O pai de Isabela era a rigidez em pessoa. Devia ter lá suas razões - mesmo o louco, o insensato, o ignorante, tem, em si, sua lógica.
Assim como a natureza faz uma árvore, um inseto, um animal, desenvolver uma carapaça, uma couraça, uma pele espessa, para se defender dos predadores, a esquelética proteção do senhor Luiz Ambrósio, o protegia sem dúvida, mais de si mesmo e da sua incapacidade de amar, do que dos outros, ou do mundo, e o tornava uma pessoa de pouca mobilidade, previsível, fácil de ser conjeturado.
No ser humano nada dissolve mais a couraça do caráter, as defesas neuróticas muito bem estruturadas, a tendência a se comportar sempre da mesma maneira para o bem ou para o mal, do que as carícias bem feitas pelos cuidadores, principalmente entre os três e os cinco anos de idade de uma criança, dizem os especialistas.
Freud ressaltou o complexo de Édipo denunciando que o menino deseja sexualmente a mãe nesta fase da vida. Está sujeito, porém, ter esquecido que o colo da mamãe (e, quem sabe, do papai, também) é gostoso, é morno, é quente, e a sensação de ser acolhido em coisa viva, além de ser irresistível para a natureza humana, é fator determinante na formação e na estruturação de nossa identidade e personalidade.
No entanto, a mãe e o pai, se intimidam, tanto quanto o filho e a filha, porque a cultura, o senso popular, e a religião, tendem a ameaçá-los contundentemente - aos primeiros com o perigo do incesto, e aos segundos, com a exclusão compulsória de seu grupo masculino e feminino.
Luiz Ambrósio assim estava fadado a se defender sendo um perfeito compulsivo - controlador e sedutor ao mesmo tempo.
E como nossas emoções reprimidas ou defensivas desde a infância começam a moldar nossa estrutura física, quando adulto, sua parte superior do corpo se tornou mais larga, predominando sobre a inferior.
Seus ombros eram muito mais largos do que sua pelve. Claro que não chegava a ser um triângulo com a base desenhada encima, mas parecia.
Andava com pernas que pareciam fracas e quase incapazes de sustentar o que se lhe vinha de cima.
Era como se estivesse amarrado pela cintura e naturalmente seu diafragma constrito lhe outorgava um padrão respiratório de pouco consumo de ar, como um asmático em crise, estimulando exageradamente sua capacidade mental, tornando-o muito atento aos meios de controlar e dominar as pessoas, as situações, e o meio ambiente, à sua volta.
Seus olhos eram sempre atentos e desconfiados.
Sua cabeça muito erguida, pescoço muito estendido, peito estufado, ora o fazia parecer orgulhoso - para alguns que pouco o conheciam -, ora lhe emprestava um ar de nobreza que pessoalmente não suspeitava ou reconhecia.
O medo de ser usado, de ser controlado, de depender do próximo, e sua tendência de estar sempre por cima dos demais, talvez denunciasse a dificuldade que teve em se identificar com um pai sedutor e com uma mãe com total incapacidade de lhe dedicar carinho fisicamente, e que sabia como ninguém, alternadamente, o agradar e o rejeitar, como uma maneira de o afastar, por medo de se emocionar e se capitular a ele.
Seu coração, fechado, defensivo, insensível, desde cedo, o protegeu, assim como sua capacidade de oprimir e atormentar todos aqueles que se lhe cruzassem o caminho, principalmente aqueles que, potencialmente ou ostensivamente, o ameaçavam, ou o interditavam, na mais insignificante que fosse de suas necessidades do dia-a-dia.
Investiu sempre muito na sua própria imagem e sua motivação mais vital era a do poder e a da necessidade de controlar e dominar, ter êxito, estar por cima de tudo, de todos, da vida.
Seu principal medo – a traição. Não confiava em ninguém. Qualquer um era na verdade um potencial traidor ou um inimigo.
Recebeu desde cedo responsabilidades maiores do que caberiam a alguém de sua idade e foi estimulado a crescer rapidamente.
Seu medo de não suportar o pesado fardo de que precisava carregar, sua deficiente ligação energética com a terra (sem grounding diriam os especialistas), o fez se sentir fraco, isolado, vulnerável, fazendo-o enfrentar a vida de maneira sempre agressiva.
Sempre esperou a traição de suas parceiras, e talvez por via das dúvidas, muito cedo, se antecipava e as traia primeiro.
Sempre assumiu mais incumbências do que podia administrar.
Correu continuamente contra o tempo, vivendo sempre um futuro que nunca chegou, ou se chegou nunca o bastou, porque necessitava e queria mais e mais – um perfeito saco sem fundo.
Teimosia, vingança, contradições manifestas, faziam parte de sua vida, porque estava sempre no ataque.
