Um conformado.

Um aviso: Olá amigos do Recanto, fiquei um bom tempo ausente, por causa das férias e outras questões, mas voltei agora com um texto que eu adorei escrever, e que, na minha opinião é o melhor que eu já fiz e o que deu mais trabalho também. Sei que ele ficou um pouco longo em comparação à maioria dos textos do Recanto, mas peço que não tirem conclusçoes precipitadas e tentem lê-lo, nem que seja aos poucos. Obrigada e grande abraço.

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Já havia muito tempo que a lua brilhava quando o Sr. Sagismundo Correia saiu para dançar. Saiu saltitante, cantarolando as músicas que dali a pouco dançaria. Era um canto solitário, canto de quem canta por cantar, canto de quem está ali, somente por estar.

Sagismundo não sabia com quem iria dançar naquela noite e, certamente, não se importava. A dança era mais um daqueles prazeres que, de tanto satisfazer e aproveitar, tinham virado uma espécie de obrigação semanal para ele. Se não dançasse, toda a semana desandaria e seria um inferno. Muitas vezes pegara-se dançando sozinho, no meio do salão do clube em que era associado, tornando-se alvo das brincadeiras de terceiros.

Vivia uma vida de obrigações, tanto no trabalho, no qual estava há mais de três décadas, quanto nos detalhes mais minuciosos, como ler os jornais todos os dias por inteiro e em seqüência correta, indo da capa à contracapa sem pular nenhuma seção. Tinha consciência disso, e, por possuir tal consciência, sentia-se feliz e tranqüilo, pois sabia – ou pensava que sabia – que não poderia viver de melhor maneira, fosse por conformismo de pensar que não precisava mudar, ou por medo de que isso não desse certo.

A rua por onde naquele momento caminhava era toda constituída por pequenos blocos de pedra, que davam à mesma um aspecto muito antigo. As pequenas casas, todas de um aspecto colonial, só ajudavam a reforçar o uso de tal adjetivo. Via-se claramente que se tratava de um dos velhos e tradicionais bairros da cidade, e aqui e ali era possível avistar letreiros indicando que algumas casas pertenciam ao patrimônio histórico. Os postes não davam conta da iluminação e, afora dois guardas que conversavam não muito longe, a rua estava deserta.

O clube ficava a poucos minutos dali e se se apressasse não demoraria muito a chegar, mas Sagismundo caminhava tranqüilamente. Quem anda por andar não tem pressa.

De repente, de um dos incontáveis becos que cruzavam a rua, surgiu um garoto, que provavelmente não tinha mais que nove anos de idade.

Seu Sagismundo estacou e, quando se preparava para desviar do “pequeno obstáculo”, olhou nos olhos do menino e parou novamente. Este o olhava fixamente, mas de uma maneira estranha, como se estivesse congelado, chocado com o que via. Além disso, o garoto não o olhava nos olhos, como era de se esperar, mas sim olhava o seu peito, o lado esquerdo do seu peito. O garoto olhava, conturbado, o seu coração.

- Que cara é essa menino? Aconteceu alguma coisa? – arriscou o homem, ansiando que a resposta do garoto dissipasse a agonia e a sensação de que o choque do mesmo tinha algo a ver com ele.

Mas para sua surpresa, o garoto não respondeu e continuou parado. No entanto, não parecia ignorá-lo, antes – o que é mais coerente – parecia não o ter ouvido. O seu rosto emanava a impressão de alguém que está absorvido pela visão que está tendo e, cada vez que os seus olhos piscavam, isso se tornava ainda mais visível.

Movido muito mais pela curiosidade do que por compaixão ou qualquer sentimento parecido que um ser humano pudesse ter à vista do menino, Sagismundo foi se aproximando dele devagar – que pareceu não notar tal gesto – e tocou-lhe o braço. No mesmo instante o pequeno o repudiou e, tremendo, saiu pela rua gritando sons ininteligíveis, como quem foge do mais detestável dos seres.

Por um momento Sagismundo pensou em segui-lo, mas logo abandonou a idéia, pois ao longe ainda se podia ver os guardas, que provavelmente tinham se alarmado com os gritos do garoto, pois o olhavam de maneira desconfiada.

Resolveu seguir até o clube, ainda que com o coração acelerado e as mãos suando. Não valia a pena estragar a semana por causa de um moleque que provavelmente estava maluco ou coisa parecida. Antes a obrigação de continuar a dançar, antes a obrigação de continuar a viver.

