Uma Tragédia Sertaneja, em Três Atos

E lá ficaram, arriados, proseando à sombra do velho Juazeiro.

Tudo em roda era seco e esturricado. Só o sábio Juá ia substrato adentro, bem fundo, sondar água em solo lunar.

- Arrepare, Ontôi! qui isso, ansim, estupora!

- É bicho-de-pé? Vixe! Benza nossa sinhora!

- É. É uma cocêra funda, qui num passa...

Com a faca, tirava finas lascas da vara de marmeleiro, a fim de espetar o bicho, de jeito.

- Lambe! lambe o palito, premeiro, Manel, pro mode tirá a reima! Tem qui lambê sete vêis, começando por de baxo e adispois arrevesando.

E punha o dedão para cima. Um bodum que fez o companheiro arrepanhar as ventas!

- Arre égua, ômi! Vê isso: inté parece casca de tangirina. Tudo fofo, amulegado!

- Tem qui arregaçá a pele, mas sem matá o bicho, senão nasce ôtros, aviu?

E enfia a ponta chupada da lasca embaixo da pele encaroçada. Era uma dor boa! Abrupto, salta a cápsula com o coisa dentro. A ponta da faca arremete no barro e estraçalha a larva.

- Disinfiliz! Agora, vô tê qui esfregá limão e ponhá cinza nessas parte catinguenta!

Uma vaca magra muge adiante. Um mugido fraco, de condoer-se, como lastimando o novilho recém-parido. Houvera-o perdido para os urubus. Estes esvoaçavam e lhe queriam também o couro.

- Avista lá, Manel, os urubu arrudiando!

- Parece uns esprito! Num minuto eles vê logo qui o alguém dexô de andá. Vem estalando o bico a abrindo as asa, cuns pinote de alma penada. E se achega de perto e dispacha as visita, qui a fome dá atrivimento!

- Vala-me, deuso! E num existe cabrunquento qui num tenha medo de urubu! Aquele bicão, ansim, todo esticado puxando os fato do morto e engulindo tudo, calado!

- Ocê se alembra da Binidita, Ontôi? Aquela, do finado Onofe, qui o povo encontrô pras banda do lajêro, cum bucho arreganhado, de minino? Deve de tê sido uma festança! Dizem qui os urubu cumeçaru pelo minino, arretirando o inucente de lá de dentro, se achando de partêro!

- As gente toda dizia qui tinha sido o Onofe, adispois de sabê qui a pustema andava enfeitando a cabeça dele cum cabrão qui andava por cá, galego dos lado de Canindé de São Francisco, vendendo umas chita e umas miçanga pras moça. Um cumpade tinha alertado: quando vortava da roça, tardinha, vistô os dois por debaxo dum pé de pau, numa agarração saliente! Viu aquilo e ficô de cóca, pastorando atrás duma Jurema. A rapariga lá, cum a saia subida e o bichão em riba dela, num resfulêgo qui só vendo!

- Coitado! Morreu de disgosto e de remóço, dizem! Só se via bêbo, pela aí, caído nas mata... Num quiria mais labutá, num quiria mais nada, nada!

- Ai, ai... tão moço, inda, Manel!... e foi sê corno, o coitado!

E nisso, um silêncio reverente soprava com um vento morno que descia dos outeiros queimados de sol. Só se viam reluzir as puas das pedras enterradas nas encostas. Era um rescaldo. Tudo abrasava.

- Boas tardes, dona Carmesina! - disse Manoel. Era a mulher de Antônio que passava ali, guarda-sol aberto, com um filho no colo e outro ajuntado à barra do vestido, seguro pela mãozinha esquálida - medo de apartar-se da mãe no caminho.

Carmesina era uma mulher de seus dezessete anos. Nem bem tinha peito, aos treze casara. Quem agora a visse dava-lhe uns trinta, pouco menos - são as muitas gestações, a peleja e a fome que dão feições às sertanejas.

Tivera quatro filhos, seguidamente. O primeiro, prematuro, matou-o o Barbeiro, chagado. O besouro se proliferava naquelas taperas de barro batido. Em tempo eleitoreiro apareciam uns agentes sanitaristas para a desinfestação. Vinham da cidade. De nada adiantava. Os prefeitos prometiam enviar tijolos, areia e cimento para reconstruir as casas. Passada a eleição, passado o povo.

O terceiro, sucumbiu-lhe mesmo a fome, por ocasião de estiagem, tal esta. E vingaram, em par, esses que por ali passavam, nela escanchados.

