QUEM NÃO TEM COMPETÊNCIA, QUE NÃO SE HABILITE

Quem não tem competência, que não se habilite.

Era um sujeito amorenado, de cerca de trinta anos, ostentando uma grossa aliança de casado, vestido como metalúrgico, que absorto lia, em voz alta, um artigo do jornal local, sozinho, num bar de periferia de nossa cidade. Sua opinião provavelmente diferia da do jornalista, pois à medida que progredia na leitura, intercalava de vez em quando enfáticas frases:

- Não, senhor... mas não, senhor! Como é que diz isto?... Não... Não é assim!

De início, dado o costume de que as pessoas, quando estão a sós, se permitam pensar em voz alta, não me preocupei muito com a cena. O sujeito, porém, ao concluir a leitura, se deu conta, provavelmente, de que o autor da matéria estava certo e de repente acrescentou:

- Ah!..., perdão.

Logo identifiquei que se tratava de um obsessivo premido por um pensamento onipotente frente a uma possível matéria jornalística hostil aos seus interesses ou convicções, que ao sentir no final ter se equivocado, sentiu-se na pele do autor do texto e sentiu a necessidade de se desculpar.

Logo em seguida um outro sujeito, que parecia íntimo do primeiro, entrou no bar, se encaminhou até ele, e o saudou efusivo:

- E aí Joaquim? Como vai?

Aprumei curioso os meus ouvidos e por estar sentado de costas para eles numa mesa contígua pude ouvir privilegiadamente:

- To muito contrariado.

- O que ta acontecendo?

- Minha mulher. Não sai da minha cabeça.

- Problemas?

- O passado da minha mulher me perturba.

- O passado?

- Eu sei que não tem nada a ver mas...

- Mas?

- Ela ficou com um rapaz duas ou três vezes.

- Depois de casada?

- Não, mais de doze anos atrás. Ela era solteira. Só abraçou e beijou.

- Mas que é isso cara!

- É. Só abraçou e beijou.

- Como solteira tinha o direito de namorar, não acha?

- Eu sei que isso não tem nada a ver, mas me perturba.

- Perturba como?

- Toda vez que vou ter uma relação, isso vem na minha cabeça e interrompe.

- Olha cara você não pode deixar o pensamento vir e se agarrar nele assim.

- Eu fico querendo voltar no passado. Me sinto muito culpado.

- Deixa o pensamento vir e não resiste a ele. Ele passa.

- As pessoas que ela ficou eu tentaria...

- Se você se fixar em pensamento negativo, vira um sofrimento.

- Fico chateado, porque eu conheci ela antes.

- Antes de quê?

- De ter abraçado e beijado. Ela começou a trabalhar numa loja perto da minha casa. Se eu tivesse me aproximado dela antes, ela não teria se envolvido com ninguém.

- Será?

- Na época também eu mostrava o que eu não era. Talvez por isso ela não se interessou por mim.

- Como assim “eu mostrava o que não era?”.

- Eu só ficava vadiando. Não trabalhava. Matava aula.

- É arranjar namorada sem trabalhar, é difícil, né cara?

- Se eu tivesse conversado com ela uma conversa mais real, eu acho que ela teria namorado comigo.

- Então você tentou namorar ela uma vez e ela não quis?

- É. Ela não quis. Se a gente pudesse voltar atrás!

- Voltar atrás? Nem todo mundo quer voltar atrás cara! Eu mesmo não quero. To muito melhor agora.

- Se pudesse voltar atrás você poderia corrigir muita coisa. Você poderia ser uma pessoa muito melhor do que é hoje.

- Não. Nem pensar. Outra – aponta a garrafa de cerveja dirigindo-se ao dono do bar.

- Eu tenho até vergonha de conversar essas coisas com qualquer pessoa. Eu só conversei isso com ela e agora com você. As pessoas se souberem podem até me colocar em situação pior.

- Por quê?

- Elas vão ter uma idéia ruim de mim. Que eu sou um camarada fraco.

- E que mais?

- Bobo. Porque isso é uma bobeira, não é?