Deixar de controlar o outro, as situações, a vida – impensável.
Viver o presente, parar de correr rumo ao futuro, confiar no outro e em si próprio, conviver com a insegurança própria da vida, deixar de transformar a existência num constante campo de batalha – impossível.
Seu medo básico – a imperfeição.
Sua dificuldade maior – a incapacidade e a recusa em conhecer a si mesmo, pois tudo nos outros e no mundo, sempre foi falso, mecânico, uma possível preparação de um golpe futuro à sua pessoa.
Armado como um cavaleiro medieval, com sua imponente armadura, seu cavalo, e sua lança pontuda, achava o mundo sério demais e achatava a sua vida e a do próximo.
E como todo bicho muito cascudo (tartaruga, besouro, ...) morria de medo de cair de costas, e sua casca cada vez mais o oprimia, o limitava, o sufocava e a vida era um perfeito suplicio, principalmente quando as situações fugiam às suas expectativas, ou não respondiam ou não se moldavam a sua forma estereotipada e especial de reagir.
Nem de longe suspeitava, que sua iluminação, libertação, e a fluidez de sua vida, seria viver e deixar os outros viverem; que seu ideal maior seria em vez de uma estrutura rígida, o desenvolver um organismo sem estrutura fixa, e até mesmo sem princípios, sem nada rígido, apto a mudar muito e a mudar sempre, para se tornar um ser humano plástico, amoldável, vivo.
Somente o amor entendido como aceitação e harmonização das diferenças das pessoas, das situações, do mundo, poderiam o retirar de seu mundo de sombras cinzentas, vazias, inexpressivas.
Só deixando de ser sempre igual – na repetição de todos os seus ideais, comportamentos, papéis – poderia o fazer descobrir e sentir sua individualidade, libertando-o da prisão perpétua de ser sempre igual a ele mesmo e de não poder experimentar ser um outro ou um ninguém por toda a eternidade.
Aqueles que desfrutavam de sua intimidade reconheciam suas inúmeras qualidades – bom cidadão, bom pai, bom pagador – mas se ressentiam porque era uma pessoa sem diálogo – nenhum, nenhum, nenhum – principalmente seus familiares.
Sugiro que não percamos mais tempo em tentar explicar sua estrutura, seu arcabouço, sua postura. Deixemos essa tarefa para os cientistas, que gostam de também ter sua razão para tudo, mas sua estória de vida atestava desde o nascimento muitos impasses, embaraços, empecilhos.
Seu pai abandonou sua mãe, quando ele ainda imberbe tentava suas primeiras proezas nesse mundo dos homens, do poder religioso e político, da cultura.
Dizem que existem filhos que não se importam, que não tomam partido, que não se revoltam, num impasse difícil como esse. Luiz Ambrósio foi um deles. Arregaçou as mangas, trabalhou com afinco, escolheu sua amada e formaram uma família – ele, sua esposa e sua filha querida.
Isabela foi criada como uma princesa. Cuidados, carinhos, proteção, não lhe faltou, nem um pouquinho; acredito, que até mesmo, na maioria das vezes, seus pais excederam na forma e na medida.
Mas ela cresceu, como quase todas as moças na vida, e seus quinze anos foram festejados, como muita pompa, festa, requinte.
No dia seguinte, procurou o pai, e apreensiva foi sem cuidado ou preparo anunciando:
- Papai, eu estou querendo começar a namorar.
- O quê?
- É, estou pedindo sua autorização para poder ter meu namorado.
- Minha filha, você não acha que é muito cedo?
- Não, papai. Acho que já estou ficando para titia.
- E os seus estudos? Sua carreira? Sua vida?
- Oh papai, todas minhas colegas já estão namorando.
- Olha, acho que cada coisa tem seu tempo, minha filha. Espera mais um pouquinho. Que tal esperar seus dezoito anos? Eu mesmo e sua mãe...
- Oh papai, os tempos hoje são outros.
- Não são não, minha filha. O mundo sempre foi e será o mesmo, difícil, ameaçador, corrompido.
- Mas eu sei o que quero, papai. Já tenho os meus sonhos, minhas ilusões, minha vida.
- Minha filha eu sonho para você um homem de verdade. Nessa idade é impossível.
- O que é um homem de verdade, papai?
- Olha, tem que ser trabalhador, em primeiro lugar. Não pode ter vícios. Não pode fumar, beber, jogar. Tem que ser religioso...
- E se eu encontrar um rapaz assim?
- Você já está namorando, minha filha!
- Não. Claro que não. Como é possível?
- Eu vou falar com sua mãe. Depois conversamos.
Isabela, no mesmo dia, no colégio, confidenciou com Eduardo.
