Declaração de Amor Num Almoço

Eu estava casado com ela há mais de vinte anos. Nosso amor permaneceu o mesmo desde o dia em que eu coloquei naquele dedo raquítico a minha aliança banhada de ouro e fizemos o juramento perante o padre.

Bem, aquilo era apenas uma formalidade. Um casamento tradicional na igreja era tudo o que minha esposa queria. Então, mesmo não sendo adepto de nenhuma religião, aceitei o casamento numa igreja católica. Uma das faculdades mais afiadas do ser humano é a de fingir. Era só falar aquelas frases como um juramento e pronto. Estava casado, com a mulher que amo e fazendo-a feliz, realizando seu desejo.

Vinte anos se passaram e eu me considero feliz na minha escolha. Vejo poucos casamentos assim por aí. Hoje em dia é uma confusão só.

Por isso que quando alguém vem me pedir conselho sobre casamento, eu sempre digo: “case”. Ele me pergunta, sem entender (pois todos os outros disseram-lhe o oposto): “por que?”, e eu respondo: “com a pessoa certa.”

Ele me questiona que não acredita nessa baboseira de pessoa certa, que é apenas um romantismo besta. Eu concordaria com ele se não tivesse conhecido uma.

Então eu começo a contar os pormenores da minha feliz e satisfatória vida conjugal.

Conto-lhe da nossa cumplicidade, do nosso conhecimento mútuo. Talvez nem minha mãe me conheça tão detalhadamente como minha mulher. Às vezes prediz o que eu vou fazer, como, por exemplo, uma reação perante alguma coisa. E eu adoro quando acontece isso.

Eu também a conheço profundamente. Chegamos àquele nível onde apenas um olhar conta tudo. Olha-a no fundo dos seus olhos e consigo sentir o que ela sente. Às vezes palavras são desnecessárias, apenas um abraço vale. Ela sabe minhas iguarias preferidas e eu as dela. De quando em quando eu chego em casa com um pouco de mortadela, que ela adora. Minhas preferências são variadas. Adoro galinha, mas troco vários pedaços do peito pelo coração dela.

Sempre declaramos nosso amor um ao outro. Nenhum de nós é como aqueles que amam e calam.

Mas, dentre todas as declarações de amor, nunca senti nenhuma como aquela naquele dia ensolarado de quinta-feira. Foi de uma sensibilidade e espontaneidade incríveis! Ainda sinto um arrepio quando lembro.

Tinha chegado do trabalho, como sempre, para almoçar em casa, morto de cansado e um pouco estressado. Sabe como é fim de mês, pressões por parte da empresa, dos clientes, dos fornecedores, enfim, de toda essa cadeia capitalista ridícula e sem sentido que me faz perder verdadeiros momentos entre as pessoas que amo para que, só no fim, eu perceba que minha vida passou que eu nem senti.

Portanto, tudo que eu queria naquele pouco tempo que eu tinha em casa, era comer uma comida deliciosa e descansar um pouco.

Sentei à mesa, falei com as crianças (duas meninas, de dez e doze anos), dei um beijo na minha esposa e comecei a fazer o meu prato. Estava morto de fome.

Prato do dia: uma galinha, daquelas que só minha mulher consegue fazer, um molho delicioso ao redor e as partes do que fora outrora uma galinha.

Coloquei um pouco de arroz, mas a galinha estava longe de mim, então pedi ajuda a ela.

Minha mulher ficou mexendo e remexendo com a colher nas entranhas daquela fúnebre galinha, procurando alguma parte especial. Achou-a.

- Querido, guardei o coração especialmente para você. Tome, é só seu.

Ouvi aquela frase, olhei para colher carregando o seu coração molhado de molho, olhei para os seus olhos e percebi tudo. Coloquei-o no meu prato.

Comi aquele coração com gosto!

E como estava saboroso!

O da galinha.

Mas o dela também.

André Espínola
Enviado por André Espínola em 09/02/2007
Código do texto: T374488
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