- Não é bobeira não. Tudo indica que você tem um compromisso com a perfeição Joaquim. Eu não sou. Você não é. Ninguém é perfeito. Perfeito é só Deus.

- Ta vendo. Eu pensei que você ia me entender?

- Eu? Porque eu? Eu não sou ninguém tão preparado para entender o outro. Sou um cara comum. – Obrigado, agradece a cerveja e enche os copos.

- Eu pensei que você ia me entender porque você passa uma situação semelhante à minha?

- Qual é cara! Quem? Eu?

- É. Você mesmo.

- Não to entendendo essa sua conversa agora.

- O pessoal todo fala que sua mulher não se comporta muito bem, por aí.

- Que isso cara! Isso só pode ser calúnia. Minha mulher é uma santa hoje e quando era solteira.

- Sei não. Às vezes a coisa ta na nossa frente e a gente não quer ou não pode enxergar. Mas os outros não perdoam.

- Cara, claro que eu não estou na sua situação. E é talvez por isso que eu posso lhe dizer o que to lhe dizendo. Quando a gente ta de fora, entende melhor. É mais fácil controlar uma coisa quando a gente nada ou pouco tem a ver com ela.

- Eu fico insistindo com minha mulher para que ela me dê detalhes. Eu quero saber tudinho. Tim tim por tim. Ela fica chorando e não fala nada. Eu quero saber as coisas como aconteceram com todas as minúcias, entende?

- Pois é cara, ta vendo? Você tem necessidade de controlar as coisas e quer que as coisas corram perfeitas. Se você entender que não existe essa possibilidade de perfeição nos seres humanos e que não se pode controlar tudo, você já começa a entender o seu problema.

- Eu fiquei falando para ela que estava tudo bem, que eu não tava mais pensando nisso, que minha angústia tinha passado. Só para confortar ela, sabe? Eu fiquei segurando. Mas não adiantou.

- Você sabe cara que, sob o ponto de vista da razão, o que você quer é impossível. Apesar disso esse pensamento atormenta você, angustia você, faz você perder muito tempo à toa sem a mínima possibilidade de sucesso.

- Esse rapaz não mora aqui na cidade. Coincidentemente encontrei com ele outro dia no Bradesco.

- E aí?

- Aquilo parece que piorou a situação.

- Por que piorou?

- Não sei. Quando eu vi ele assim... Eu imaginei ela com ele. Senti uma vontade de pular nele. Senti um aperto na garganta e fiquei zonzo. Aí, toda vez que lembro, vem um aperto e essa zonzeira. E vem tão forte que parece que foi ontem.

- Que situação, hein cara?

- Isso ficou entalado aqui, engasgado aqui – mostra a garganta. Até que um certo dia eu fui para um lugar mais isolado e lá eu abri o jogo com ela. Falei que estava sofrendo muito. Implorei pra ela me contar tudo com os detalhes que preciso. Choramos. Ela chora mais do que eu. Me da vontade de chorar pra valer... Mas... Eu choro pouco. Ela chora e a gente vê que ela está chorando mesmo. E ela falou assim: - Eu nunca vi você Joaquim, em dez anos de casada, chorando.

- Eu respondi: Não queira me ver chorando. Eu acho que eu iria chorar só se fosse por uma tragédia.

- ...

- A última vez que eu chorei foi na morte da minha mãe há dezesseis anos atrás. Eu estou com vinte e nove agora. Isso tudo é uma tragédia, não é?

- Talvez nem na morte de sua mãe você se permitiu chorar mesmo, né cara?

- Descarreguei mesmo foi quando ela foi enterrada. É o momento mais difícil.

- Você chorou?

- Chorei muito e lembrei quando tinha quinze anos. Meu pai tinha um ano tinha abandonado minha mãe e eu. Eu fiquei num beco sem saída. Gostava demais do meu pai e da minha mãe. Não consegui ficar do lado de um nem do outro.

- Mas você continuou morando com sua mãe?

