O MAR É VERDE DE TANTA ESPERANÇA AFOGADA

RUBEMAR ALVES

O que sei da origem desta frase é muito simples.

Tenho uma amiga que tinha um amigo que morava em Niterói, estória antiga, antes da fusão do Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.

Década de 60, conta ELA, melhor especificando.

Niterói, antiga capital do Estado do Rio, como se simplificava falar, então - RJ.

Rio de Janeiro, capital do Estado da Guanabara - GB.

(Brasília era ainda uma bebezinha que começava a andar.)

ELE trabalhava numa imobiliária e de repente apareceu ao balcão um homem ainda moço com um crachá que o identificava como surdo-mudo. Mostrou para o amigo da minha amiga o conteúdo de uma pasta cheia de gravatas, fez gestos ininteligíveis, insistia em mostrar quatro dedos, fazer gesto de ninar e batia no peito. Parecia dizer “Tenho quatro filhos”. O rapaz não era muito chegado a indumentária formal, mas só possuía uma gravata, velhíssima, quase rasgando. Vacilou entre duas cores e decidiu-se pela verde, após a frase escrita pelo vendedor.

“O mar é verde de tanta esperança afogada.”

Pagou – o “estranho” troco veio todo em boa quantidade de moedinhas de valor mínimo.

“Parece dinheiro de esmola”, pensou preconceituosamente.

Conferiu, estava certo, dizer o quê?

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Tempos depois, o novo possuidor da gravata elegante, passeava com a namorada por uma pracinha em Icaraí, bairro niteroiense, quando viram um guarda expulsando uma garotada um tanto suspeita.

Um dos meninos apontou um pedinte e o guarda concordou que este ficasse:

“Cego, coitado, não está fazendo mal a ninguém...”

No pescoço do cego, um crachá anunciava esta deficiência, sanfona ao lado, o chapéu já cheio de pequenos valores, no geral moedas. O amigo da minha amiga já ia contribuir, quando escutou de novo a frase:

“O mar é verde de tanta esperança afogada.”

Cego “viu” a gravata, confundiu-se, esqueceu o slogan daquele momento de poder falar e ouvir, mas não... ver.

Musiquinha tirada de literatura de cordel – “Sou pai de quatro filhos... Lalá, Lelé, Loló e Lulu.”

(Lili é ‘afilhada’ do Carlos Drummond de Andrade, aquela que não amava ninguém - outra estória!)

Tempos depois, este rapaz, amigo da minha amiga, estava indo para a cidade do Rio de Janeiro, separada de Niterói pela Baía de Guanabara. A Ponte Rio-Niterói, ih, faz muitos anos, ainda era apenas um projeto burocrático, ‘sonhada’ e desenhada no papel... Usavam-se apenas barcas, tartaruguentas... porém seguras.

Um paralítico, em sua cadeira de rodas, foi dispensado de pagar a passagem. Ficou em meio a multidão, oculto por pessoas acima da altura dele, sentado, e aproveitou para contar em voz alta a estória do tiro que levou por estar “no local certo na hora errada” (a expressão “vítima de bala perdida” surgiu somente umas três décadas depois), levando os quatro filhos para a escola quando os policiais atiraram num ladrão e ele se colocou na frente das crianças para, pai zeloso, protegê-los com o próprio corpo... Aí, nunca mais pôde trabalhar etc. etc. etc. Claro que logo começou a chover dinheiro.

No meio do povo, o amigo da minha amiga tentou lembrar-se:

“Conheço essa voz de algum lugar...”

Saguão lotado de pessoas apressadas que esperavam a embarcação enorme. Um funcionário da empresa veio, abriu o ‘curral’, que era um portãozinho que corria sobre trilhos, e a multidão disparou com violência. A cadeira do paralítico foi brutalmente empurrada, talvez por alguém que não a tivesse visto, girou sobre seu próprio eixo, e caiu na água.

“Cadê o salva-vidas? Cadê? Cadê?”

O amigo da minha amiga olhou para baixo, e viu um exímio nadador se salvando sozinho, ao mesmo tempo que dizia:

“O mar é verde................................”

F I M