A ESTÓRIA DO MENINO E DA VENDA DE SEU MACAQUINHO

Quem me contou essa estória foi a Dona Maria, minha avó materna. Maria de que mesmo? Não me lembro mais com certeza. O sobrenome da minha mãe é Almeida, então, Maria Almeida. O resto, depois eu lembro. (Uma boa maneira quando a gente esquece algo é falar: - Eu esqueci. Isso retira a tensão do cérebro voluntário, e o automático fica buscando na memória. De repente, quando a gente acredita mesmo que esqueceu, o esquecido é lançado subitamente na consciência novamente). Mas minha avó materna morreu com noventa e quatro e eu tinha então vinte e cinco anos. Lá se vão trinta e cinco anos. Puxa, como o tempo passa depressa.

Nessa época não sabia essa coisa de que para contar bem uma estória é preciso precisar bem o lugar e o tempo em que ela se passou. Mas foi nas Minas Gerais, porque, (ah, lembrei o nome dela!) Dona Maria Augusta de Almeida, só conheceu duas cidades. Pará de Minas, sua cidade natal e a capital mineira. Chegou e instalou uma pensão perto do quartel do 5º. Batalhão de Infantaria, no Bairro Floresta, e foi ai que meu pai conheceu minha mãe, sua filha caçula. Ele era soldado da gloriosa Polícia Militar de Minas Gerais.

Desculpem-me, mas um pouco de história é fundamental. E como minha avó materna veio para a capital mineira, aproximadamente aos trinta anos de idade, exatamente quando Curral Del-Rei passou a se chamar Belo Horizonte, em 1906, acho relevante conhecermos um pouco essa estória de mudança da capital mineira de Ouro Preto para Belo Horizonte.

No entanto, como sei que o leitor não gosta dessas digressões dentro do conto; acha que está sendo enganado se não vamos direto ao assunto proposto no título do mesmo, ou sua vida e seus afazeres não lhe reserva tempo para ouvir uma boa estória e ao mesmo tempo recordar um pouco da história de sua cidade ou de sua pátria, me capitulo. Convido-o, porém, prezado leitor, ao final do conto em si, não perder a interessante história da mudança da capital mineira, repito, de Ouro Preto para Belo Horizonte.

Sem mais delonga, o certo é que, certa feita, minha avó materna me contou que todo menino é curioso e não pode ver uma coisa diferente.

A mãe de Joãozinho, atarefada na lida daquele dia, chamou-o, deu-lhe um dinheiro e disse:

- Meu filho, vai na feira, comprar isso aqui – mostrou-lhe uma lista de muitos itens.

Ele pegou o dinheiro e foi.

Devo acrescentar que Joãozinho apesar da tenra idade, nove anos, miúdo, inquieto, esperto como um cabrito, não gostava de estudar. Seguia a mesma história de vida de seu pai. Mas era um excelente comerciante unicamente por graça de Deus, porque outros fatores não o ajudavam – pobreza, pouca escolaridade, falta de contato com mestres da arte de comerciar. Por isso, a confiança cega de sua mãe nele. Quando precisava comprar ou vender qualquer coisa, era com ele.

Antes de chegar na feira, porém, Joãozinho, logo na entrada da mesma, encontrou um homem vendendo um macaquinho. O macaquinho pulava, subia no ombro, na cabeça, do seu dono, abraçava seu pescoço, comia banana, fazia caretas, trejeitos, micagens. Ele ficou atônito, extasiado, inquieto, admirando o simiozinho – um nosso ancestral segundo Darwin.

O homem doido para vendê-lo passou-o para o ombro do menino. Esse não agüentou.

- Quanto o senhor quer no macaquinho?

- Tanto – era um pouco mais do que o dinheiro dele.

Passou a praticar sua primeira regra de sua esmerada técnica de comprar. Sabia que oferecendo dez por cento a menos, e em alguns casos, cinqüenta por cento, dependendo da situação levaria o primata. Tentou cinqüenta. Viu que o homem assustou. Foi diminuindo, devagarzinho, chegou aos trinta por cento. Seu dinheiro só dava para vinte por cento.

Negociou. Negociou. Negociou. Nada. O vendedor estava inflexível.

Passou para a segunda regra. Desistiu. Deu de ombros teatralmente. O vendedor aceitou.

Joãozinho todo alegre, voltou para casa, pulando, sorrindo, entusiasmado, com sua prenda.

Logo ao chegar em casa uma atroz decepção:

- Meu filho, o quê que é isso? Cadê as compras?