A despeito das mazelas, ainda tinha o corpo rijo - um tanto minguado, é verdade -. A face, repintada dumas manchinhas de sol, guardava uns raios de graça. Sua pele não era de todo baça. Braços e pernas trigueiros tinham um lustro da carnaúba. O púbis, avultado de pêlos, sobressaía naquele vestido de domingo, apertado. Vislumbrava-se alguma forma. As nádegas não eram grandes, mas ressaltavam na estampa translúcida, amoldadas.

- Boas tardes, dona Carmesina! - E ela, apartando dos olhos o cabelo endurecido do pó, retesa-se e dá um sorrisinho desconfiado de amarelos dentes, acanhada.

- Adonde tu tava, disgramada? - vocifera Antônio, olhando de viés o compadre.

- Fui na casa da mãe, ômi! qui num temo farinha pro angu das criança, se isqueceu?

- Apois! É marchá direito pra casa! E eu vô já, aviu?

Prossegue a desgraçada, apalermada com os berros. Ia trotando, mula ciosa; as calçolas de algodão a entrar-lhe. E aquela bunda, bundinha, refregar de parcas ancas, parecia mandar beijos sobre quem a visse.

Manoel colhia esses beijos...

A conversa sobre o pobre Onofre deixara aturdido Antônio. Sentia da mulher um ciúme atroz. Achava, obrigações de macho, que devesse cobrir a sua fêmea quase diariamente, estivesse ou não de regras, meses de barriga, quisesse a ele ou não.

Chegava do roçado. Ralhava logo ao mais velho. - Fosse para o terreiro!

Fechadas porta e janelas, apoderava-se dela onde esta se achasse. E era ali mesmo, ao pé do fogão de lenhas, ou da mesa. Tomava-a de costas, porque não admitia que se lhe olhasse nos olhos. Abria a braguilha e empurrava, inopinado, seco, como quem maneja o cabo da enxada em leiva de favas. A miserável agüentava, mordendo os lábios, até que o bicho se aliviasse. Às vezes escapavam-lhe uma ou duas lágrimas.

- Muié minha, seu Manel, é no fundo de casa, co'os minino e as trôxa pra lavá! Por causo qui foi pra isso qui deus nosso sinhô fez as muiéres! Onofe fez é bem de tê comido na faca aquela puta reles! Morreu corno, mas morreu honrado! Se fosse cumigo, eu passava todos dois desavergonhado no legume da minha pexêra! Inda arrancava um cunhão do fi-duma-jega e ponhava na boca dele, antes de achegá os urubu!

Havia um rubor na cara do homem. Tremia. Evitava olhar na direção de Manoel. Este, por fim, achou por bem despedir-se a pretexto de tomar um trago em bar do Zózimo, pertinho. Iria depois recolher-se - amanhã é dia de lida!

O Aracati principia soprar...

Mal pôs o pé no copiar e foi logo aferrando bruto tapa na mulher. Achava-se ela sentada no batente, dando mamar ao menor. A boca tingira-se. Desatou a chorar um choro grunhido. Mas não disse nada.

- Carmesina!

O outro moleque estava já no terreiro. Ela entra. E sabe para quê.

Ele a possuiu da maneira como fazia, quando o transtornava o ciúme. Nessas ocasiões não o contentava o coito costumeiro. Enfiava-lhe com a violência das bestas, em parelha. Desejava humilhá-la, submetê-la. Dele a prerrogativa, o destino e o poder.

E a tarde findou dolorosa.

A noite súplice foi encontrá-los empoleirados nas redes, já. Mas cada um no seu canto.

O Aracati é tênue, agora.

Carmesina olhava os caibros do telhado. Balançava-se, a perna caída. Tinha uma expressão dura e resoluta.

Antônio roncava havia três quartos de hora. Sono ferrado.

Levanta-se, calculando o passo. Busca a pedra de amolar, o pano de coar café. Põe dentro. Volta, devagar.

Parando diante de Antônio, a boca aberta pareceu a ela aqueles sapos imensos fazendo corte à lua, gutural, cantando nas beiradas da lagoa.

Gira o pano três vezes, para tomar impulso. Antônio nem grita... Teve o crânio rachado. Sob a rede o sangue coava-se, muco pardacento.

Apanha os meninos; a muda de roupas no bornal.

Manoel esperava no sereno da noite.

2007, 4 Fev