escuro.

Na troca da lua, Vitalina estava de volta. A presença de um sol indeciso desenrolava um frio molhado que acinzentava a ma-drugada. As rédeas soltas no pescoço, o cavalo parecia adivinhar o caminho. Até o sol, escondido nas nuvens que desciam do morro, amenizava o calor que se derretia na sombra dos coqueiros. No caminho, não precisou parar nenhuma vez para cuidar do menino. Parecia mesmo só um passeio... Desta vez, não sobrou nada do virado, mesmo porque o apetite voltara para Francisquinho, au-mentara para Vicente e a angústia e a apreensão da primeira vez desapareciam do rosto úmido de Vitalina. A benzedura já estava surtindo efeito. Francisquinho se comportava de maneira diferente. Já não chorava tanto. Já começava a brincar com outras crianças.

Vicente chegou perto da janela. Lá fora, as sombras dos co-queiros brincavam pelas frestas da cerca. Com um sorriso maroto, parecia encantar-se com o vento que fazia ciciar as palhas desfia-das de palmeira, dependuradas na janela.

Enquanto Vitalina colocava o menino na mesa, tirando o lenço que lhe cobria a cabeça e o rosto, o curandeiro chegou tra-zendo um unguento de cor verde escura, embrulhado em palha de milho. Depois de passar a mão pelo rosto do menino, balbuciando suas invocações, fez as suas recomendações.

- Passa três vezes por dia na ferida inteira e, invocando O-gum (o orixá que protege o menino), tem de repetir três vezes: O que é mesmo que eu corto? É impinge. É isso mesmo que eu corto. E, aí, vai passando o unguento no rosto inteiro e esfregando deva-gar, bem macio, com a ponta dos dedos.

Na primeira segunda feira de cada mês, por três meses se-guidos, obedecendo às ordens do curandeiro, Vitalina voltou a fazer a mesma visita. Em todas elas, Sebastião fazia suas benzedu-ras, passando a mão de leve pelo rosto do menino. De todas as vezes ela trazia o unguento, embrulhado na palha de milho, com as mesmas recomendações.

Na última visita, a impingem já estava localizada somente atrás da orelha. O rosto ficou com a pele muito branca e fina. Aca-bou-se o choro. Já podia dormir de lado. A fronha do travesseiro não carecia ser trocada todo dia. Sem aquelas preocupações, a tranquilidade descia sobre a casa, assustada durante tanto tempo. A passarinhada havia acabado com as ameixas. Mesmo assim, pela primeira vez, depois de tanto tempo, Francisquinho conseguira trepar na ameixeira!

Quando a impingem sarou de vez, todos cobravam, para si, o sucesso alcançado e defendiam, confirmando suas convicções.

O pai elogiava os remédios recomendados pelo farmacêutico ou receitados pelo médico, exaltando os avanços da ciência médica.

Na igreja, a madrinha se benzia diante de São Benedito e São Judas Tadeu, agradecendo aos santos de sua devoção. Em casa, a vela continuava acesa no oratório, como testemunha viva das graças do milagre alcançado.

Vicente ouvia tudo com o sorrisinho maroto de sempre. Mas teve de cumprir a promessa de não contar nada pra ninguém. Como tinha fama de tagarela, havia algo de estranho naquele seu mutis-mo, no meio de tanta algaravia. Quando lembrava de alguma coisa, disfarçava, olhava distraído para o chão, fazia uma cruz na boca com os dedos, porque toda vez que tinha vontade de enredar, escu-tava sempre a ameaça de Vitalina: “Se falar alguma coisa, uma coisinha só, mando o preto Sebastião capar você!” E assim, para surpresa de todos, continuava mudo...

Naquela tarde de inverno, olhando Marcelina a baforar no seu pito de barro, permanentemente dependurado em seus beiços caídos, Vitalina aconchegava o menino no colo, A mirar as som-bras derramadas no terreiro, somente ela sabia que Francisquinho havia sarado, graças ao unguento milagroso do curandeiro e seus orixás!

carlosmorais
Enviado por carlosmorais em 02/06/2012
Código do texto: T3702002