A ESTÓRIA DO CHICO VENÂNCIO E DE SUA ADORÁVEL LALINHA

- Lembro-me muito bem do enterro dele. Finalmente, havia descansado o homenzarrão. Homem valente, vida infeliz, triste sina. A cidade inteira estava lá. O Padre Antonio, (brincadeira!), fez uma prática comovente. Enalteceu todos os predicados dele em vida, mas, naturalmente, omitiu seu lado escuro, sombrio, mesquinho. Pessoalmente, fiquei todo o tempo indiferente. Ele me fez muito mal, e paguei na mesma moeda. Deus, de vez em quando, precisa de uma ajuda humana para fazer justiça. Fiz minha parte, nem mais nem menos, me defendi.

- E a viúva?

- Coitada da viúva. Parecia um espectro, um fantoche, uma múmia. Primeiro em casa sentada ao lado do caixão o tempo todo. Depois , com um terço na mão, acompanhando o féretro, amparada por duas tias velhas e solteironas, na ida e na volta ao cemitério.E, finalmente, na descida do caixão.

- Os filhos ficaram...

- Dos doze filhos e filhas, somente o Zequinha faltou; permaneceu deitado, encolhido como um feto, sem comer e sem dormir, indiferente a tudo e a todos, como já estava há quase um mês.

- É um momento difícil.

- No final do enterro, choveu, choveu, choveu. Parecia que o mundo ia desabar. Parecia que Deus queria limpar todos os rastos deixados na terra pelo falecido ou queria aliviar de nossas mentes todas as lembranças dele.

- Não você sabe. Isso não pode ser uma preocupação de Deus. Isso é coisa dos homens.

- Eu sei. Mas, ele não sai fácil da minha cabeça. Era um bruto como ele só – a rudeza em pessoa. Destacava-se entre todos pelo porte, alto como um jequitibá, avermelhado e pesado como um jatobá, e tão grosso, largo, e falante, como uma samauma. De uma força de imobilizar com somente uma das mãos um animal – boi, cavalo, jumento – e castrá-lo, sem constrangimento.

...

- Diziam as más línguas, e com toda razão, que sua única fraqueza era sua esposa. Não propriamente ela, mas a beleza dela. De um lado, aquela sua força descomunal, do outro, aquela mulher irradiante, viva, impossível de ser apagada ou escondida.

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- Ao levantar, consumia uma rapadura, um jarro de coalhada e, ia para o curral, beber os seis litros de leite da mimosa, vaquinha que vivia somente para completar, diariamente, seu café da manhã.

- Um pouco exagerado, não?

- Sim, deve haver um pouco de exagero, mas, corria solto que comia no almoço e no jantar cinco a seis pratos de comida, cheios, em cada repasto.

- É possível.

- Não bebia, não fumava, não jogava, mentia somente quando absolutamente necessário, não era refém de qualquer outro vício ou desvio.

- Católico?

- Não praticante. Só entrou na Igreja três vezes. No batismo levado pelos pais, no casamento por força do destino e ameaçado pelo pai da noiva, e, quando encomendaram seu corpo.

- Alguma escolaridade?

- Formal, acadêmica, nenhuma. Analfabeto, sim senhor. O que não lhe causou qualquer dificuldade, pois nunca precisou ler ou escrever uma linha sequer para sobreviver.

...

- O trabalho diuturno desde a infância na lavoura, na pequena pecuária, e no comércio de uma coisa e outra, aos trinta anos de idade, o tornou senhor de uma sesmaria, de uma tropa valiosa de burros, e de uma digna moradia para os padrões da época e do local.

...

Foi aí, que se deparou com a Lalinha e, não demorou, seis meses após ela já era a famosa e cobiçada Dona Lalá do Chico Venâncio. O casamento foi todo certinho, mas se sabe nos bastidores que a noiva já estava grávida e que o pai dela não era desses de engolir desaforo fácil.

- É. Isso é muito natural.

- Mas é provável que tenha casado virgem do contato com mulheres, a não ser que, a vida campestre e a lida com tantos animais, possa ter propiciado sua iniciação sexual bem mais precocemente.

- Nem sempre, por quê?

- Eu já havia especulado e tinha informações precisas. Ele era impotente.

...

- Três meses após nasceu o primeiro filho dos sete do casal, praticamente um cada ano, e a vida deles foi se fazendo como Deus foi permitindo.

- É. Deus, os homens, e tantas outras variáveis, não é mesmo?

- Acompanhei sempre tudo muito de perto. E aquela mulher me perseguia, teimava em se intrometer no meu pensamento, e quanto mais a tentava afastar da minha mente, mais insistia.

- Perigoso.

- Aos quinze anos, já era mãe de dois filhos. De uma formosura que eu tinha de tirar os olhos dela sempre que a via, para não pecar por cobiça – assim era a Lalinha.

...

- Uma conduta irreprimível. Sua vida era a do lar e dos trabalhos na Igreja. Seguiu a trilha de sua mãe. Religiosa, prendada, prestativa.

...

- Três anos haviam passado, e, numa manhã, a cidade acorda aterrorizada pela crueldade da notícia. Um vaqueiro fora encontrado pendurado numa árvore, morto por dezenas de facadas no peito, sem os dois olhos, e, emasculado. Era um dos três homens de confiança do Chico Venâncio, íntimo da família dele, pai de seis filhos menores, casado com Dona Clotilde, mãe de leite do filho dele. Fui chamado ao local, mas quando cheguei, já o haviam retirado. Estava coberto por um lençol branco, aguardando o cabo Jerônimo.

