Um só coração, um só amor

Estão ambos em cena, com seus figurinos. Ela com um longo vestido preto com uma fenda na perna direita, salto alto, cabelo preso apenas de um lado com uma presilha vermelha. Ele com uma calça e suspensórios pretos passando por cima da camisa branca e uma gravata vermelha. Ela diz: “Então isso é tudo?” – Chora. “É apenas o fim!” – Diz ele enxugando com um lenço a lágrima que escorre pelo rosto dela. Olham-se fixamente. Aos poucos ele substitui o lenço pelo toque de sua mão. Aproximam-se lentamente, vão se beijar. Quando seus lábios estão quase se encontrando, ele se afasta. Ela olha tentando entender. Ele abaixa a cabeça, continua se afastando, olha mais uma vez para ela e sai correndo. Ela o segue. Inicia-se então uma pequena perseguição.

Ele entra numa sala e fecha a porta apoiando-se nela como se quisesse evitar que ela entrasse. Abaixa a cabeça repentinamente... Enquanto levanta a cabeça, segura a porta com uma mão e com a outra vai desfazendo o nó da gravata lentamente. Tira a gravata, encosta-se na parede e abre o primeiro botão da camisa para recuperar o fôlego, vai dobrando a gravata quando ouve alguém bater na porta: “Posso entrar?” – Silêncio – “Sou eu!” – A porta se abre e entra Flávia. Carolina olha pra ela e responde: “E aqui sou eu!” Ambas parecem decepcionadas.

Flávia se aproxima da amiga dizendo “Está tudo bem!” e senta-se numa cadeira próxima à mesa. “Estão conseguindo se virar?” – pergunta Carolina. Flávia responde balançando a cabeça positivamente e diz: “Ambos temos alguma noção. Claro que se tivéssemos alguém olhando de fora nos ajudaria, mas está funcionando bem mesmo sem direção. Me lembro quando você dirigiu o “Alvo” e deu o personagem da Marieta pra sem graça da Diana, mesmo sabendo que o personagem era pra ser seu. Lembro bem de você ajoelhada no palco mostrando pra ela como se fazia o triângulo: – Reproduzindo – um traço (desenha um traço diagonal de cima para baixo no ar), dois traços (faz outro traço no ar em diagonal partindo do mesmo ponto de início do primeiro de cima para baixo) e três traços (traça uma linha horizontal fechando o triângulo imaginário).” – Carolina ri e se senta numa cadeira jogando a gravata em cima da mesa sem perceber o vidro aberto de mostarda que cai manchando a gravata. Flávia se aproxima da amiga e acaricia seu cabelo curto – “Você é uma boa diretora, mas prefiro você em cena. E você sabe bem que nasceu pra ser atriz!”. Carolina respira fundo, pega a gravata e vai para o banheiro. “O ensaio hoje foi muito bom!” – Diz Flávia ouvindo o barulho de água da torneira do banheiro onde Carolina tenta em vão tirar a mancha de mostarda da gravata. “Quase nos beijamos!” – Completa Flávia. A torneira se fecha e Carolina volta pra sala.

Flávia, como sempre, acompanhava Carolina quando aconteceu pela primeira vez e sem nada entender questionava: “Carol, você está bem?”, “Carol fala comigo”, “Carol, você esta me ouvindo?”. Assustada ouviu da amiga algo que não esperava de forma alguma: “Quem é Carol? Meu nome é Tom!”.

A primeira vez que Tom apareceu foi na entrada do teatro. A postura de Carolina mudou completamente. Mudou também o jeito de falar, de andar e principalmente de olhar. Olhava tudo como se fosse pela primeira vez. Ali da entrada podia ver a plateia. Maravilhado subiu correndo as escadas de acesso ao público. Ao entrar pela lateral da plateia, observa tudo com o encantamento de uma criança que vai pela primeira vez a um parque de diversões. Flávia entra logo atrás e senta-se na plateia. Tom toca o estofado das poltronas, contempla até o carpete e se deparar com o palco. “Posso subir?” – com brilho nos olhos pergunta para Flávia que prontamente autoriza. Sobe ao palco, caminha por toda sua extensão, olha tudo apaixonadamente. Pára na boca de cena, olha para Flávia e diz com segurança: “avise a todos que vamos montar “Enamorados”. – Flávia levanta-se num salto e aproximando-se do palco perguntando sem dizer uma só palavra “Quem?”. E como se lesse seus pensamentos Tom responde com convicção: “Eu e você”. Ela sorri sem jeito: “Não sou atriz”. Ele desce do palco, a olha nos olhos e diz: “Mas sempre quis ser. A Carolina sabe disso e por isso escreveu este texto. Ela só não sabia que eu faria o personagem masculino. Aliás, ela não sabia que ela mesma o faria através de mim!”.

Transtorno Dissociativo de Identidade – Disse o médico que completou – Trata-se de uma condição mental onde uma pessoa demonstra características de duas ou mais personalidades ou identidades distintas, cada uma com sua maneira de perceber e agir. Carolina nunca mais seria apenas Carolina, pois vez ou outra “apagava” e não se lembrava de nada que seu alter Tom havia feito nesse tempo.

Flávia não sabe o que esperar de Carolina depois de contar sobre o quase beijo entre ela e Tom. Beijo esse que não está no texto, nem ao menos a intenção ou sugestão de um beijo. Carolina não escreveu isso, achava desnecessário esse beijo. Acredita que um beijo entre os personagens acabaria com a magia do momento proposto em seu texto. Preocupada Flávia vai logo perguntando: “Você vai me tirar da peça?” – “Claro que não! Você sabe muito bem que a é escolha não é minha, é dele!” – responde Carolina.

Pensativa, Flávia vai se aproximando de Carolina: “São muito parecidos. Sabe, às vezes tenho a impressão de vê-lo em você!?” – Descreve acariciando Carolina – “O cabelo curto, os olhos que parecem enxergar a minha alma, a boca, ombros, peito...” – Nesse momento Carolina segura a mão de Flávia sobre o lado esquerdo de seu peito e completa: “E coração! É o mesmo, sabia?” Ao que Flávia responde: “Sim! São como um só!”. Carolina respira fundo e sem mais conseguir segurar diz: “Somos um só! Com um só coração e um só amor!”.

Hellen Bravo
Enviado por Hellen Bravo em 23/07/2012
Reeditado em 10/08/2012
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