O CAVALO MILIONÁRIO DO FAZENDEIRO MINEIRO E A ÉGUINHA DE SEU CAIPIRA VIZINHO

OLHA, NÃO POSSO verdadeiramente assegurar que esta nossa estória constitua um fato real, podendo ser mesmo um mero produto de uma mente criativa qualquer, porém, se passa no interior das Minas Gerais e data de pouco tempo.

O certo é que um filho de um rico fazendeiro após sua graduação universitária normal vai para a América do Norte se especializar.

Radicado no Arizona, Texas, cidade próxima da fronteira México e Estados Unidos, além de suas atividades escolares formais, se dedica, nos seus tempos livres, à equitação e ao convívio com os amantes dos cavalos. Sabe-se que a região é conhecida mundialmente pela criação, comércio e exportação de excelentes raças de eqüinos.

Não demora muito e se realiza uma inseminação artificial da melhor égua da fazenda de seu pai com um embrião de dez mil dólares transportado via aérea da terra do Malboro. Nasce um cavalo que o fazendeiro extasiado não cansa de exclamar: “a coisa mais linda do mundo”.

Adjacente à verdadeira sesmaria do pai de nosso pós-graduando vive um caipira de seus trinta anos com sua mãe setuagenária e viúva, num litro de terra, num terreno meio abarrancado, exprimido entre a terra do coronel e um caudaloso rio local. Nosso valente minifundiário resiste a todo tipo de proposta de sair dali para uma área maior e infinitamente mais valorizada por motivos que só Deus pode dimensionar.

O cavalo de dez mil dólares e de mais de dois metros de altura vai crescendo e talvez pela proximidade ou mesmo pela força do destino se enamora da única eguinha (baixinha, esquálida, anêmica) do caipira que a ele serve, conformadamente, tanto no transporte da cana, da ração e, não se pasmem, quanto das necessidades pervertidas de seu dono carente de outras possibilidades de expressão de sua libido.

Voltando, ao que nos interessa ou aos nossos protagonistas principais – o cavalo e a eguinha –, com o tempo vai se adensando o apego entre os dois enamorados, no entanto, a livre manifestação de suas intimidades é obstaculizada por uma cerca, que não permite uma relação assim corpo a corpo, ou vis-à-vis, dos dois, mesmo porque a diferença de quase um metro e meio entre eles já por si só dificulta ou mesmo torna essa eventualidade praticamente impossível.

Como, para os amantes, porém, qualquer obstáculo é, antes de tudo, mais um convite ao estreitamento de seu relacionamento do que um empecilho formal, os dois ficam se cheirando através da cerca e, ora o cavalo escorrega, ora a eguinha resvala, visto que, como foi anteriormente assinalado, o terreno é íngreme, de forte declive, escarpado.

O caipira, lá de baixo, sentado à frente de sua casinha, fica quase sempre expectando a cena demoradamente e, no seu íntimo, creio, mesmo que seja de maneira inconsciente, desejo e ciúme se misturam e o perturbam um pouco.

Os amantes, entretanto, prosseguem seu namoro, alheios ao mundo, suas convenções e as malícias e possíveis projeções humanas.

O filho do fazendeiro acaba sua pós-graduação em Marketing e retorna ao seio de sua família e de sua comunidade de origem.

Ao chegar, por ser mais interessado na vida cavalar, ou seja, aquela referente aos eqüinos e, talvez, pela convivência estreita com seu cavalo milionário, passa a notar que a barriga da eguinha do vizinho está crescendo. Chega mesmo a perguntar a ele se ela foi coberta, e fica imensamente intrigado quando o caipira nega qualquer movimento ostensivo da parte dele no sentido de propiciar a prenhez do animal.

Essa inoportuna averiguação do filho do fazendeiro vem mesmo a acirrar as defesas paranóides do caipira e, defensivo, um dia dirige-se à sua mãe e desabafa:

- Oh mãe, aquela égua ta ficando barrigudinha. I eu não é; mas ela vai ganhá um cavalinho. Se fô macho é da senhora, mas se fô eguinha é minha. A mãe dá de ombros e nem se apercebe da nítida evidência da preferência de seu filho pelo sexo feminino e, até mesmo, de seu complexo de culpa reprimido em relação a bestinha.

Nasce um cavalo. Parece que não foi feito pela natureza, mas sim pelo pincel de um artista genial, tal a sua formosura, o equilíbrio de suas linhas e a sua força por todos reconhecidos nele a um simples olhar.