- Oh mãe, eu não agüentei. Olha que macaquinho bonito! Eu comprei ele.

- Meu filho, onde ocê ta com a cabeça. Volta e devolve esse danado desse macaquinho – e brigou sério com o menino. Ele tentou uma ou duas de suas razões. Não obteve sucesso.

- Volta que eu não quero esse danado desse macaquinho. Eu quero minhas compras. Volta já. Vamos!

Lá vai o Joãozinho de volta para a feira devolver o macaquinho para o vendedor dele. Procurou em todo lugar. Não o encontrou. Pensou:

- E agora. Se eu voltar vou levar uma boa surra.

Tentou oferecer o macaquinho para as pessoas da feira. Oferecia para um, não queria. Oferecia para outro, não queria. Tentou muito. Em vão.

Voltou no local da compra e procurou levantar alguns dados dos feirantes sobre o homem do macaquinho. Era novo na praça, ninguém sabia nada de relevante que pudesse ajudá-lo a localizá-lo.

Passou a andar pelas casas próximas, batendo, e oferecendo o macaquinho.

Andou muito, muito, muito mesmo. Até que chegou numa e ao bater na porta, notou que a mesma estava encostada, aberta. Entrou e foi procurando por alguém, até que entrou num quarto e se deparou com um casal enamorado, totalmente nu, se acariciando. Não titubeou. Chegou perto da cama e cutucou o pé do homem.

- O senhor quer comprar um macaquinho?

- Oh menino safado! Como é que você vai entrando assim sem ser convidado. Não quero comprar macaquinho coisa nenhuma. Sai pra lá – e foi puxando o Joãozinho pela gola da camisa para fora do quarto.

Nisso a mulher levanta-se, olha pela janela, e divisa o marido na calçada chegando em casa. Sem outra opção, busca o amante e o menino, e os coloca dentro do guarda-roupa do quarto do casal.

O marido chegou e vendo a mulher em trajes menores pensa que a mesma já o estava esperando.

- Oh amor – abraça-a, beija-a, e a transporta para o leito nupcial.

A tarde de amor se inicia.

Mas dentro do armário, com seu aguçado espírito de comerciante, até também pelas necessidades talvez do momento, Joãozinho passa para a terceira regra de seu próprio da técnica e da arte de vender - ofereça sua mercadoria sempre, sempre, em qualquer que seja a situação - e empurra o macaquinho para os braços do companheiro de confinamento, e em voz baixa, mas firme:

- Compra o macaquinho?

- Psiu! – o homem responde, com o indicador na boca e o coração quase saindo pela boca.

- Compra o macaquinho, moço!

- Psiu! – com a outra mão tentando afagar a cabeça do Joãozinho.

- Compra o macaquinho, senão eu grito.

- Ta bom – balançando a cabeça e procurando dinheiro no bolso da calça ainda por amarrar.

Lá fora o amor não tem pressa.

Daí a pouco:

- Oh moço, dá o macaquinho pra mim?

- Mas você me vendeu o macaquinho! - sussurrando.

- Vendi. Mas quero ele de novo agora.

Lá fora o amor se regozija, geme, se contorce.

- Oh moço, deixa de ser mal. Me dá o macaquinho?

- Toma – fazendo o nome do pai.

Não satisfeito com a quantia do dinheiro auferido na venda do macaquinho Joãozinho continua.

- Oh moço, me compra o macaquinho?

- Não é possível!

- Eu vou gritar.

O macaquinho é novamente comprado. E assim a transação se fez por muitas e muitas vezes e o menino conseguiu uma quantia considerável de dinheiro.

Finalmente, o amor se deu por satisfeito.

Passado algum tempo a mulher em voz alta:

- Oh amor, eu preparei para você uma torta de morangos. Vamos pra cozinha?

Batida a porta do quarto, os dois saem do guarda-roupa, pulam a janela e ganham a rua. Joãozinho com seu macaquinho põe-se em debandada. O homem ainda se refazendo da tensão, acaba de vestir sua camisa, coloca suas meias, calça seus sapatos, e resignado lembra sabiamente que é melhor quando se vão os anéis e ficam-se os dedos.

Joãozinho feliz volta à feira. O dinheiro dá para todas as compras e ainda sobra uma boa quantia.

Chega em casa exultante e anuncia:

- Oh mãe, tô com as compras, tô com o macaquinho, e tô com um bom dinheiro ainda.

- Mas como meu filho?

