O BEIJO DE DESPEDIDA

- Isso é pr´ôce, amor.

- O que é isso?

- Um cartão. Pro seu aniversário, amanhã.

- Você diz nele que me ama? – sorrindo, comecei a abrir o envelope.

- Não, não abre, agora não! Deixa pra abrir só amanhã – ela instou suplicante.

Aqueles que por ali passavam, presenciaram um beijo e um abraço, apaixonados, apesar do lugar, para nós, então, pouco propício – o pátio da Universidade -, quase ao meio-dia, e em meio ao término das aulas daquela manhã.

Lembro de tudo como fosse hoje; foi definitivo, nosso último dia. Aqueles dois olhos verdes – tristes - naquela cara de boneca - tão perfeita e singela - e aquele beijo, enfim, não roubado, consentido, participado.

A minha insinuação a ela – porque não dizer mesmo minha sedução consciente – fora escamoteada de início, depois incisiva, desesperada por fim.

Dois anos haviam passado, seis meses de namoro, e somente aquele beijo me dava, naquele momento, subitamente, a sensação de senhor, de proprietário, de cidadão, daquela boca deliciosa, daquele corpo desejado, e aquela nova perspectiva, agora, promissora, arrebatadora, inexaurível.

Senti-me pasmo, porque o momento ali vivido suplantava tudo - pensado, experimentado, intuído. Êxtase não era – estava bem acordado; sentia-me feliz, sereno, inteiro – uma verdadeira criança.

Minhas mãos não sabiam o que pegar, meus braços o que abraçar, minha alma o que mais sentir. Éramos - um - de tão colados, por aquele abraço e beijo, ungidos. A sua boca, molhada, gostosa, macia, um prazer, até então, desconhecido para mim. Meus olhos, fechados, para aumentar a concentração, para exaltar os outros sentidos, ou quem sabe, para, pela dimensão do olhar, não conspurcar aquele quadro divino.

- Você agora é minha e eu sou seu – denunciei, de pronto, a alegria daquela minha tão sonhada posse e, talvez, a insegurança de uma possível perda, que, já em mim, teimava em querer se insinuar.

Pensei: Diabo! Por que o amor traz já implícito na sua posse a perda e um misto de alegria e tristeza? Por que os homens não conseguem ser deuses e demônios ao mesmo tempo? Por que as nossas crianças não têm, além do pai e da mãe, um terceiro sujeito, uma alternativa, uma outra possibilidade, que entre o finito e o infinito crie o relativo - que sendo punitivo seja acolhedor, que sendo amável seja irônico, que sendo ordeiro seja um perfeito bandido. Por que essa mesmice nas pessoas, esse gosto ou não gosto, essa uma coisa ou outra?

Uma hora depois, chego em casa. Denise esperava-me com a mesa ainda posta. Meus pais já haviam almoçado e saído.

Com o seu jeito espontâneo foi logo anunciando:

- Fala com sua mãe que fiquei sabendo só agora que preciso de uma folga amanhã para ir ao colégio do André. Eta menino levado! Não sei mais o que fazer com ele?

- Isso passa, fique calma - tentei interceder. - Faz parte da idade dele.

- Ah, ia me esquecendo. A Marta acabou de ligar...

- É? Eu acabei de encontrar com ela.

Fui até o escritório e fiquei admirando aquele pequeno pedaço de papel e num abrir e fechar de olhos revivi a nossa trajetória até ali.

Marta foi minha aluna nos seus dois primeiros anos de seu curso de graduação em Administração de Empresas, e, nos dois últimos anos passamos a nos relacionar mais intimamente. Creio que comigo aprendeu a tirar os pés do chão, a desenvolver um discurso sem o compromisso de um fechamento, a pensar o indizível, o inefável, o que nos dá esperança.

De temperamento colérico, natureza prática, taurina com ascendente em touro, escolhera, a meu ver, certo a futura profissão - líder por natureza, compassiva, responsável, empreendedora, iterativa, amável em tudo e com todos. Dois meses a distanciavam da formatura.

Minhas aulas de filosofia, de imediato, não a comoveram, contou-me, um ano depois; e quanto a mim, seu professor, um sentimento ambivalente logo lhe assaltou, porque me mostrando sempre, crítico, irreverente, malicioso, se sentiu abalada na sua formação evangélica rígida, apesar de comigo, desde o início, se sentir próxima, íntima, acolhida.

De minha parte, sua beleza (mais do que tudo), seu jeito terno, seu olhar lânguido me perturbaram desde nosso primeiro encontro. Pensei:

- Que coisa mais linda. Que petisco. Que gostosura!

Nove anos separavam nossas idades.

Eu, então, com trinta anos, doutor em filosofia, recém-chegado de Londres, onde havia morado oito anos, fugido do regime militar, por militância franca, preso na época do seqüestro do embaixador americano, e solto, seis meses após, por influência de amigos de meu avô paterno, militar de alta patente do glorioso exército brasileiro. Filho único de pai médico e de mãe abastada, culta, politizada, vivera uma infância e adolescência pródiga em recursos materiais, bons livros e viagens internacionais de intercâmbio e de estudo.

Marta, filha de pais pobres, de nível educacional primário, nasceu, cresceu e ganhou o mundo, sempre solidária, participativa, responsável pelos seus seis irmãos, todos reféns da falta das necessidades as mais básicas possíveis. Essas dificuldades, porém, nunca abalaram sua determinação, seu arrojo, sua alegria de viver.

Quando a conheci, duas de suas irmãs e um de seus irmãos já haviam se casado, seu pai já havia falecido há dez anos, e ela assumira, sua mãe e um casal de irmãos, ainda infantes, como seus dependentes para o sustento e a manutenção de suas vidas.