Dançou durante todo o resto da noite. Era a sua forma de esquecer por algumas horas o que havia se passado. Voltou pelo mesmo caminho, como sempre fazia, mas dessa vez dizendo para si mesmo que tudo aquilo era uma bobagem e que não, não estava ali para tentar rever o garoto, mas em seu íntimo era exatamente isso que queria, e quase inconscientemente caminhou mais devagar que o normal e deu uma rápida olhada em cada beco que passou. Porém tudo foi em vão e a única novidade por ali era que os guardas haviam sido substituídos por garis.

Chegou ao seu apartamento em companhia dos primeiros raios de sol. Foi a pia lavar o rosto e sem trocar de roupa deitou-se na cama de casal que tantas vezes dividira com a esposa que era estéril e hoje é morta.

Adormeceu quase imediatamente, mas ao contrário do que estava acostumado, o seu sono tranqüilo foi interrompido por algo que parecia ser um sonho, já fazia tantos anos que não sonhava que o seu subconsciente demorou a se acostumar com a idéia. Quem vive por viver não tem muito que sonhar.

Estava novamente na rua dos pequenos blocos de pedra e das casas muito antigas, mas naquele cenário não se viu no próprio corpo, e sim como um simples espectador. Viu a si mesmo cantarolando as mesmas canções que cantar poucas horas antes. Estava completamente sozinho(nem sequer os guardas estavam a perambular pela rua). A iluminação, no entanto, permanecia na sua mesma precariedade e às vezes parecia ainda pior.

Do mesmo beco de que havia saído na realidade, o garoto apareceu novamente, e assim repetiu-se toda a cena que ocorreu naquela noite. O que mudou foi o final.

Ao invés de deixar o garoto fugir, Sagismundo correu atrás dele e o alcançou com grande dificuldade, conseguindo agarrá-lo em ambos os braços. Depois o virou e perguntou com a sua característica voz ríspida e rouca.

- Quem é você? Por que me olhou daquele jeito? Eu te fiz alguma coisa?

O garoto começou a abrir a boca mas logo tornou a fechá-la. O homem perdeu um pouco a paciência e cravou-lhe ainda mais as mãos nos braços.

- É mudo? Responda! Vamos!

Dessa vez o garoto respondeu. Sua voz saiu muito baixa, tanto que Sagismundo teve que aproximar-se mais ainda para conseguir ouvir.

- Não, não sou mudo. Quem eu sou não lhe interessa, não é isso que queres saber...

Não parecia um garoto falando. Possuía tal dicção e esmero ao articular as palavras que, qualquer um que o ouvisse, julgaria tratar-se de um homem, mesmo tendo a voz um tanto infantil, mas Sagismundo nem sequer reparou. Não importava como o garoto se expressasse, mas sim o que ele dissesse.

- Quanto ao por que de olhá-lo daquela maneira, dir-lhe-ei se assim o quiseres, mas direi se estiver de igual a igual com você. Solte-me!

Ao ouvir o pedido, Sagismundo desconfiou que talvez o garoto quisesse enganá-lo, mas pensou melhor e viu que não conseguiria nada de maneira forçosa, e, ao chegar a essa conclusão, soltou-o. Este não esboçou nenhuma reação e, levando esse comportamento como uma permissão para recomeçar as perguntas, disse:

- Agora me fale! Por que tamanho choque ao me ver?

- Vi que teu coração já não pulsa. Vi que vives somente pela tua ignorância. Vi que vives pelo teu medo de morrer.

- Não fale tantas asneiras! Estou aqui, de paletó e gravata, e aqui no meu peito – disse, enquanto colocava a mão direita no peito – meu coração bate ritmadamente como outro qualquer!

- Há certas doenças que não afetam o corpo. Tu tens a pior delas, jamais perceberá que ele já não bate.

- Que é que você sabe de mim? Logo você, que é um garoto de rua que não sabe o seu lugar?

- Pois saiba que sei muito de ti. Tu és viúvo, não tens filhos, trabalhas em um emprego no qual está há trinta anos sem subir nem uma posição. E este último é hoje o que menos importa na realidade e, no entanto, é o que mais te atinge no teu íntimo. Já não choras os teus mortos. Já perdes a noção de tempo. Já não és merecedor de minhas explicações. Tua doença não tem cura, está em estado terminal. Fugi de ti porque ela é contagiosa e sou eu muito novo, como vês, para deixar-me arrebatar. Dei-te as explicações que me pediste. Deixe-me ir agora, homem.