- Uai, deu para comprar tudo e ficar com o macaquinho.

- Joãozinho, o quê que ôce fez, meu filho?

Tentou-se explicar o inexplicável, impossível; a verdade veio logo à luz. Tudo foi contado à mãe pelo filho, tintim por tintim.

- Meu filho, isso é chantagem, isso não pode, isso é coisa errada.

- Pois é mãe, agora não tem jeito mais. Como é que vou achar o homem da mulher ou o homem do macaquinho.

A mãe decidiu rápido.

- Meu filho, você vai já agora, procurar o padre, confessar, e dar ele esse dinheirinho para Nossa Senhora das Dores ajudar a lhe perdoar. Você cometeu um pecado grave.

- Ta bom mãe. Mas ôce deixa eu ficar com o macaquinho, né?

- Não. Não pode.

- Deixa mãe?

- Ta bem, fica.

- Outra coisa mãe. Deixa eu levar comigo o macaquinho na igreja?

- Meu filho, igreja não é lugar de macaquinho não, sô.

- Oh mãe, deixa. Eu peço o padre para benzer o macaquinho mãe.

- Meu filho, leva primeiro o dinheiro. Outro dia ôce pede o padre para benzer esse danado desse macaquinho.

- Oh mãe, deixa?

- Ta bom. Ôce parece seu pai. Quando quer uma coisa...

Joãozinho chega na Igreja e se depara com uma fila enorme para a sagrada confissão.

Pegou o último lugar.

Impaciente, passado pouco tempo, tem a idéia de furar a fila, explicando sua situação para os colegas pecadores. Não consegue fácil comover os outros penitentes, sedentos que estão pela redenção de seus pecados. Sua estória de macaquinho não se mostra na verdade tão razoável e é de início preterida, desprezada, rejeitada.

Mas todos já conhecemos a obstinação de nosso Joãozinho e ele vai, de um a um pecante, tentando encontrar aquele um pouco mais sensível.

Eis que o padre já um pouco cansado da exaustiva escuta confessional, sai um pouco do confessionário para se resfolegar, espichar o corpo, se refazer.

Nisso divisa de pronto na fila o menino e o macaquinho. Levando as mãos à cabeça e já tentando escapar grita:

- Some, some, some, seu desgraçado! Não. Não. Eu não quero comprar mais esse seu macaquinho do diabo, não!

Então, agora a nossa história anunciada anteriormente? Vamos?

Sabe-se que em 1701, o bandeirante João Leite da Silva Ortiz, à procura de ouro, chegou à Serra de Congonhas, hoje Serra do Curral. Não encontrou o precioso metal, mas se deparou com uma bela paisagem, de clima ameno e próprio para a agricultura. Resolveu ficar: construiu a Fazenda do Cercado, onde desenvolveu uma pequena plantação e criou gado.

A fazenda progrediu e logo atraiu outros moradores e um arraial começou a se formar em seu redor. Viajantes que por ali passavam, conduzindo o gado da Bahia em direção às minas, fizeram da região um ponto de parada. O povoado foi batizado de Curral del-Rei e como pediam proteção à Nossa Senhora da Boa Viagem, ela se tornou a padroeira local.

Aos poucos, o Curral del-Rei foi crescendo, apoiado na pequena lavoura, na criação e comercialização de gado, na fabricação de farinha. Instalaram-se algumas poucas fábricas, ainda primitivas, na região: produzia-se algodão, fundia-se ferro e bronze. Das pedreiras, extraía-se granito e calcário. Frutas e madeiras eram vendidas para outros locais.

Assim apoiado na atividade agrícola e pastoril e no trânsito constante de tropeiros, o Curral del-Rei havia se desenvolvido e se tornado um importante centro de abastecimento e produção.

Com a decadência da mineração, o arraial se expandiu. Das trinta ou quarenta famílias existentes no início, saltou para a marca de dezoito mil habitantes.

Elevado à condição de Freguesia, mas ainda subordinado a Sabará, o Curral del-Rei englobava as regiões de Sete Lagoas, Contagem, Santa Quitéria (Esmeraldas), Buritis, Capela Nova do Betim, Piedade do Paraopeba, Brumado Itatiaiuçu, Morro de Mateus Leme, Neves, Aranha e Rio Manso.

Vieram as primeiras escolas. O comércio se desenvolveu. No centro do arraial, os devotos ergueram a Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem.

