Três infortúnios (julho de 2012)

Dormi as noites mais profundas de minha existência neste começo do mês de maio de 2012. Não sabia fazer outra coisa: queria apenas dormir. O motivo? Se apenas a perda de um grande amor não servir de argumento, basta acrescentar que naquele começo de mês também perdi meu emprego; e recebi a ordem de despejo do meu imóvel. Tudo de uma só vez.

Tereza foi embora. Foi embora sem pressagiar nada, sem avisar que me deixaria, de um dia para o outro. Entrei no nosso quarto e pronto: as portas de seus armários estavam abertas e vazias. Tudo bem que já não conversássemos de verdade havia muito, e sua partida não foi para mim exatamente uma surpresa, mas senti o assunto como um desleal soco no estômago.

Tereza havia muito que não discutia, não reclamava. Para mais de um ano não discutíamos a relação. Minha esposa se cansara de tudo. Havia mais de um ano que se cansara de argumentar, de conversarmos ou, em outras palavras, de salvar nossa relação. Por isso, em uma tarde de segunda-feira foi embora. Foi embora levando consigo todos os seus pertences.

Na época em que conversávamos – o que antecedera em muito o dia em que me deixou – Tereza queria de mim atenção. Era ainda, aparentemente, o motivo de me haver deixado: eu não nos reservava mais o “espaço para o diálogo da nossa relação”, como frequentemente me dizia. Para Tereza, nossa relação redundava em um grande vazio.

Foi embora e levou todos os seus pertences, deixando para trás as miudezas. Deixara para mim todas as fotografias, os porta-retratos intactos. Não tive a certeza de que voltaria para buscá-los algum dia. Além das fotos, também todos os utensílios de cozinha repousavam em seus devidos lugares. Mas sim levou alguns móveis, possivelmente contava com um caminhão.

Eu a amava loucamente e, como lhe digo hoje, foi um desleal golpe de direita sobre minha barriga. A cada olhada sobre o que restara da sala de visitas (dali, levou quase tudo, o sofá armários e tapetes, menos a escrivaninha e a mesa de centro), a cada olhada sobre o que restara, tinha ânsias de vômito. Foi um grande golpe o de Tereza.

Eu me lembro de encontrar uma barata no ambiente da sala de visitas. De alguma forma, a saída dos móveis principais da sala descobertou seu esconderijo e lá estava ela, espoleta de um canto para outro, no meio da sala. Não senti vontade de matá-la porque a vi como uma amiga de infortúnio. Também eu perderia, em questão de dias para o despejo, minha morada.

Sobre a escrivaninha da sala de visitas do apartamento descansavam uma régua e um envelope rasgado de ponta a ponta nas laterais. A carta repousava logo ao lado, meio amassada, displicentemente. Era a carta do despejo; comunicando que a partir da data até um mês, deveríamos (eu e Tereza), deixar o apartamento. O proprietário se cansara de alugá-lo.

Tereza precipitou-se e, tão logo lera a carta, deixou-me. Talvez se queixasse que a culpa do despejo era minha; e por isso abandonou-me sem maiores explicações. Acreditava, talvez, que a carta do proprietário do imóvel dispensava explicações. Não discutiríamos. E foi assim que fiquei sabendo que perdera minha esposa e meu apartamento de uma só vez.

Não tardou muito para receber do escritório de arquitetura, onde construí minha vida (sim, sou arquiteto de formação), a notícia de que estava de aviso prévio – a notícia desesperadora do desemprego. A justificativa para tal eram a crise financeira e a necessidade de promover cortes no número de pessoal da firma. Quando meu superior inteirou-me do fato, desfaleci.

Eu então vira casarem-se as três notícias ruins ao mesmo tempo: a carta de despejo, o aviso prévio, e a infelicidade de perder a companheira de toda uma vida. Tinha meus dias contados para encontrar novo emprego... Que fiz eu? Bom, assim como relatei no começo, fui dormir. Senti que estava paralisado e que não poderia fazer qualquer outra coisa. Dormi por três dias.

Mas, caro leitor: hoje estamos em julho de 2012, e as coisas mudaram sensivelmente. Aluguei um espaço menor para morar onde cabem meus poucos móveis. Os móveis deixados por Tereza. Também consegui trabalho em uma nova empresa onde, embora não me paguem tão bem como antes, recebo o suficiente para as despesas. Já em relação a Tereza, nada de novo.

Eis que hoje à tarde tive uma agradável surpresa: a dona baratinha. Eu a trouxe do antigo apartamento para cá. O mais lógico pensar é que minha inquilina tenha se escondido debaixo de uma mesa, ou dentro das gavetas de minha escrivaninha, à espera do novo lar onde, vivendo solidariamente, éramos por fim só os dois.

Desta vez, encontrei a barata na cozinha, quase totalmente coberta pelas caixas de papelão que surgiram das embalagens da mudança. Andava entre a mesa da cozinha e a pia do outro lado. Caminhava espevitada, rapidamente de um lado para o outro. Na certa, procuraria um lugar para fazer morada naquele cômodo do apartamento. Viveria das migalhas da cozinha.

Não. Meu doce inseto não causa em mim espécie. Não tenho nojo da barata nem me sinto incomodado de qualquer forma com a sua presença. Muito ao contrário, é uma boa companhia para mim. Sem estapafúrdio, lembro-me de ter procurado um pouco de comida para minha companheira. Joguei migalhas de pão dormido nos quatro cantos da cozinha.

Eu chorava de alegria esta tarde, jogando os pedacinhos de pão no chão da cozinha, quando dei por mim por descuido esmagando com o pé um porta-retratos que caíra no chão da cozinha. Quebrei sem querer o vidro e quase estrago a fotografia. Tomei-a à mão e li o que diziam as palavras rabiscadas no verso. Na frente, só eu e Tereza nos abraçando.

A letra no verso da fotografia não era minha, era coisa de Tereza: “12/08/2005 – Ariel e Tereza em comemoração – Guaraparí” e “Para Ariel, um ditado que lhe cai bem ainda hoje (subscrito de maio de 2012), ‘Quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita’”. Quis chorar, mas logo mudei de ideia e caí na gargalhada. Só depois, corri ao papel para escrever estas linhas.

Dona baratinha ainda anda na cozinha; podia vê-la caminhar entre os quatro cantos sem nenhum medo de mim. O mais lógico pensar é que ela pertence a mim assim como eu a ela. O que pesa em mim como solidão, certamente pesa nela como um terrível fardo. Odeio espaços vazios e (uma vez que ela soubesse falar), a baratinha certamente concordaria comigo.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 15/07/2012
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T3779578
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