RESOLUÇÃO

Sem qualquer aviso ele parou repentinamente. Havia decidido que não mais marcaria as horas. Revolvendo suas lembranças mais antigas, verificou que sua vida tinha sido sempre assim. Aquela viagem constante e monótona cruzando as mesmas insípidas paisagens de pontos e algarismos romanos sobre aquele imutável fundo branco, naquele mundo circular e finito de relógio de parede.

Às vezes, quando cansado, deseja passar sobre as horas apenas por passar, cumprindo sua obrigação cotidiana, sem atentar para nada, mas havia as badaladas que, com os seus toques iguais, “toim, toim, toim” anunciavam as horas. Havia, ainda, aquele “tic – tac” constante a lhe deteriorar os nervos. Mas, a partir daquele momento não trabalharia mais. A decisão estava tomada e era sem volta.

Por todos os anos que havia trabalhado incansavelmente nenhum reconhecimento. Quem lhe havia agradecido pelo menos uma vez? Quem lhe havia dirigido elogios ou palavras ternas? Considerava-se como merecedor de tal recompensa, pois havia determinado com absoluta precisão a hora do nascimento de várias das pessoas que habitavam aquela casa, bem como outros importantes acontecimentos.

Realmente, a vida daquela casa era por ele determinada, Todos os dias de manhã, mal chegava sobre o numero seis surgia o sol, o canário belga da gaiola que ficava na sala começava a cantar, as portas eram abertas, as pessoas tomavam café apressadamente e saiam. De quando em quando, alguém lhe dirigia um olhar descuidado para ver as horas. Ver as horas ou espionar se ele estava trabalhando?

Às doze horas os adultos retornavam do trabalho e as crianças das escolas, e o almoço era servido.

As quatorze 14 horas nova debandada para um novo regresso às dezoito horas. Isso acontecia nos dias de semana chamados de dias úteis, pois aos sábados e domingos a rotina da casa era alterada. Ninguém tinha hora certa para sair e chegar.

Sabia bem que por trás dele havia uma máquina que necessitava de corda para funcionar. Tinha observado ao longo de sua vida, embora não compreendesse bem a razão, que quando andava ora o sol esquentava, ora diminuía a intensidade da sua luz. Observara, também, que a lua regulava a sua jornada celeste pelo seu caminhar naquele mundo circular e restrito de mostrador de relógio de parede.

Naquela manhã, havia decido: não trabalharia. Não funcionaria nem por um minuto. Parou então na paisagem seis. Apesar de monótona, era um bom lugar para parar. Aliás, qualquer lugar que parasse seria bom para quem estava disposto a não trabalhar mais, pelo menos até ter sua utilidade reconhecida e sua importância cantada aos quatro ventos. Parou e ficou a espreita.

Desencantado, viu que mesmo estando parado o canário belga cantou como era costume. O sol surgiu. As portas foram abertas e as pessoas saíram apressadas como sempre.

O ponteiro de minutos passou apressadamente por ele e o convidou ao trabalho, mas ele disse não. Estava realmente decidido. Atrás dele a máquina do relógio continuava funcionando enchendo o ar da manhã com o seu “tic tac” característico. As engrenagens, nos momentos certos, faziam com que o martelo batesse as horas. Mais decepcionado ficou ainda quando notou que também o sol não havia interrompido a sua marcha como ele pensara e já estava bastante alto e quente.

Alguém vindo ver as horas comentou que ele não passara das seis. AH! Finalmente alguém enfim reconhecia o seu valor. Agora sim, ele não trabalharia mais e todos iriam notar a sua importância.

O velho relógio foi então tirado da parede, sacudido para todos os lados, e como o ponteiro das horas teimasse em não funcionar mesmo permanecendo imóvel, foi levado a um relojoeiro, onde todo o seu mecanismo foi avaliado e considerado em ordem. O único problema detectado era o ponteiro de horas que, mesmo sem aparentar qualquer anormalidade, não funcionava de jeito nenhum.

Não funcionava por opção. Mas agora teria reconhecimento pelos seus méritos, pelos serviços prestado ao longo de tantos anos sem ouvir sequer uma palavra de agradecimento, um simples obrigado.

O relojoeiro analisou uma vez mais o ponteiro e caminhou em direção a sua mesa de trabalho e retirou de uma gaveta uma caixa de madeira, antiga embalagem de charutos finos, que ora lhe servia para guardar peças de relógio. Examinou o seu interior e de lá tirou um novo ponteiro e depois de limpá-lo com uma flanela, o colocou no velho relógio substituindo o que havia parado. Assim que foi ajustado o novo ponteiro pôs-se a caminhar lentamente como o fazem os ponteiros que marcam as horas.

O ponteiro grevista ficou desapontado ao ver que só aquela caixa de charutos continha talvez uma dezena de ponteiros iguais a ele. E, mais ainda, viu que nas paredes do pequeno cômodo havia também um grande número de relógios de variados tipos. E ele que pensava ser único...

O relógio, então funcionando normalmente, foi entregue ao seu proprietário. Enquanto ajustava o preço do conserto, o relojoeiro tomou nas mãos o ponteiro grevista que desesperado e sentindo-se perdido gritava a plenos pulmões:

- Deixe-me trabalhar novamente, ainda posso ser útil. Estou bem, ou melhor, estou ótimo!

Gritou muito, mas em vão, pois ninguém é capaz de entender a linguagem de um simples ponteiro de horas, a não ser quando este, no seu restrito mundo de mostrador de relógio, cumpre sua tarefa.

O relojoeiro olhou uma vez mais para o ponteiro em suas mãos e comentou consigo: - Esses ponteiros são assim mesmo, por uns tempos funcionam com absoluta precisão, até que um dia, sem um motivo claro, simplesmente deixam de funcionar. Depois amassou o velho ponteiro substituído e o atirou no lixo.

Na sala, o novo ponteiro de horas cumpria seu destino no restrito mundo circular do mostrador do relógio de parede, arrastado pela engrenagem oculta, marcando as horas. Na casa a vida seguia a rotina normal...