Esse ciclo de prosperidade, contudo, durou pouco. As diversas regiões que constituíram o arraial foram se tornando autônomas, separando-se dele. A população rapidamente diminuiu e a economia local entrou em decadência.

No final do século XIX, restavam ainda mais de quatro mil habitantes. A rotina deles era simples e monótona. Começava cedo, no trabalho de casa ou na lavoura, e terminava às dezenove horas, quando muitos já começavam a se recolher.

Durante o dia, a Farmácia Abreu era o ponto de encontro preferido para o bate-papo. À noite, as mulheres faziam novenas, enquanto os homens improvisavam um botequim no Armazém Esperança. De vez em quando, uma serenata fazia as janelas se abrirem. Apenas nos fins-de-semana o arraial ganhava vida, quando os moradores das redondezas vinham ouvir a missa ou visitar parentes e fazer compras. Em datas especiais, o arraial tornava-se mais alegre: nas Festas Juninas, no Natal ou no Dia da Padroeira, os festejos eram certos.

A Proclamação da República, em 1889, veio trazer aos curralenses a esperança de transformações e a idéia de Curral Del-Rei ser a capital do Estado passou a ser uma possibilidade muito provável. Para entrar na era que então se anunciava, deixando para trás o passado monárquico, os sócios do Clube Republicano do arraial propuseram a mudança de seu nome para Belo Horizonte.

A discussão, porém, sobre a mudança da capital mineira já era uma idéia muito antiga. A primeira tentativa de transferir a sede do Governo para uma cidade diferente de Ouro Preto datava de 1879, quando os inconfidentes planejaram instalar a capital de sua república em São João Del Rei. Depois disso, mais quatro tentativas foram feitas, todas fracassadas.

Assim é que essa questão só veio a ser considerada após a Proclamação da República, por setores da elite agro-exportadora que assumiram o poder político. Eram grupos emergentes ligados à cafeicultura da Zona da Mata e Sul de Minas que assumiram a bandeira da mudança da Capital, contra os interesses consolidados da região mineradora, em processo de estagnação e decadência econômica.

Uma série de fatores favorecia a idéia de mudança. Em primeiro lugar, para se destacar o novo cenário republicano, Minas Gerais precisava mostrar-se politicamente unida e forte. A construção de uma nova capital, localizada no centro geográfico do Estado, poderia facilitar o equilíbrio das diversas facções políticas que então disputavam o poder.

Os republicanos também desejavam promover o progresso de Minas Gerais, tornando-o um Estado industrializado e moderno. A cidade de Ouro Preto não oferecia condições adequadas para o crescimento econômico esperado. Os transportes e as comunicações eram dificultados pelo relevo acidentado da cidade e as estruturas de saneamento e higiene não comportavam mais um aumento da população. Mas em vez de uma simples transferência da capital, a construção de uma nova cidade ganhou força.

A construção de uma nova capital, planejada de acordo com as novas exigências, era a solução para o problema do crescimento.

Um outro fator contribuiu para fortalecer a idéia de mudança. Ouro Preto, cidade histórica, guardava em sua arquitetura uma série de símbolos e marcas do passado colonial que os republicanos queriam enterrar. Com suas ruelas e becos, suas igrejas barrocas e suas casas, porões e senzalas, a velha capital lembrava os anos da dominação portuguesa, das conspirações e da escravidão. Uma nova cidade, planejada segundo os valores modernos, seria o símbolo de uma nova era.

Uma cidade ordenada funcionando como um organismo saudável foi o objetivo dos engenheiros e técnicos que idealizaram Belo Horizonte. Para alcançá-lo, era necessário projetar uma cidade física e socialmente higiênica, uma cidade saneada, livre de doenças, mas também livre de desordens e revoluções.

O projeto criado pela Comissão Construtora, finalizado em maio de 1895, inspirava-se no modelo das mais modernas cidades do mundo, como Paris e Washington. Os planos revelavam algumas preocupações básicas, como as condições de higiene e circulação humana. Dividiram a cidade em três principais zonas: a área central urbana, a área suburbana e a área rural.

No centro, o traçado, geométrico e regular, estabelecia um padrão de ruas retas, formando uma espécie de quadriculado. Mais largas, as avenidas seriam dispostas em sentido diagonal. Esta área receberia toda a estrutura urbana de transportes, educação, saneamento e assistência médica. Abrigaria, também, os edifícios públicos dos funcionários estaduais. Ali também deveriam se instalar os estabelecimentos comerciais. Seu limite era a Avenida do Contorno, que naquela época se chamava de 17 de Dezembro.