- Como sabe de tudo isso?

- Não importa, por favor, não me siga mais, e dizendo isso saiu correndo, desaparecendo em um outro beco.

Sagismundo acordou num sobressalto. Que sonho fora aquele? Como podia ter sonhado com aquele garoto, logo com ele, quando todas as suas noites de todos os últimos anos tinham passado secas e vazias? E todas aquelas afirmações que ele tinha feito?

Disse a si mesmo que aquilo era tudo uma mentira deslavada. Mas, se ele não acreditava nas afirmações do menino, como podia ter sonhado e, no sonho, elas serem tão verdadeiras?

Olhou as horas no relógio do criado-mudo ao lado cama. Dez e cinqüenta. Faltavam dez minutos para se levantar, como fazia usualmente aos domingos, para preparar o almoço. Porém Sagismundo desligou o despertador e voltou a dormir, como há anos não fazia.

Ao acordar – o que com muito esforço ocorreu às três da tarde, e só foi possível porque a vontade de comer ultrapassou a necessidade de dormir – comeu feijoada enlatada, ao invés de salada com frango. Vestiu moletom, mesmo com um calor insuportável. Saiu para comprar os jornais e ao chegar ao apartamento jogou no lixo a maior parte dele, lendo somente a seção de esportes.

Na segunda, chegou ao trabalho dez minutos atrasado, imprudência que nunca havia cometido, despertando a curiosidade dos antigos colegas.

- Pô, Sagismundo, eu já ia ligar para a polícia, não faz mais isso meu velho! Disse um, enquanto tentava controlar a vontade de rir.

Não se dirigiu à sua sala e sim à do chefe e, sem pedir licença à secretária – quase todos os dias passava por ali para dar satisfações ao chefe – bateu na porta e, sem esperar resposta, entrou.

- Senhor Felício, eu quero ser promovido!

Cinco minutos depois estava saindo da sala com o chefe batendo-lhe levemente nos ombros e dizendo:

- Ora seu bonachão! Não me venha mais com essas brincadeiras! Não faz o seu tipo!

Conformou-se em relação ao emprego: aquela parte de sua vida era incurável, iria focar-se nas outras, inclusive nos mínimos detalhes. Pensando assim, não almoçou no trabalho e sim num restaurante novo que havia aberto na rua em frente e saiu do trabalho às quatro da tarde e não às cinco. Foi assim o resto da semana. Quando via que estava fazendo algo usual, trocava pelo oposto, ou, pelo menos, por algo diferente. Trocou a dança pela sinuca, os jogos de futebol pelos de vôlei. Resolveu não trocar de amigos, e para compensar tal resolução, prometeu fazer novas amizades.

Passada uma semana da nova vida, começaram a vir as conseqüências. Primeiro os problemas estomacais(aparentemente a nova dieta não havia lhe feito bem), depois a atitude dos colegas de emprego, que agora não o levavam mais a sério e viviam a reclamar que, além dele agir de maneira totalmente avessa à habitual, ainda andava desatualizado das principais noticias, o que, segundo eles, atrapalhava o seu desempenho no trabalho.

A situação só piorou quando, no domingo, Sagismundo ligou a televisão: tão difícil assistir ao vôlei enquanto o seu time estava jogando. Pior que isso só a preguiça de ir jogar sinuca à noite. “Sinuca não exercita tanto quanto a dança, e eu preciso me exercitar”, argumentou, mas à noite foi jogar mesmo assim, fazendo jus à sua conformação.

Suportou como um herói – ou, para muitos, como um idiota – mais duas semanas daquela atitude que tanto o fazia mal. Aquilo tudo era em vão, antes a vida insossa que não doía a essa vida errante que tanto lhe fazia mal. Antes a indiferença.

Voltou a ser o mesmo e, quando foi dançar, resolveu percorrer outro trajeto – isso ele sabia que iria lhe fazer bem – e foi cantarolando percurso a fora, dizendo sempre a si mesmo:

- Aquilo foi só um sonho. Tenho certeza que aquele menino era só um moleque de rua meio cego, meio chorão, que ao me ver me confundiu com o seu padrasto que poucas horas antes havia o espancado e, por isso, ele fugiu daquele jeito...

E saiu andando despreocupadamente, abraçado à sua monotonia, nunca mais voltando a pensar sobre o assunto.

TMB
Enviado por TMB em 10/02/2007
Código do texto: T377003