Amor de giz: Ela

Rosto de menina com olhar de musa, experiência de aprendiz num corpo de mulher, gestos tímidos, andar cadenciado, fala mansa quase sussurrada, boca úmida, lábios afrodescendentes. Ela é bela, displicentemente bela, discretamente culta, para não ofuscar a vaidade do homem. Sua aparência chama à atenção mas ela finge não, ver-se menos metonímia, mais metáfora. Muitos predicados e igual quantidade de solidão. Desilusões, amores desfeitos, erros e acertos tantas vezes repetidos se tornaram massa falida. Não desistiu. Como nas guerras, optou pela saída estratégica. Julgou que outros afazeres, um novo rumo à carreira, mudar de cidade e o retorno ao lar paterno fossem bons conselheiros. E foram, por um tempo, mas a independência já conquistada exigia respeito dessa adolescente temporã. E ela tornou à vida adulta. Outro emprego, novos desafios. A luta pela sobrevivência não lhe deixaram ver que crises de choro repentinas tinham uma razão: vazio. O tempo passa, desafios vencidos, amigos adquiridos, nenhum romance. Ela agora afirma que isso não a atrai mais. A boca sentencia, o corpo silencia, a alma adoece. Trabalha dezesseis horas com o firme propósito de anestesiar o óbvio, a dor. Numa tarde, sem qualquer explicação, desfalece. Diagnóstico: Anemia crônica provocada por diversos tumores ovarianos. Pusera a natureza em suspenso para priorizar a ascenção social e quando começa a ser reconhecida o tempo cobra seu descaso. Tecnologia de ponta e médicos taxativos: Seu corpo não conseguia mais esperar, a maternidade tinha prazo de validade e no seu caso era de apenas um ano.

Uma crise moral instala-se. Gerar um filho por apelo consumista? Afinal, deveria ser diferente de comprar uma batedeira nova? Sem marido? Ela mesma havido sido concebida de uma união madura... . Como negar um pai a uma criança? Ela queria verdadeiramente aquele imprevisto na sua vida? Precisava pensar melhor, escolher mais, mas não havia tempo. Meu Deus, um namorado ou paquera, nada. Seus amigos e até sua ginecologista diziam: “Arranje um caso, engravide e pronto! No futuro, terá uma companhia para a velhi...ce”. Não havia completado quarenta anos e falavam como se a senilidade fosse uma questão de meses.

E agora, quê fazer?

CONTINUA...

Arsenia Rodrigues
Enviado por Arsenia Rodrigues em 08/02/2007
Reeditado em 26/06/2008
Código do texto: T374268
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