A região suburbana, formada por ruas irregulares, deveria ser ocupada mais tarde e não recebeu de imediato a infra-estrutura urbana.

A área rural seria composta por cinco colônias agrícolas com inúmeras chácaras e funcionaria como um cinturão verde, abastecendo a cidade com produtos hortigranjeiros.

A implantação de tão grandioso projeto tinha, porém, uma exigência: a completa destruição do arraial que ali se localizava e a transferência de seus antigos habitantes para outro local.

Rapidamente, os horizontinos tiveram suas casas desapropriadas e demolidas, sendo-lhes oferecidos novos imóveis a um preço muito alto. Sem condições de adquirir os valorizados terrenos da área central, eles foram empurrados para fora da cidade, indo se refugiar em Venda Nova ou em cafuas na periferia.

A capital traçada pela Comissão Construtora era um lugar elitista. Seus espaços estavam reservados somente aos funcionários do Governo e aos que tinham posses para adquirir lotes.

Acreditava-se que os problemas sociais, como a pobreza, seriam evitados com a retirada dos operários, assim que a construção da cidade estivesse concluída. Mas, na prática, não foi isso que aconteceu.

Belo Horizonte foi inaugurada às pressas, estando ainda inacabada. Os operários, aglomerados em meio às obras, não foram retirados e, sem lugar para ficar, assim como os horizontinos, formaram favelas na periferia da cidade. A primeira, a do Leitão - ficava nas proximidades do atual Instituto de Educação, em plena Avenida Afonso Pena. Essa massa de trabalhadores que não eram considerados cidadãos legítimos de Belo Horizonte revelava o grau de injustiça social existente nos seus primeiros anos de vida.

Em 1891, o presidente do Estado, Augusto de Lima, formulou um decreto determinando a transferência da capital para um lugar que oferecesse condições precisas de higiene.

Adicionada à Constituição Estadual, a lei provocou muitos protestos da população ouropretana. Os mineiros dividiram-se entre os mudancistas, favoráveis à nova capital, e os não-mudancistas. Cada um desses grupos fundou seu jornal, promovendo reuniões e debates.

Augusto de Lima Júnior, governador interino de Minas, em 1891, dizia então que Belo Horizonte tornara-se o cérebro de Minas; mas o coração continuava em Ouro Preto.

O Governo Estadual, enfrentando essas disputas, criou uma Comissão de Estudos para indicar, dentre cinco localidades (Barbacena, Paraúna, Juiz de Fora, Várzea do Marçal, Curral del-Rei), a mais adequada para a construção da nova cidade.

O Congresso mineiro, a quem cabia a decisão final, votou a favor de Belo Horizonte.

Assim, a 17 de dezembro de 1893, a lei n.º 3 foi adicionada à Constituição Estadual, pelo então presidente de Minas Gerais Afonso Pena, determinando que a nova sede do Governo fosse erguida, em Curral Del-Rei, chamando-se Cidade de Minas.

No prazo máximo de quatro anos, a capital deveria ser inaugurada. A lei criava ainda a Comissão Construtora, composta de técnicos responsáveis pelo planejamento e execução das obras. Em sua formação, estavam alguns dos melhores engenheiros e arquitetos do país, chefiados por Aarão Reis.

A capital, inicialmente chamada de Cidade de Minas, foi inaugurada no dia 12 de dezembro de 1897 por Bias Fortes, presidente de Minas (1894-98), por uma exigência da Constituição do Estado.

Entretanto, parte de suas construções não havia sido concluída e algumas de suas ruas e avenidas eram apenas picadas abertas no meio do mato. A crise econômica que tomava conta do país e do Estado tinha feito com que muitas obras ficassem paralisadas, à espera de recursos.

O comércio e a indústria ligada à construção civil, que tinham se desenvolvido bastante nos anos anteriores, agora enfrentavam dificuldades.

A cidade não se industrializou no ritmo que se esperava e permaneceu sem atividades econômicas expressivas durante anos. Os trabalhadores foram os mais prejudicados e os que não perderam o emprego tiveram seus salários atrasados durante meses.

Tudo isso contribuiu para tornar a Capital uma cidade entediante e sem graça. Sua aparência inacabada e empoeirada dava a impressão de abandono. As ruas e avenidas largas demais para uma população não muito numerosa pareciam estar sempre vazias.

Para piorar a situação, as diversões eram poucas e não conseguiam espantar a decepção e a tristeza dos primeiros habitantes.