- Dudu, conversei ontem com o papai sobre o nosso namoro.
- Você falou com ele?
- Não, estou preparando o terreno. Ele ficou assustado. Achou que eu devo esperar mais três anos.
- Nossa, nem pensar. Que é isso?
- Ele falou que meu namorado não pode fumar, beber, ...
- Eu já sei toda a lista. Ser trabalhador, religioso, não fumar, não beber, não jogar, não deixar de escovar os dentes...
- Não brinca. Você já parou de fumar?
- Já. Não fumo nunca mais.
- Bom. Então falta somente parar de beber, arranjar um emprego, e voltar para a Igreja.
- Vou trabalhar com meu pai, de manhã.
- Ele ficou de conversar com mamãe e me dar a resposta.
Uma semana após Isabela teve a sua primeira decepção amorosa na vida. Os pais de Dudu, sem qualquer explicação, mudaram-se da cidade.
Roubo? Fuga? Novas oportunidades?
Ficou sabendo através de uma colega dela que era meio apaixonada por Dudu desde a quinta-série. Ela sabia, mas como havia apreendido com o pai que é melhor ter o inimigo bem perto, sob controle, do que longe, fazia que não sabia, e convivia bem com ela como uma inocente. Mas sua decepção foi que o pretendente nem se deu o luxo de se despedir.
A vida seguiu seu curso inexorável. Seu pai não se manifestou mais e tudo ficou como se não houvesse havido qualquer pedido da parte dela.
Fez o vestibular. Passou. Começou a fazer Direito. Enamorou-se de um outro colega do segundo ano. Começaram a namorar escondido. A mesma lista de predicado foi sobejamente levantada para o novo namorado, apesar dela saber que o mesmo não correspondia a nenhuma das exigências de seu pai, e ainda tinha mais alguns inúmeros defeitos um pouco irreconciliáveis.
Isabela deixou tudo muito claro:
- Olha, você vai falar para o papai que você não fuma, não bebe, não joga, é muito religioso, e que está trabalhando. Certo? Você vai falar só coisa boa.
- Certo.
Foi marcado oficialmente o dia em que o Mateus ia conhecer seus futuros sogros e seria submetido à tão insólita, extraordinária, desusada, sabatina, do senhor Luiz Ambrósio, em defesa da honra, segurança e felicidade de sua filha querida.
Chegaram um pouco ansiosos, os pais de Isabela, devidamente paramentados, os receberam à porta, mãe e filha sentaram-se no sofá maior na sala de visita, e o senhor Luiz Ambrósio e o Mateus se colocaram vis-à-vis em duas poltronas menores. O interrogatório, sem quaisquer prolegômenos, foi iniciado:
- Senhor Mateus, não é?
- Sim senhor.
- Minha filha já deve ter lhe falado com o senhor que para eu deixar o senhor namorar com ela, o senhor tem de satisfazer irrestritamente alguns itens iniciais. Ela lhe falou?
- Falou, sim senhor.
- Mas eu vou repetir. Para o senhor namorar minha filha, o senhor não pode fumar, não pode beber, não pode nem pensar em jogar - qualquer tipo de jogo, inclusive na loteria federal e na esportiva, e muito menos cartas, nem de brincadeira sem valer dinheiro -, tem que ser religioso, e tem que estar trabalhando, além, naturalmente, de prometer cumprir todas as regras próprias a um cidadão de bem, respeitador dos costumes, da ética, e principalmente da moral, costumeira, habitual, consuetudinária. O senhor entendeu? O senhor tem essas qualidades?
- Sim senhor.
- Então? O senhor deve falar com suas palavras.
- Olha, o senhor falou que não pode fumar, já vou adiantando, eu não fumo. O senhor falou que não pode beber, eu não bebo, aliás, eu nunca bebi. O senhor falou que não pode jogar, eu não jogo, a não ser de vez em quando umas peladinhas por aí. Sou desde o berço de estreita formação religiosa, católico como o senhor. Quanto ao trabalho, deve o senhor saber, que estou acostumado desde o início da adolescência a trabalhar, inclusive sou eu quem sempre paguei minha formação acadêmica.
- Muito bem. O senhor falou sobre as suas qualidades, mas todo mundo tem defeito. O senhor não pode ser uma exceção. O senhor deve ter algum defeito.
- Olha, senhor Luiz Ambrósio, realmente estaria mentindo se não dissesse que também tenho algum defeito. Sou humano como qualquer outro ser humano.
- E qual é o defeito que o senhor tem?
- Olha, senhor Luiz Ambrosio, na verdade, o único defeito que eu realmente tenho, é a tendência de falar uma mentirinha de vez em quando. Mas somente quando absolutamente necessário.
CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380627
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