Essa diferença de padrão de vida e de formação intelectual, política, religiosa, entre nós dois e entre nossas famílias, ao invés de nos dificultar o diálogo, de nos tornar estrangeiros um para o outro, de nos distanciar, fez-nos mais próximos, mais solidários, mais cúmplices.

Meus pais sempre receberam Marta com verdadeiro carinho; primeiro como amiga, depois como namorada. Papai, então, sempre, a protegia, a estimulava, a compreendia, mais do que a todos, e quando possível, exortava comigo suas inúmeras qualidades, se preocupava com suas necessidades, e parecia mesmo que a adotara como uma filha. Mamãe mantinha uma devida distância, como de resto tratava todo mundo, apesar de seu tom com ela sempre acolhedor, simpático, amigável.

A mesma aceitação eu não recebera desde o primeiro momento de sua mãe. Seis meses antes, logo no início de nosso namoro, a visitei. Fiquei com ela sozinho e apesar de sua simplicidade no trato, quis saber sobre mim, minha família, minhas intenções futuras. Não demorou muito e passei a sentir uma interdição aparentemente intransponível, mais na sua postura, no seu rosto, nos seus gestos, do que na sua fala cuidadosa, evasiva, simplória mesmo. Sentia que meus argumentos não a convenciam, parecia que meu amor não bastava, minha insistência no namoro a aborrecia.

Primeiro ela obstou com nossa diferença social; refutei com serenidade e determinação. Não satisfeita, objetou com a diferença de nossas idades; mostrei-lhe que a maturidade de sua filha em muito sobrepunha sua idade cronológica. Apelou, finalmente, com a importância do papel da filha no amparo a ela e aos seus dois filhos menores. Lembrei-lhe que com nossa união todos seríamos uma nova, maior, e mais promissora família. Nunca mais voltamos os dois, por precaução, inteligência, bom senso talvez, àquele necessário diálogo. Saí dali com a certeza que precisava usar outras estratégias, outras armas, outras formas de luta, e que ela, seria mesmo, uma forte, incansável, perigosa, porque não dizer, inimiga.

A nossa relação amorosa, aparentemente, de ambas as partes, em nada se dificultou, se modificou, se sentiu abalada.

Abri o cartão; não resisti.

Meu amor.

Peço a Deus que sempre lhe cubra com toda proteção, e com saúde, paz, e amor.

Não sei como posso lhe dizer do imenso amor que tenho por você, da graça de lhe ter encontrado, do privilégio de viver com você o dia-a-dia.

Perdoa-me, primeiro, por estar hoje abalada, pesarosa, pensativa, por ter ficado sabendo uma coisa, que não devo lhe revelar ainda, sobre minha família. Um golpe para mim, impiedoso, certeiro, quase mortífero. Perdoa-me, mais uma vez, por não poder compartilhá-lo ainda.

Olha, você me ensinou muitas coisas fundamentais nesse nosso convívio, algumas relevantes e transformadoras, e dentre elas, nunca me capitular aos problemas, às vicissitudes, aos valores impostos pelos outros na minha vida. E por isso tenho certeza que vou logo superar esse choque e voltar menos perdida, mais reparada, restabelecida.

Estou indo de ônibus para Belo Horizonte para ficar alguns dias, na casa de uma tia, para pensar, refletir, avaliar tudo sozinha, mas levo a certeza do quanto eu amo você e do quanto você é essencial na minha vida.

Beijos da sua,

Martinha.

Lidos os primeiros parágrafos já me encaminhei para o carro em direção à rodoviária. Dez minutos o trajeto percorrido, e ainda perplexo, atônito, atordoado, encontrei a plataforma deserta. Parei num lugar proibido, e dirige-me ao guichê de passagens. Logo encontrei Mariana, amiga fiel de Marta.

- Há dez minutos ela partiu. Ficou esperando sua ligação.

- Que ligação?

- Ora ela ligou daqui para sua casa. Esperou. Perdeu seu ônibus.

- Oh!

- Ligou novamente e Denise disse que lhe havia dado o recado. Não entendeu porque você não ligou. Pegou um ônibus de outra empresa.

- Vou de carro tentar alcançá-la no caminho.

- Não, não vá. Dá um tempo. Ela precisa...

Com muito custo, após muito insistir, Mariana me confidenciou e compreendi afinal. Marta ficara sabendo que não era filha de sua mãe, e sim de uma sua tia, que grávida de um homem casado, não a pudera assumir, e abandonada, deprimida, sem recursos, a entregara para sua irmã criar como filha.

- E sua mãe só lhe contou agora. Velha desprezível!

- Não, não foi Dona Nininha, que contou. Ela recebeu uma carta anônima e pressionou sua mãe até ela lhe contar tudo.

- Que dia?

- A carta tem uma semana. A verdade hoje pela manhã.

Voltei para casa, sufocado, abafado, aflito. O celular de Marta nunca mais atendeu. Uma semana depois criei coragem e procurei sua mãe. Os vizinhos disseram que há alguns dias havia partido levando os dois filhos. Para aonde, ninguém sabia.

Dez anos já são passados. Nunca mais a vi. Quase tudo mudou na minha vida. Minha antiga soberba, irreverência, minha natural alegria, deu lugar à indiferença, a um ser insípido, ensimesmado, poltrão, apático, vencido.

Volto hoje do funeral do meu querido pai. Minha mãe, minha pobre mãe, junto ao corpo dele sendo encomendado, em prantos, abraçada comigo, me disse:

- Meu filho, Marta era sua irmã, seu pai não sabia que era ela que ele havia rejeitado, ao se formar em Medicina. Eu, não tive outro jeito. Fui eu quem mandou aquela carta anônima. Perdoa-me.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380631
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