- É, de toda maneira, era impossível chegar a tempo.

- Chico Venâncio foi exemplar. Estabeleceu um prêmio de cinco mil cruzeiros para quem descobrisse o criminoso. Mandou amparar totalmente a família do colono, transferindo-a para uma casa próxima da dele, e com seus capangas passou um mês, especulando, interrogando alguns suspeitos, ameaçando ora um, ora outro, incansável, na tentativa de descobrir o assassino. O sogro e a sogra dele foram amparar a filha e o neto, porque o genro obcecado, após enterrar o empregado, não mais visitou,naquele período, uma única vez, a sua família.

- Há quanto tempo foi isso?

- Exatamente dia 23 de agosto de 1954. Um dia antes do suicídio de Getúlio Vargas no Catete.

- Então, há quatro anos e seis meses atrás.

- Sim. A população de Santa Maria do Desterro acompanhou atenta, solidária, e principalmente curiosa, a caçada ao facínora, e qualquer outro assunto, diuturnamente e por muito tempo, não conseguiu atrair ou interessar seus moradores.

...

- Todas as possibilidades e mais algumas foram levantadas pelo povo, desde a de ser obra do maligno, (brincadeira!), passando pela possibilidade de suicídio, até as mais engenhosas estórias de acerto de contas.

- É muito natural.

- Claro. O tempo foi passando, e como tudo na vida, outros acontecimentos menores foram se destacando, e um ano após o assunto já era coisa gasta, vazia, inexpressiva.

- É assim o mundo dos homens.

- Mas, de repente, o farmacêutico local, homem sensato, de fala mansa, bem casado, que, também exercia a função de médico e conselheiro local, e meu amigo íntimo, dá entrada, no final da tarde, morto, por enforcamento, amarrado a seu cavalo, sem os olhos, e mutilado na genitália, como o vaqueiro há um ano atrás.

- E aí?

- A tragédia não ficou restrita à jurisprudência local. Um delegado da capital foi designado pelas altas patentes políticas e veio com mais dois policiais investigar o fato. Convocaram a ajuda do cabo Jerônimo. Instalaram-se numa casa alugada, na praça da Matriz, e gemidos e ranger de dentes, por dois ou três meses, assolaram a nossa pequena comunidade. Desta feita, a coisa não ficou somente com os mais humildes. Muita gente de nome foi instada a comparecer e a prestar declaração. A vida de cada um e de todos nós foi investigada e muita intimidade foi devassada, evidenciada, execrada. Nem mesmo eu fui poupado do alvitre, da infâmia, da ignomínia.

- É, ninguém está acima da lei e da opinião pública, não é mesmo?

- Um aspecto positivo, porém, se fez presente. Nesse clima de terror, de medo, de inquisição, a vida da comunidade quase ia atingindo a perfeição dos bons costumes e da completa ordem.

- Mas...

- Mas numa madrugada de lua cheia, o delegado, todo poderoso, é visto em desabalada correria, na estrada que dá acesso á cidade, totalmente nu, atemorizado, como se estivesse fugindo de alguém em seu encalço. A investigação, naturalmente, no dia seguinte foi interrompida, para a paz de todos e de alguns pecadores mais renitentes.

- A cidade ficou desprotegida.

- Uma verdadeira lástima. Os crimes, os roubos, as brigas, aumentaram. Ninguém respeitava mais ninguém. Ficamos todos reféns de nossos instintos e tendo de nos defender por conta própria a nossa sobrevivência.

- Naturalmente.

- E pior. Tudo, por mais escabroso que fosse, parecia normal. Ninguém mais se surpreendia, se revoltava, se condoia. Tanto assim, que todo mundo só especulava quem seria o próximo a perder os olhos, a genitália, a vida.

...

- Tanto assim que quando o quinto crime aconteceu ainda deu um certo reboliço, mas, o sexto, já constituiu um fato gasto, provável, rotineiro.

- E o senhor como o pároco, nada suspeitava, nada sabia?

- Tudo. E esse é o meu crime, senhor Bispo. E tão inominável, que venho a essa diocese, apelar vosso perdão, e solicitar minha exclusão da Santa Amada Igreja.

...

...

...

...

- E que o senhor pretende fazer agora de sua vida?

- Viver com a Lalinha e com os meus sete filhos.

- Como?

- Todos são meus filhos, senhor Bispo.

- Mas como?

- Pequei por fornicação com ela ainda virgem. Quatorze anos. Fui eu que a orientei para seduzir o Chichico Venâncio. Pretendia nunca mais molestá-la. Mas não consegui. Estava doente, moribundo, dominado pelo desejo por ela. E cada vez que ela ficava grávida, ela seduzia um novo admirador e deixava pistas para que o marido fizesse o fragrante antes de consumar o ato. E ele ia eliminando, um por um, até que no sétimo, ele suspeitou de mim, e tive que matá-lo, de tocaia, para não ter o mesmo fim de todos os outros.

- Inacreditável.

- E eu não acertei bem o tiro. Atingiu seu pescoço, destruindo sua laringe e atingindo sua coluna cervical.

- Ficou tetraplégico.

- E sem possibilidade de falar. E somente com o cérebro, os olhos, e os outros sentidos, não conseguiu me destruir, até morrer dois anos depois. Que Deus me perdoe, senhor Bispo.

...

- Que Deus o perdoe, Antonio Brito.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 13/02/2007
Código do texto: T379472
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