O AVARENTO

ERNESTO ERA essencialmente um mão-fechada, um sovina, um legítimo pão-duro.

Apesar da frugalidade ser reconhecida como uma grande sabedoria, sobretudo quando praticada pelos nossos ancestrais e, principalmente, se nos deixam uma boa herança, quando se vão dessa vida para uma melhor, a nossa personagem não orientava seu excessivo apego ao dinheiro, sua esganação, sua mesquinhez, por essa proverbial virtude.

Assim como o pródigo rouba seus herdeiros, roubava a si mesmo. Gostava de gabar aos seus familiares e amigos que sua roupa passava por três fases: nova, usada e remendada e, exultante, sempre declarava que quem dá o que tem a pedir vem.

Acreditava que o homem é o que ele tem, ignorando que as melhores coisas da vida são gratuitas, como o amor, a amizade, a saúde. Vivia no ter e o ser, se algum dia experimentou, logo se cansou, ou se amesquinhou, ou se capitulou.

Sabemos que esbanjar, malbaratar, gastar desenfreadamente - torrar o dinheiro no popular - também tem seus males, talvez maiores do que os da avareza, porque se não se tiver comedimento no uso do dinheiro, pode ser que um dia de muito, possa ser véspera de pouco.

Certamente, porém, a virtude sempre está no meio como nos dizem os indianos e o difícil é fugir de se ultrapassar os limites que podem ser impostos por nossa índole, por nossa criação, por nossa cultura.

Não é meu papel aqui, no entanto, crucificar nosso mão de ferro, porque sei que o mesmo, dentre tantos outros fatores, foi o produto de uma infância muito sofrida, carente de tudo, vítima de um pai perdulário, do assédio constante de cobradores bravos à sua porta e, em suma, da grande falta de recursos materiais, educacionais e mesmo morais.

Eis que, por volta de seus sessenta anos, Ernesto já tendo uma vida estável, uma família criada, um bom provimento na caderneta de poupança (segundo ele, para um momento de necessidade aguda e premente), viu-se numa situação inusitada: a perspectiva de um negócio que poderia, se vitorioso, enriquecê-lo por várias e várias gerações.

Bateu-lhe, naturalmente, uma compreensível cautela, porque como bom mineiro que era, (dizem pilheriando), sabia que mineiro só arrisca quando tem certeza, ou só escreve carta depois de receber a resposta e até mesmo só marca reunião depois do acordo.

Ora, a precaução em excesso traz consigo o risco da imobilidade, da passividade, da acomodação, e caminha para a estagnação da vida. E, ao seguir o adágio não seja o primeiro a abraçar o novo nem o último a abandonar o velho, sua cautela podia distanciá-lo daquele que chega na frente e bebe água limpa. Ora, a própria prudência exige um pouco de ousadia, diz o senso popular, porque quem não arrisca não petisca.

Ernesto mostrava-se ultimamente sorumbático, macambúzio, amargurado, e um pensamento obsessivo martirizava-o:

- Cuidado! Não há nada pior do que se arrepender, no futuro, de não se ter tentado uma coisa que hoje assinala uma grande perspectiva de ser estupendamente vitoriosa. E eu concordo, porque, afinal viver é correr risco, é experimentar a si e a vida, é sonhar o quase impossível.

Nessa altura já devem estar pensando os leitores:

- Mas que negócio é esse tão promissor? Que oportunidade é essa que faz desse sexagenário comedido um atormentado por uma decisão? Será algo escuso, um jogo de azar, alguma coisa que possa aguçar a cobiça de homens poderosos, sem lei, ambiciosos.

Sou uma das testemunhas que Ernesto não era um ser humano pusilânime, indeciso, poltrão e, suas origens e seu histórico de vida atestavam muitas batalhas renhidas vencidas com o destino, com a sorte e com as vicissitudes do cuidado responsável de uma família numerosa.

Era católico praticante de comunhão semanal. Herdara de sua mãe a fé, assim como a bondade de coração, e do pai, o empenho e a regularidade no trabalho, como se fosse um desses relógios automáticos que sem se dar corda funcionam sem parar um só instante e por um tempo indefinido.

O tempo passou a ser para ele um suplício, uma punição, uma tortura, porque sofria no presente o peso pela necessidade daquela decisão futura. O presente parecia uma eternidade. E nenhuma situação, nenhum sentimento, nenhuma aspiração aprisiona mais do que a eternidade.

Conselhos?

Procurou com a esposa, sua companheira fiel e amorosa desde os vinte anos de idade; com o padre da paróquia local; com um seu amigo fraterno, delegado de polícia, que ele considerava de grande experiência e sabedoria.

A quem mais apelar?

A Deus? Não se contavam mais as súplicas, as preces e mesmo algumas promessas feitas por Dona Nininha, sua esposa.

À ciência dos homens? Mesmo sem muito ânimo de início, por recomendações de vários amigos havia mesmo contratado a assessoria de uma empresa da capital, apesar de homem simples, pouco educado academicamente e, (não se esqueçam), muito comedido nos gastos.

Não havia realmente mais ninguém que o pudesse orientar faltando tão somente sua dolorosa decisão.

Ninguém suportava mais aquela situação – família, amigos e principalmente ele próprio.

Parece até que sua ansiedade de longa data já se desdobrava num início de depressão. Passou a perder peso, não dormir reparadoramente, ter dificuldade de se levantar pela manhã. Seu semblante cada dia se tornara mais fechado e triste. Fugia dos amigos e familiares e se isolava no quarto, chegando mesmo a faltar a alguns compromissos inadiáveis com o conseqüente sentimento de inutilidade, desamparo e de culpa.

Mas como tudo um dia clama por um fim deu-se o inesperado. Sua mulher preocupada o acorda numa manhã de segunda-feira, aos empurrões e, lhe admoesta severamente que ele já está muito atrasado para o trabalho e que o mesmo estava se contorcendo e gemendo como se estivesse passando mal.

Que alívio! Apesar de suado da cabeça aos pés, corpo todo dolorido e com sua eterna e rebelde enxaqueca, Ernesto constata que todo aquele impasse havia sido um sonho.

Levanta-se, toma seu remédio contra enxaqueca, vai até o banheiro, veste-se com sua melhor roupa, serenamente despede de sua esposa e, deixa sua casa rumando para mais um novo dia de trabalho, estabilidade e comedimento.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 11/02/2007
Código do texto: T377842
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