OLHANDO PARA DENTRO

OLHANDO PARA DENTRO

Eram 3h30 quando ele abriu a porta do apartamento em que mora, no quinto andar do Edifício Luiz Costa. Tinha o semblante transfigurado. Estava bêbado, como de costume, o que lhe custara a perda da sua família. Sua esposa, Angélica Trindade não aguentando mais aquela situação, o abandonará fazia oito meses, e levou consigo o filho do casal, de dois anos de idade.

O próximo baque na sua vida foi a perda do emprego, onde com exímio profissionalismo dirigia uma equipe de dezesseis funcionários de um banco privado. Era o gerente mais querido. Contudo, em função das diversas bebedeiras, chegava atrasado ou não ia trabalhar. Após advertências sucessivas, viu-se desligado do quadro de funcionários da instituição, fato que o afundara ainda mais, pois tinha verdadeira dedicação ao seu trabalho.

Hoje, contudo, longe da família e desempregado, se viu numa situação vexatória. Aqueles que se diziam amigos foram se afastando um a um e os tapinhas nas costas de outrora escassearam. Em que pese seu currículo, estava difícil arranjar trabalho, principalmente no seu ramo de atividade. E isso o desesperava ainda mais. Inúmeras vezes voltou para casa sem nenhuma probabilidade. A expectativa de antes dava lugar ao desânimo, e ele deixou-se abater ainda mais.

Andava macambúzio, via os dias passarem e nada que pudesse comemorar. Sua última esperança era um escritório, para onde ele enviara um currículo e tinham marcado uma entrevista para aquela tarde. Ele barbeou-se, vestiu-se com seu melhor terno e meia-hora antes do combinado se fez anunciar. O coração batia descompassado, parecia até que era marinheiro de primeira viagem. As mãos denunciavam o nervosismo, em que pese tentar passar tranquilidade.

Quando ele entrou na sala para a entrevista, reconheceu que ali estava um velho amigo de faculdade, que residira na mesma república que ele quando vieram do interior para estudar Administração de Empresas numa faculdade federal de grande prestígio.

Várias vezes socorrera o amigo e colega quando seus pais não podiam, de imediato, mandar a mesada que o ajudava a manter-se na capital. E ele, por ter uma família de posses na época, por diversas vezes assumiu as dívidas do colega para que o mesmo continuasse tranquilamente estudando até que seus pais pudessem enviar a mensalidade com a qual ele fazia frente aos gastos inúmeros para manter-se na capital. E hoje ele estava ali, diante daquele velho companheiro com o qual perdera o contato por décadas.

Estava nas mãos do amigo a sua sorte e a oportunidade de erguer-se, pois embora o salário nem de longe pudesse competir com aquele que ele ganhava no banco, ali estaria a grande oportunidade para refazer a vida após inúmeras tentativas frustradas, após bater na porta de vários bancos.

Cláudio Amorim. Este era o nome do dono da empresa de contabilidade e administração que prestava serviço a grandes multinacionais e que o reconheceu de pronto. A seleção dos currículos ficara a cargo de dona Etelvina, chefe do setor de recursos humanos, e caberia a ele tão somente a entrevista com os candidatos.

João Trindade apresentou-se como um dos pretendentes ao cargo e notou que o velho amigo agia como se não o conhecesse, tratando-o com excessiva formalidade. Ele ainda tentou trazer ao presente aqueles dias memoráveis, quando estudavam na mesma sala, moravam na mesma república, pegavam a mesmo ônibus até a faculdade. Muitas vezes dividiam o lanche...

Ele sentou-se com as pernas trêmulas diante daquele que poderia ser sua tábua de salvação, a proporcionar-lhe novo recomeço. Cláudio Amorim o olhava atento, e de chofre o interpelou sobre sua vida, pois ficara sabendo do ocorrido no banco no qual trabalhava e a inevitável demissão pelos seus clientes.Aquela pergunta o deixou atordoado. Quis articular algumas palavras, mas não consegui. As mãos pareciam pesadas e ele as descansou sobre a mesa. Amorim, ainda o inquiriu sobre alguns fatos, obtendo como resposta que aquela chance lhe devolveria sua vida e por certo seria uma razão ainda maior para ele abdicar do álcool por completo.

Cláudio Amorim sorriu, ignorando o estado de aflição daquele homem que estava ali abatido diante dele, pedindo socorro. E sem esboçar nenhuma emoção, Cláudio anunciou que a vaga já havia sido preenchida algumas horas antes. Ele, tentando superar-se, tentou erguer-se, mas as pernas, contudo, não responderam. As mãos descontrolaram-se. Fez de tudo para não chorar diante do amigo, e sem saber onde arranjou ainda alguma força dentro de si, levantou-se, passos indecisos, enquanto Cláudio Amorim o observava impassivo.

Quando ele chegou finalmente à calçada, deixou explodir a emoção. As lágrimas caíam sem controle. Ele parecia ter envelhecido alguns anos naquela sala, diante do amigo. Andava sem direção quando notou que estava diante do banco no qual trabalhara por anos e onde era respeitado e admirado por todos. Lembrou-se de como começou a beber e as consequências que até ali lhe alcançaram drasticamente, como se estivesse cobrando dele mais compostura.

Continuou a andar, os passos ainda vacilantes, mas demonstravam agora alguma firmeza. Olhou para o céu e algumas estrelas já despontavam, em que pese a fina garoa que lhe fustigava o rosto, mesclando-se com as lágrimas que ainda escorriam. Os passasos agora estavam mais resolutos. Ao passar em frente ao bar onde todo dia assinava o ponto, alguns amigos de copo o chamaram. Ele parecia não ouvir e continuou firme a sua caminhada.

Quando chegou ao prédio onde morava, ignorou o elevador e subiu cada degrau da escada até o quito andar, onde ficava seu apartamento. E parecia que a cada lance ele estava vencendo a si mesmo. Entrou ao apartamento, sentou-se na cama e ligou para um velho e conhecido número. Do outro lado uma voz infantil atendeu ao chamado. E uma exclamação se fez ouvir: "Pai!"

ALBÉRICO SILVA