COMER, COÇAR, FORNICAR, CUIDADO! SE COMEÇAR É DIFÍCIL PARAR

- Angela!

- Quem é?

- Eu!

- Um momento.

Passos na escada do segundo para o primeiro andar da casa. Abre-se a porta da frente.

- Homem doido! Quê que ocê ta fazendo aqui? Ta bêbado, de novo, né?

- Vim te vê. Te quero agora.

- Olha ocê ta passando dos limites. Não faz assim não. Eu já lhe pedi. Vai agora, lhe encontro na Sueli à tarde. Vai!Vai!

Voz no segundo andar.

- Oh Ângela! Quem ta aí?

- Tô subindo, amor.

Quarto do casal, minutos depois.

- Quem era?

- Tadeu. Um saco! Enche a cara e vem desabafar comigo. Não agüento mais.

- Estranho!

- O quê?

- Esse indivíduo ter a liberdade de vir aqui uma hora dessa falar com você!

- Oh amor! Ele acostumou na campanha, né? Ocê que deu muita intimidade pra ele, lembra? Mas hoje fiquei assustada também. Amanhã eu falo com a Sueli. Quer um cafezinho amor?

- Não. Obrigado.

- De nada. Vamos dormir que amanhã o dia tá cheio. O bicho vai pegar. Boa noite amor.

- Boa noite.

Ângela deita-se de lado e dá as costas para o marido. Aquela situação ultimamente era quase uma rotina. Até o acidente da mãe dela ele a puxava com carinho pelo braço e ela sempre correspondia.

Pensou:

- Nunca neguei fogo.

Mais reflexiva:

- Quase todo mundo na rua me elogiando... As mulheres... Os homens... Parece que... Ultimamente parece até... Parece que todo homem quê me pegar. Arnaldo ta doente. Só pode ser. Não gosta mais de mim? Não. Outra? Não. Se fosse, eu já tava sabendo. Mas e eu? Também...mudei. Não o procuro mais. Cansei. Assim ficou melhor. Olha o bandido. Já ta dormindo e roncando. Filho da puta. Eu devia é ...

Uma voz entra pela janela do quarto:

- Oh Ângela! Eu te amo, sua desgraçada! Ângela!

- Nossa, ele não foi embora ainda!- pensa e num átimo liga a televisão e o ar condicionado. A porta é fechada.

Ainda se ouve à distância com muito menor intensidade:

- Oh Ângela. Sua desgraçada!

Passos escada abaixo. A porta da frente abre-se e é fechada por fora.

- Não tenho outro jeito - pensa Ângela.

Projeta-se para Tadeu, os dois caem e se enroscam na grama do jardim frontal da casa, lado oposto do quarto do casal.

Mais de meia hora, talvez quase uma, passos escada acima. Ângela percebe que o marido dorme profundamente. Vai até o chuveiro. Água fria.

- Merda! Tenho que lavar meu cabelo de novo.

Termina o banho rapidamente. Troca a camisola. Vai até a varanda. Senta e começa a fumar um cigarro. Lembra mais uma vez aquele primeiro dia.

- Puxa, cinco anos já. Foi tudo muito de repente. A campanha do prefeito, vitoriosa por sinal, e a gente bem que colaborou... Nós visitando os eleitores na periferia. Ele gentil, se insinuando cada dia mais. Eu deprimida. Ele me escutando, se disponibilizando, me amparando. Fomos nos tornando confidentes, cúmplices. Um dia aceitei um carinho no carro. Aconteceu. Resisti algumas vezes. Fui deixando. Começou a ficar perigoso. Tentei fugir um tempo. Ele não deixou. Passou a me procurar insistentemente. Quando conseguia ficar a sós comigo me abraçava, me beijava, me comia com paixão, obsessão, loucura. Passei a ter muito medo. Estava ficando tudo muito perigoso. Não adiantava resistir mais. Pedi insistentemente pra ele me deixar em paz. Aí que não adiantou mais mesmo. Ele vinha pra frente aqui de casa e ficava horas me esperando até eu sair. Pelo celular ia insistindo:

- Desça que eu te quero agora, - e eu descia.

Ângela acende outro cigarro no que está acabando. Da varanda vê as luzes do bairro e com o olhar acompanha eventualmente algum carro que passa pela rua principal há duas quadras de sua casa.

- Fui ao médico. Psiquiatra. Ele me disse:

- Isso é paixão. Igual dependência de droga.

