Pepe Peçanha (junho de 2012)

As pessoas na rua e na sacada dos pequenos edifícios punham-se a admirar o cortejo com pouca atenção. Havia uma senhora boquiaberta em uma sacada, mas o que pareceria ser um segundo de surpresa, no outro se desfez em um demorado bocejo lacrimoso. Era como se o ocorrido já tivesse sido anunciado antes, muitos anos antes. Pouca gente aparentava surpresa.

Terminaria assim, com um cortejo simples formado por pessoas muito simples e que pouco tinham em comum com o defunto – um advogado de sucesso – em uma oportunidade única para demonstrarem suas qualidades cristãs. Apenas um ou outro trajava preto, mas é que pouca gente encontrara, no fundo do armário, um terno velho. Eram pessoas boas e pobres.

O corpo ia em um carro funerário aberto, que acompanhava o ritmo das pessoas, bem devagar. Acomodado em um caixão de madeira avermelhada, era carregado o corpo de Pepe Peçanha – Giuseppe Peçanha de batismo – através das ruelas do bairro em que vivera sua vida inteira. Não havia choro, mas sim um silêncio tão respeitoso que podia até despertar o riso.

Pepe Peçanha morreu. Morreu e não deixou herdeiros. Sua morte já era morte há muito anunciada, do tipo que não resta sombra de dúvidas: mais dia, menos dia, batia o defunto as suas botas e lhe abotoariam o paletó de madeira. Foi morte matada; morte de um só tiro que lhe resvalou o corpo através do golpe certeiro no alvo – um tiro certeiro no coração.

Advogado de bandido morre cedo, assim dizia a sabedoria popular: “Bandido perto, bandido certo.” Mas Pepe Peçanha não atentava para essas histórias. Era advogado defensor de uma das duas famílias beligerantes, conflituosas (e criminosas), da pequena cidade nordestina de Jerimum – amealhando como inimigos todos os integrantes da outra família – a rival.

Recebeu um recado por correios, um dia, em que letras graúdas lhe juravam vingança. Era da mesma forma que diziam vingar com morte a todos os membros da família defendida por Pepe. O conflito que dava origem a todo ódio e ressentimento entre as duas famílias dizia respeito, principalmente, à delimitação das propriedades rurais das duas famílias em guerra.

Jurado de morte desde o primeiro mês de trabalho com a família dos Gonçalves Barbosa, Pepe Peçanha tomava parte em uma tradição na pequena localidade, onde todos os advogados que viessem a salgar o assunto dos limites de fazendas dos proprietários da família Gonçalves Barbosa (ou igualmente, daqueles da família rival, Costa Prates), pisavam terreno perigoso.

Pepe Peçanha morreu sem deixar viúva. Muito embora a bela Doralice Fontes aceitasse formar com ele um casal – depois de contraírem a dívida do noivado – infelizmente não houve tempo para que pudessem casar-se. Foram dois anos e meio de juras de amor recíprocas. E tão logo começou a trabalhar para os Gonçalves Barbosa, juraram casar-se em poucos anos.

Doralice Fontes nãofoi vista por ninguém no cortejo. As más línguas não poupavam o adjetivo de mulher leviana, fria e sem compaixão, mas a verdade estava em que a tristeza era tamanha que não conseguia levantar-se da cama para acompanhar o caixão. Sua mãe preparara-lhe uma canja e lá ficou: deitada no quarto, entre soluços, comendo de colher na boca.

Doralice era uma infeliz. Fizera planos de enxoval para o casamento e para as roupinhas dos filhos gêmeos que haveriam de ter. Para o casamento, tudo seria feito de boa renda para o vestido de noiva, feito do branco mais alvo da cidade de Jerimum. Para os filhos, haveria de ter um casal de gêmeos; encantada, já imaginava os bercinhos forrados: um em azul e outro rosa.

Mas eis que, na pensão em que morava Pepe, um estampido sonoro atravessou o ar em todas as direções próximo da meia-noite. O tiro que abatera Pepe Peçanha no coração levou consigo embora os sonhos da doce Doralice Fontes. Foram embora o vestido de noiva, véu, roupinhas as mais lindas de bebês para os gêmeos; lembrancinhas para os convidados da cerimônia.

Todos ouviram o disparo de revólver que matou Pepe Peçanha, mas nenhuma pessoa viu este ou esta a correr ou a atravessar a rua. Não se ouviu barulho de carro, não se viu o estranho ou a estranha que pudesse tê-lo matado. Àquela hora da noite, tudo era silêncio na pequena cidade. Mas o “tiro da meia-noite” (como ficou conhecido o incidente), acordou muita gente.

De fato, muitos moradores relataram ao delegado terem ouvido o estampido que matou o advogado dos Gonçalves Barbosa, mas acrescentavam todos que tiveram medo de pôr a cara na janela para ver a rua. Era sabida do delegado a tradição de matança na cidade, atribuída às duas famílias de fazendeiros, mas era seu dever apurar somente os fatos e testemunhos.

Ninguém testemunhara nada. A dona da pensão, inclusive, afirmou que devido a um problema grave de otite era quase surda de um ouvido e com o outro ouvia muito mal. Nada ouviu porque dormia e porque naquele dia não presenciara nada fora do normal. Admirava o defunto... Via nele um grande homem... Fora uma grande perda... Disse assim, blá-blá-blá.

Na ausência de sua mãe, pai, tio, ou quaisquer parentes mais próximos na cidade de Jerimum, o cortejo fúnebre seguiu seu rumo em carro aberto e rodeado pela gente mais simples da cidade. Eram as pessoas boas e pobres que abriram passagem para (ladeando o carro funerário), o filho mais novo dos Gonçalves Barbosa passar com seu carro possante.

Filinto Gonçalves Barbosa estacionou o carro caro, importado, em frente ao cemitério e, então, se apressou para unir-se ao cortejo que naquele momento entrava. Longe dali, na capital Salvador, saíra uma notinha no jornal de maior circulação e, por isso cumprindo ordens de seu próprio pai, estava o filho mais novo ali para representar a dor e o luto de sua família.

A partir do portão do cemitério, o padre juntou-se à pequena procissão – tomando inclusive a dianteira de todo grupo, como se estivesse literalmente conduzindo o rebanho de fiéis ao fim de todos os seres; ao pó de onde viemos e para onde vamos retornar. Assim, chegados todos ao redor da sepultura, o caixão de madeira avermelhada foi rapidamente içado para baixo.

Enquanto o padre repetia uma oração e fazia o sinal da cruz muitas vezes, todos os que tinham chapéus retiraram os chapéus e suspiraram profundamente. Depois olharam todos para baixo em sinal de respeito. No momento em que o padre pedia atenção a todos para a sentença que diz “viemos do pó e para o pó retornaremos...” alguém chorou.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 26/06/2012
Reeditado em 26/06/2012
Código do texto: T3746269
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