Na área central, a Rua da Bahia era território de elite. Nela, ficava o único teatro da cidade o Soucasseaux, uma espécie de um barracão coberto de zinco, onde se apresentavam companhias de teatro e música e onde se improvisava um botequim. Nessa rua também ficavam os principais bares e cafés, lugares onde os homens se encontravam para conversar, falar de política e da vida. Ao anoitecer, a rua virava palco para o footing (moças e rapazes desfilavam, trocando olhares, numa espécie de namoro bem comportado).

Na tentativa de espantar o tédio, os jovens fundavam clubes como o Rose, o Violetas, o dos Jardineiros do Ideal, o Santa Rita Durão e o Elite.

Além de festas e bailes, esses Grêmios tinham a intenção de promover a literatura.

Outros clubes eram criados durante os carnavais e os mais famosos foram os Matakins, os Diabos de Luneta e os Diabos de Casaca, que promoviam festas, desfiles de carros alegóricos, batalhas de confetes, serpentinas e, é claro, lança-perfume.

O Parque Municipal (na época quatro vezes maior) era muito freqüentado nos fins-de-semana. Ali, a sociedade encontrava espaço para praticar esportes, passear ou fazer piqueniques, enquanto bandas tocavam retretas. Também era lá que as paróquias comemoravam datas religiosas, com quermesses e barraquinhas.

A população pobre e os operários, contudo, não tinham acesso a essas formas de lazer. Preferiam os botequins nos bairros, os jogos de bola e a tômbola, uma espécie de bingo onde os prêmios não valem dinheiro. É que eles viviam em locais distantes do centro e sua condição financeira os impedia de participar das diversões pagas. Além disso, na área central eles eram alvo fácil da polícia, que, por causa de um simples passeio, podia prendê-los, alegando vadiagem.

Minha avó materna, dona de pensão, era uma dessas moradoras de parcos recursos materiais, mas, minha mãe, então adolescente, era dama de companhia da mulher do Zé dos Lotes, figura lendária, dono de quase tudo em Belo Horizonte – de muitas casas e de muitos lotes. Lembro-me de um retrato, onde minha mãe aparece acompanhando o casal, num Ford da época na Praça da Estação. Eles, no banco da frente do moderníssimo carro, e ela no de trás - alegre, feliz, orgulhosa. Ele era uma figura lendária, dono de quase tudo – de muitas casas e de muitos lotes.

Nas duas primeiras décadas deste século, Belo Horizonte viveu, alternadamente, períodos de grande crise e surtos de desenvolvimento. As fases de maior crescimento corresponderam aos anos de 1905, 1912-13 e 1917-19. Aos poucos, pequenas fábricas começaram a funcionar na cidade, ampliou-se o fornecimento de energia elétrica, retomaram-se as obras inacabadas, expandiram-se as linhas de bonde, criaram-se praças e jardins e a cidade ganhou arborização.

O número de empregos cresceu e a Capital passou a atrair mais habitantes.

A vida social também começou a se agitar, com a substituição do teatrinho Soucasseaux pelo elegante Teatro Municipal (1909) e com a inauguração de diversos cinemas. Freqüentar as salas dos cine-teatros - Colosso, Comércio, Familiar, Progresso, Bijou e Paris - tornou-se não só uma obrigação para os belo-horizontinos, como também um pretexto para encontros e conversas. Nessa época em que cinema fazia muito sucesso, nasceu o gosto do belo-horizontino pela moda, com famosas costureiras imitando os modelos vestidos pelas atrizes mais conhecidas.

Foi também com o crescimento da cidade que a massa de trabalhadores começou a lutar contra as injustiças sociais. A primeira grande greve ocorreu em 1912 e paralisou a cidade por quinze dias. Liderado por trabalhadores da construção civil, que defendiam uma jornada de trabalho de oito horas, o movimento teve apoio de grande parte da população. Mobilizando-se através de greves, os operários conseguiram ser reconhecido como cidadãos, assegurando seu direito a reivindicar melhores condições de trabalho, educação, transporte, saúde e moradia.

No decorrer do século XX, a cidade se desenvolveu mais do que o esperado, excedendo os limites planejados da avenida do Contorno e mesmo as fronteiras municipais. Graças à criação das áreas metropolitanas em torno das capitais, na década de 1970, a Grande Belo Horizonte compreende hoje trinta e três municípios, todos em franco desenvolvimento.

Belo Horizonte hoje, 2006, é a terceira cidade do Brasil.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380629
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.