O filho do fazendeiro, a seu turno, reporta-se ao pai irritado:

- Pai, a égua do caipira ganhou um cavalo que dá de dez a zero no nosso.

- Esse cavalo então é nosso filho. Não é dele não.

- Vamos tomar o cavalo dele pai?

- Claro. Vamos fazer o DNA. Se for filho de nosso cavalo já é nosso.

O veterinário não demora. É feito o DNA. Está confirmado: o cavalo é filho da cavalgadura de dez mil dólares e da eguinha do caipira.

O pequeno proprietário é chamado oficialmente à fazenda do latifundiário:

- Pois é, o exame mostrou que aquele cavalo de sua eguinha é nosso.

- Não é não sinhô. É da minha égua.

- Oh rapaz, tô falando que é minha propriedade.

- Não. Não é não. Não é propriedade do sinhô não. Propriedade do sinhô é essa terra sua. Aquele cavalo não é propriedade de ninguém não. É bicho; é animal.

- ...

- ...

- ...

- ...

E assim o diálogo continua sem qualquer conclusão prática, porque o caipira, como à sua terrinha, defende com todas suas forças seu cavalinho recém-nascido.

- Vamos à Justiça então - conclui rispidamente o fazendeiro.

- Ta bom. Eu vô conversá com a dona Justiçia. Como ela é muié ela vai me entendê.

O fazendeiro e seu filho se entreolham e seus rostos denunciam:

- Ele é tão bobo que não sabe nem o que é justiça.

Eis o caipira impaciente, ansioso, perdido, na ante-sala da audiência, no Fórum, no dia marcado e, sem querer apelar para estereótipos, porque realmente é a pura verdade, com seu cigarrinho, seu pacotinho de palha e fumo e seu saquinho de farinha.

A muitas mulheres que passam pelo corredor pergunta:

- Escuta moça. A dona Justiçia demora? Eu tô aqui desde de cedo.

- Dona Justiça?

- É. Eu fui chamado aqui para conversá com a dona Justiçia.

- ...

De repente chegam o fazendeiro, seu filho e o advogado contratado. Passam pelo caipira sem o cumprimentar. O caipira mesmo assim vai ao encalço deles e interpela o fazendeiro:

- Oh sinhô. A dona Justiçia já vai me chamá agora?

- Oh homem. Deixa de ser bobo sô. Fica quieto aí.

Com um pequeno atraso, infinitamente menor que o habitual da Justiça institucional, a audiência foi iniciada, numa pequena sala, onde o Juiz se posta magistral em seu lugar, ao lado sua secretária, e de frente deles uma grande mesa, onde de um lado se colocam os três fortes contendores e do outro o solitário caipira.

O Juiz dá uma leve lida no processo, (quem sabe já o havia estudado antes, assim todos esperamos), e dá a palavra ao advogado presente. Este apresenta o fazendeiro, sua importância para a região decorrente de sua estirpe, genealogia e tradição, suas propriedades naturalmente ganhas com um trabalho diuturno e digno e, finalmente, traz a estória do embrião de dez mil dólares, do cavalo maravilhoso, e apontando o caipira denuncia:

- Esse vizinho em questão, sem pagar, o que seria natural, pelo cruzamento de um animal de tão nobre pedigree, conseguiu que sua égua fosse coberta pelo cavalo em questão e, o produto, um cavalo mais maravilhoso ainda, é o que meu cliente está aqui reivindicando o direito de posse, seu meritíssimo.

Foi dada a palavra ao caipira. Não entendendo o brilhante discurso do causídico pergunta ao Juiz onde estava a dona Justiçia, porque havia sido chamado para conversar com ela.

O Juiz experiente já na sua longa magistratura e no convívio com as mais diversas categorias de pessoas logo entende a dificuldade ali evidente e explica:

- Não meu filho. A Justiça é uma lei que dá o direito a quem tem e tira de quem não tem. Você tem de me contar é a estória desse cavalo e dessa égua:

Prontamente entendido o caipira então esclarece:

- Oh doutô! Compração: o sinhô é uma égua. E eu sou um cavalo. O sinhô entra no cio e fica me esfregando, me oferecendo, me tesando. Aí o sinhô encosta a bunda na cerca e eu planto o ferro no sinhô. Aí nasce um cavalinho. De quem é o cavalo? É do sinhô dono do cavalo ou é do sinhô dono da égua?

O Juiz já não suportando mais nenhum dos dois lados da pugna vocifera:

- É da puta que o pariu, filho da puta. Racha todo mundo fora daqui.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 11/02/2007
Reeditado em 12/02/2007
Código do texto: T377844
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