- Quis saber quem era ele. Eu não falei. Perguntou se havia contado para alguém: amiga, família... Disse que ninguém sabia. Mas a Sueli sabe. Ela guarda segredo.

...

- Repetiu pra mim várias vezes na consulta

- É paixão. É droga. É relação perigosa. Às vezes, uma situação interminável.

...

- Mostrou-se muito interessado no meu caso.

- Remédio não adianta, deixou bem claro. Sugeriu psicoterapia.

...

...

- No fim da consulta disse: Sei que você não vai voltar mais aqui. Nunca ninguém volta numa circunstância dessa. Seu vínculo com ele se tornou muito forte. Ta sujeito ninguém conseguir mais interceder. E se você não voltar aqui, eu não posso ir atrás, você sabe?

- E eu não voltei mesmo. Voltar pra quê?

O barulho do ar condicionado interrompe-se bruscamente. Acende-se a luz do quarto do casal. Ângela sorri:

- Três horas - pensa. Arnaldo é igual relógio. Acorda todo dia nessa hora pra mijar.

Ela sabe que ele sempre vem em seguida pra varanda, quando não a encontra no leito. Vem fumar um cigarro. E aí, juntos, sobram carícias, carinhos e quase sempre sexo.

Fica excitada:

- Ele sempre gosta de me comer mais é aqui mesmo. É sempre muito carinhoso, preocupado com meu prazer, muito paciente. A relação é sempre muito diferente uma da outra, sem pressa, prazerosa.

Sorri lembrando Tadeu:

- Um animal. Seu desejo é o de um bandido – vem pra matar ou morrer. Come rápido, como se tivesse faminto, sempre com voracidade, não mastiga. Chega e vai lambendo, chupando, mordendo, amassando e entra até o fundo.

Devo esclarecer aos leitores que Arnaldo e Ângela era um casal admirável. Seis anos já de casados. Ambos de família de muitas posses.

Ângela, que a natureza foi pródiga quando distribuiu para ela beleza, inteligência, candura, amabilidade, simpatia, é muito mais rica do que o marido. Trinta e três anos. Socióloga, doutora na USP, leciona Ciências Políticas numa das Faculdades locais. Respeitada tanta pela excelência de seu desempenho acadêmico, quanto pelo envolvimento na política local. Uma especialista natural no contato com o povo, no trabalho de campo, na conscientização ideológica das pessoas pobres da periferia.

Arnaldo, quarenta anos, advogado, administrador de parte da fortuna de sua família, principalmente do setor imobiliário e de laticínios. Seu sorriso constante, além de anunciar sua felicidade, inspira aos outros confiança, intimidade, liderança.

Ambos de formação evangélica, íntimos pela grande amizade entre as duas famílias se conhecem e se relacionam desde muito jovens. Houve um início de namoro quando Ângela se graduou na formação universitária, um intervalo no período de mestrado e doutorado, e logo que ela retornou para sua cidade natal não demoraram a ficar noivos e a se casar.

Não sei se vem ao caso, até mesmo para caracterizar a pureza do casal antes do casamento, lembro, quando há menos de um mês da cerimônia nupcial, num momento de intimidade, Arnaldo disse para Ângela:

- Tem uma coisa que quero te pedir.

- Diga amor.

- Pode ser uma bobagem minha?

- Não importa. O que é?

- Acho você tão linda Angela, tão sublime, uma princesa.

- Meu bonitão! E aí?

- Deixa eu te ver totalmente nua?

Incontinenti, Ângela fechou a porta do quarto em que os dois se encontravam na sua casa e foi se despindo. Peça por peça com toda naturalidade. Arnaldo se mantia numa distância de dois a três metros admirando-a. Olhou-a de frente, por trás, de cada lado, e ficando novamente mais perto de sua amada beijou-a na testa e abraçando-a ternamente disse:

- Ângela você é tão sublime, tão linda, tão maravilhosa. Você me ama?

- Amo meu amor, e pra sempre.

Arnaldo foi pegando cada uma das peças de roupa de Ângela do chão e dando a ela para a mesma se vestir. E como se houvessem combinado anteriormente abriram a porta do quarto e de mãos dadas foram dar uma boa caminhada pelas ruas próximas. Os dois estavam felizes, amorosos, serenos. O casamento celebrou aquele amor seis meses após.

Três anos se passaram. O relacionamento do casal e o comportamento de cada um deles individualmente eram uma dessas exceções de excelência em que não conseguimos encontrar um senão no caráter, no temperamento e no trato entre eles e o próximo.

