"...E dormiu com seus antepassados..."

Aquela surrada cadeira de balanço, presente que veio de um amigo da sua mocidade, que fabricava móveis e os vendia na sua loja ao lado da igreja, foi o que restou do início de sua vida ao lado da sua bem amada.

Balançando preguiçosamente em monótono vai e vem, ele cochilava e se envolvia em doces lembranças. Surdo que era nem notava seus bisnetos em partida acirrada de truco.

Algumas crianças a correrem no amplo quintal, talvez a quinta geração da família, conseguiam, ás vezes, tirá-lo da letargia em que se encontrava.

Quase não sentia as moscas que teimavam em pousar em seu rosto, seu tato não era aguçado naquelas alturas da vida. Levantava molemente o braço e fazia menção de expulsa-las, mas, era sem efeito dada a rapidez dos insetos.

Histórias tinha muitas sem contar, outras insistiam em se tornar repetitivas, bem como as músicas que ainda trazia na lembrança.

“O leva eu.... Minha saudade.... Eu também quero ir.... Minha saudade...

Outras, quando cantava, com voz titubeante e cansada, as lágrimas afloravam na sua face entristecida de saudade.

“Olhando teus lindos cabelos... Que a neve do tempo marcou... Eu trago em meus olhos molhados... A imagem que nada mudou...”

Nem mesmo se lembra de quando ouviu pela primeira vez, mas de alguma forma marcou a sua vida. E não se esquece dela quando comemorara seu vigésimo quinto ano de casamento. Casara-se aos 19 anos ele, ela com 18, em meados de 1.930.

Sente ser tocado e abre os olhos, Sua neta a lhe trazer o remédio forte que o trata contra o mal de Auzheimer. Sorri a ela docemente e vê a face de sua amada estampada no rosto da menina. Outra lhe traz um pedaço de delicioso bolo e lhe diz forte no ouvido: “Feliz Aniversário, vô!” Mas aquele moço que parecia ser o marido lhe diz que o Matusalém é mais surdo que uma porta...Em seus noventa e tantos anos!

Paciência. Saboreando lentamente o bolo tenta saber onde estaria sua amada que tempos não vê. Na sua insanidade, se lembra às vezes que ela se fora em 2005, às vesperas de suas bodas de diamante.

Vô! Venha pra cá! Vô, quer mais bolo?

Então ouve finalmente: Vem comigo...

E os dois deram-se as mãos e caminharam no vasto quintal entre as as flores e folhagens que ela plantara a pouco tempo. Rejuvenescidos se olharam, dançaram, se beijaram, e com acenos de adeus partiram...

Na cadeira de balanço seus braços se deixaram cair, o bolo no chão e a alegria em seus olhos semi-abertos a fitar a imensidão dos céus...

“Et dormivit cum patribus suis..."

Paulo de Tarso
Enviado por Paulo de Tarso em 05/02/2007
Reeditado em 26/08/2009
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