- Claro. Mas passei a andar sem rumo pelas ruas e chegava em casa só de madrugada quando ela já tava dormindo. No outro dia de manhã ela me xingava, me batia, falava pra eu criar vergonha e arranjar um emprego porque precisávamos de dinheiro. À tardinha eu começava a andar em circulo pela cidade passando perto da casa da minha mãe e do meu pai. Chegava a bater na porta da casa dele, mas não esperava, porque vinha um pensamento me falando que se ele atendesse minha mãe ia morrer. Andava de novo e de novo me assaltava a vontade de voltar e bater na casa de meu pai. Quando chegava perto da porta, o danado do pensamento vinha de novo.

- Todo dia a mesma coisa cara?

- Muito tempo. Depois eu comecei a colecionar figurinhas e acho que isso aliviou bastante. Passava o dia inteiro trocando figurinhas, matava aula, vendia coisas da minha mãe pra comprar aquelas mais difícies. Você lembra quando tinha aqueles álbuns de jogadores da copa quando o Brasil foi tri.

- Lembro cara. Eu mesmo quase cheguei a fechar o meu.

- Um? Eu fechei três.

- E sua esposa cara? Quando você conheceu ela?

- Foi logo depois do enterro de minha mãe. Ela era minha vizinha e foi com a mãe dela. Quando ela veio me dar os pêsames eu passei a gostar dela. Mas não tive coragem de falar com ela. Quando eu vi ela sair um dia com um namorado que ela falou que não fez nada com ele, eu passei a ter que lavar as mãos toda hora que lembrava dela. Passei também a ficar muito tempo tomando banho. Ficava quase duas horas no banho. Tomava banho não sei quantas vezes por dia. Dependia de muita coisa. E passei a contar os vagões do trem de minério quando ele passava. Se errava, não dava tempo de voltar a contar, ficava parecendo que ia me acontecer alguma coisa ruim. Por isso que eu queria poder voltar no tempo pra consertar essas coisas.

- Pois é, o que estamos vendo aqui é um cara querer voltar ao passado (uns quinze anos atrás) e sair corrigindo as coisas que ele hoje acha que deveriam ser diferentes. Isso é tarefa para um Deus, não é mesmo? Você quer ser ou é um Deus?

- Claro que não.

- Claro que não o quê?

- Eu não sou capaz. Ser Deus é difícil. Difícil até de pensar.

- Então o que você vai fazer?

- Batalhar contra o pensamento como você me falou. Agora está um pouco... Um pouco não, bem mais fácil pra mim a respeito desses pensamentos.

- Por quê?

- Porque eu abri pra você e a sua intenção foi me ajudar e não a de me atrapalhar.

- Você acha que tem alguém querendo lhe atrapalhar na vida?

- No fundo, no fundo, a gente sempre tem inimigo na vida. Às vezes você ou uma outra pessoa pode me tratar como amigo, mas pode ser um inimigo.

- Você não acha... Você já pensou cara... Que o problema não é o outro, e pode ser você mesmo?

- É? Aí de novo, ta vendo? Você tava me ajudando. Mas agora parece que você também ta contra mim.

- Cara, essa conversa nossa já ta alongando muito pro meu gosto. Você me desculpa, mas eu vou lhe dar um conselho sincero. Pode ser que você não vai gostar, mas é sincero. Eu tenho que ir agora.

- Fala!

- Dizem que conselho não deve ser dado, né cara? Mesmo quando pagam a gente por ele temos de ter muito cuidado. Mas vou arriscar cara.

- Arrisca.

- Eu sinceramente acho que você deve procurar um médico, de preferência um psiquiatra.

- É mesmo?

- É. E acho também que você devia é deixar de frescura e comer logo sua mulher, porque ta sujeito um outro comer ela.

- Corno filho da puta!

- Corno do rapazinho do Bradesco!

- Olha você me respeita – empurrando o algoz.

- Deixa disso gente!

- Deixa disso!

- Deixa... – o dono do bar e mais alguns da turma do deixa disso tentam separar os dois com muito esforço, que furiosos continuam gritando e denunciando um ao outro, sem partir para as vias de fato, como sempre fizeram nas suas vidas.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 13/02/2007
Código do texto: T379464
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