Aí veio o falecimento da mãe de Ângela. O veículo dirigido pelo cunhado dela transitando com excesso de velocidade numa estrada asfaltada quando iam de uma das fazendas da família para a capital da Bahia se desgovernou e se projetou morro abaixo. Sua mãe saiu pela janela e horas depois foi encontrada morta, com fraturas múltiplas e com o rosto totalmente desfigurado. O pai de Ângela após o resgate e de ter tido os primeiros socorros num hospital próximo foi levado de avião para a capital das Minas Gerais. Politraumatizado, com fraturas de costelas, hemorragia pulmonar e insuficiência respiratória permaneceu quase um mês no CTI, num hospital de renome nacional, dois no quarto, e quase três em tratamento ambulatorial. O outro casal não apresentou nenhum dano físico relevante.

Ângela, apesar de ter herdado do pai a coragem, a determinação, a facilidade de comunicação com as pessoas pela sua legítima espontaneidade, tinha da mãe o colo, o aconchego, a proteção. Era difícil saber qual das duas era mais terna e bonita. O luto pela mãe e o acompanhamento dedicado durante a recuperação do pai, apesar do apoio irrestrito do marido, tornou a relação do casal um tanto melancólica, e ela muito sensível, fragilizada, quem sabe um pouco deprimida.

Foi logo após a recuperação do pai que Ângela voltou a visitar os eleitores, sempre em pequenos grupos, de elementos do partido de esquerda que há muito se filiara, e que se propunha, nesta época, e com chances reais, conseguir a prefeitura local, após quase vinte anos de comando de partidos mais de direita ou de centro-direita. Foi aí que conheceu o Tadeu e sua irmã Sueli e o relacionamento entre eles e o Arnaldo foi se estreitando.

Algum tempo havia se passado desde o despertar do marido e Ângela estranhou ele não ter vindo ainda para a varanda. Ia se encaminhar ao quarto e o telefone tocou e Arnaldo atendeu. Relaxou-se novamente. Não demorou muito – um estampido no quarto.

Em segundos alcançou o quarto do casal.

- Meu Deus, quê isso amor?

Arnaldo, com um revolver na mão direita e a esquerda comprimindo a região do coração, estava agonizante, caído ao lado da cama.

- Quê que ocê fez amor? – suplicando uma resposta.

- O vizinho.... ligou... Você está me traindo... Com Tadeu... Viu vocês dois ... da casa dele.

- Pera aí! Não. Não é bem assim. Eu quero lhe explicar amor!

- Você disse ...que ia ... me amar... ... para... sempre.

Ângela já ao lado do marido, de joelhos, em prantos, beija sua testa. Pega o revólver da mão dele, se afasta quase dois metros, senta-se encostada na parede e atira no próprio peito. O marido sentindo a respiração quase impossível, quem sabe num último gesto de amor, rasteja até o corpo de Ângela, pega novamente o revólver, se distancia o máximo possível dela rolando seu corpo e se deita de lado com a arma voltada para seu peito.

A perícia criminal parece que acudiu a nobre intenção de Arnaldo e foi talvez também influenciada pelo grande poder financeiro e pela tradição da família de Ângela. Realmente não houve muito empenho na determinação da verdade. A conclusão do laudo foi lacônica e direta – o marido havia matado a mulher e se suicidado.

O pai de Ângela suportou a vida ainda três anos e faleceu de morte súbita, talvez, de um infarto agudo do miocárdio.

A dependência por álcool do Tadeu levou-o primeiro a perder a clientela – era psicólogo. Em pouco tempo desenvolveu uma cirrose hepática e teve sua primeira internação por hemorragia digestiva de ruptura de varizes do esôfago. Sua esposa, com suas duas filhas, foi morar com os pais dela, até porque chegou a não ter a mínima condição de sobrevivência para ela e para as meninas.

Tadeu cada vez mais foi sendo assumido por sua irmã Sueli pela necessidade de constante assistência médica e pela tentativa de sua aposentaria por invalidez física e mental aos quarenta e três anos. A segunda hemorragia digestiva inundou-lhe os pulmões e morreu nos braços da irmã de anemia e insuficiência respiratória aguda.

Ah, ia me esquecendo: o vizinho delator morreu de velhice sempre guardando em segredo seu imenso amor nunca declarado por Ângela.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 13/02/2007
Código do texto: T379465
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