*Filosofia de Mãe

Filosofia de Mãe

Rolava o ano de 1956, porque eu deveria ter uns 10 anos e nós morávamos em Teresina, coincidentemente na Rua Piauí. A Av. Santos Dumont ainda não era asfaltada e a faixa de rolamento era de um cascalho avermelhado, por nós conhecido como “piçarra”. Isso favorecia o aparecimento de muitos buracos na pista e, como era ano de inverno intenso, pior ainda, porque muita água ficava empoçada.

De ambos os lados da avenida, que começava a partir do Cemitério São José, até próximo à antiga casa de passageiros do Campo de Aviação, havia uma fileira de oitizeiros de meia idade, frondosos a contemplar-nos com sombras benfazejas,

Um dia, vi uma moça que aparentava ter o dobro de minha idade, usando um vestido de broderi, branco de doer na vista, do tipo marinheiro, com sapatos azuis e uma faixa de seda da mesma cor na cintura. Tinha a tez muito alva, cabelos negros e lisos que desciam um pouco abaixo dos ombros. Com uma das mãos segurava a sombrinha aberta, cuja capa feito do mesmo tecido da roupa, como era costume na época. Isso lhe dava uma aparência de boneca de porcelana. Andava serpenteando entre as poças de lama, procurando o caminho das pedras, erguendo com a outra mão, de forma discreta, a saia rodada do vestido meio longo, impecavelmente passado.

Naquela época, a avenida era um pouco distante do centro da cidade e o tráfego ali não era grande, creio que passava um veiculo a cada dez minutos.

Subitamente, eis que surge um jeep Willys preto, no sentido aeroporto-centro, com uma velocidade compatível às regras da época, e dois homens a bordo. Quando o motorista notou a moça do outro lado, ele saiu da sua direita e foi para a contramão.

Embora não fosse costume daqueles tempos uma moça pegar carona com estranhos, eu cheguei a pensar que os homens iriam lhe oferecer auxílio, devido aos incômodos pertinentes ao momento. Mas em vez disso, eles aumentaram a velocidade passaram a menos de 1,50m da moça que, parada próximo ao que seria o meio-fio, ficara por se dizer, completamente enlameada...

Depois o carro seguira em frente, ainda mais rápido, levando os seus condutores às gargalhadas, como se acabassem de fazer suas melhores obras e certamente fizeram suas melhores obras sim.

Sem dizer uma só palavra, restou à moça retornar para casa, com sua roupa maculada, e abortar seus possíveis compromissos, aviltada em sua dignidade e direitos.

Minha mãe não teve muitas oportunidades para estudar e tudo o que ela conseguira foi terminar apenas o 4° ano primário. Ainda assim, lia com extrema facilidade e tinha boa cultura. Mas a Teologia nos ensina que, quando nos tornamos tutores, independentemente da escolaridade, Deus coloca em nossos corações e mente um fundamento chamado Pátrios Poderes e uma de suas funções é dotar os pais da faculdade de transmitir bons conselhos.

Quando cheguei em casa, narrei esse fato a minha mãe e o que ela me falou eu somente pude entender muitos anos depois. Abaixando-se um pouco ela disse-me:

-Meu filho, a solidariedade e a insolência, embora sejam palavras do mesmo gênero, são longitudinalmente opostas em suas essências e inimigas naturais. Neste confronto, dificilmente vence a primeira.