A ESTÓRIA DO VALENTÃO CHICHICO ALVARENGA, FILHO DO CAPITÃO JOSÉ MARTINS ALVARENGA

A CIDADE ERA a de Pontal, espremida entre Ponte Nova e Rio Doce e, terra a qual o nosso Miguelin gostava de ligar o seu nome - nomeava-se mesmo, Miguelin do Pontal.

Lá vivia o capitão Alvarenga, batizado José Martins Alvarenga, proprietário da fazenda das Águas Mansas, que fazia, ao norte, divisa com a Fazenda das Lages, e era inimigo confesso do João Pereira do Engenho, pai da Izabel Pereira da Silva.

A fazenda das Lages se interpunha entre os dois homens de terra, tanto geograficamente, quanto pelo empenho do Coronel Antonio Roberto Netto que, desde que ali chegou, passou a ser um elemento conciliador dos desafetos e das disputas latifundiárias dos dois senhores de terra.

O capitão Alvarenga era muito poderoso e sua fazenda, talvez, a maior, na época, de todo o Vale do Rio Doce. Recebera todo o patrimônio como herança de seu pai e, por sua vez, durante toda uma vida, de luta diária e tenaz, havia acrescentado a parte em vida reservada a sua mãe. Ali vivia desde o nascimento, em companhia de sua mulher Dondina e de seus sete filhos - três filhas e quatro filhos. Era respeitado tanto pela criação de gado quanto pelas atividades de cultivo da terra e, principalmente, pelas plantações de café e de cana. Como nada é perfeito, porém, conviviam com um osso duro de roer – o filho caçula, Chichico Alvarenga.

Desde principalmente o decorrer de sua adolescência e início de sua vida adulta, o Chichico Alvarenga evidenciou um padrão de comportamento irresponsável e profundamente anti-social.

A escola fundamental não o conseguiu prender; batia nos colegas e enfrentava a professora. Nunca se interessou por qualquer tipo de trabalho responsável; seu tempo passava sempre vadiando.

Muitas vezes quando se lhe opunha muita resistência, o pai ou a vida, se evadia da casa paterna, sumindo vários dias, e só Deus poderia saber para onde e como.

Andava armado com uma pistola 32 que mantinha como uma peça constante de seu vestuário, sempre postada na região do umbigo entre a calça e o corpo.

Brigas corporais não se contavam e, sempre era ele que, por nada, as iniciava.

A todas empregadas novas da fazenda molestava sexualmente ou, no mínimo, tentava e, sempre que rejeitado, respondia com agressões verbais e físicas.

Como Nero, era um incendiário e, atear fogo em objetos e propriedades alheias era uma de suas competências, sempre às escondidas e na calada da noite.

Quantos galos, passarinhos e pombas foram mortos, simplesmente por pulsão ou mórbido prazer, torcendo seus pescoços com as duas mãos e, rodopiando-os aos ares, lançava-os à distância, como um arremessador de disco olímpico.

A mentira era sua companheira inseparável, em coisas de e sem qualquer importância maior, como se fosse a via única e preferencial de sua comunicação.

Mostrava-se, sem qualquer causa significativamente relevante, irritável e agressivo, inclusive e preferencialmente com sua mãe. Quantas vezes seu pai precisou ameaçá-lo com todos os tipos de castigos e restrições, para que ele não voltasse a agredi-la fisicamente. Não adiantava. Quantas vezes, aproveitando que ela procurava manter em segredo os ataques do filho, reiteradamente, a esbofeteou no rosto por qualquer pequena frustração, sempre quando os dois estavam sozinhos, sem uma testemunha que o pudesse incriminar.

Até os vinte e cinco anos, nunca se viu o Chichico Alvarenga manter namoro, envolvimento afetivo ou relacionamento social por mais de um ano. O mais surpreendente talvez era o fato de nunca ter apresentado, quando era inquirido ou não, o menor vislumbre de remorso por quaisquer de seus atos evidentemente condenáveis.

Seu pai não mediu esforços desde o inicio de sua juventude para lhe procurar orientação e ajuda.

Iniciou sua peregrinação por Juiz de Fora por ser mais próxima, tentou Belo Horizonte por ser a capital, e encerrou sua jornada com um eminente professor de psiquiatria e sua equipe, que após um longo período de observação e tratamento, concluíram e vaticinaram:

- A medicina não pode oferecer nada de concreto a seu filho. Tememos que, apesar de todos os cuidados possíveis que se possam ter com ele, venha terminar sua vida matando alguém, sendo morto ou preso numa penitenciária.

Uma sentença dessas, mesmo para um homem, prático, rude e realista, como o Capitão Alvarenga, acostumado já pela idade madura aos infortúnios e vicissitudes da vida, atingiu profundamente seu coração. Não se deu por vencido, porém. Não satisfeito, iniciou uma nova via crucis.

Ninguém se guia somente pela ciência ou pela razão, quando se trata de resolver um problema de saúde ou uma séria dificuldade de um filho ou de uma pessoa de grande afeto. Mesmo em confronto frontal com sua formação católica, iniciou uma nova caminhada pelas benzedeiras, curandeiros, bruxos e mesmo algumas visitas às reuniões espíritas e umbandistas. Nenhum resultado palpável.

Com seu espírito prático, saiu procurando e chegou mesmo a contratar uma jovem mulher, muito vistosa, de exuberante sensualidade e expressiva beleza para viver com seu filho e quiçá trazer mais significado e sentido responsável à sua vida.

Levou-a mesmo para morar na fazenda, numa casa próxima à sua e, mesmo Dona Dondina, de início contrariada e relutante com a idéia extravagante e sem recato do marido, participou efetivamente, desde o início, da tentativa de união do casal, acompanhando os dois jovens com visitas constantes, conselhos e favores.

Em cinco ou seis meses, o sonho, do Capitão e de sua esposa, desabou. As constantes agressões físicas e morais do Chichico Alvarenga, para com sua amásia e amante, tornaram a vida dos dois e da família Alvarenga um verdadeiro inferno.

Marieta Simplício, apesar de mais velha, prostituta e ambiciosa, não conseguiu suportar mais o conflituoso relacionamento e, sem reclamar ou avisar mesmo ao Capitão Alvarenga, de um dia para outro, fugiu sem deixar rastro.

Foi o Padre Dondino de Assis, pároco de Pontal e amigo particular do Capitão Alvarenga que, após ter tentado todas suas possibilidades de conselheiro e líder religioso, teve a idéia de arranjar um ex-soldado da Polícia Militar, destemido, valente, atencioso, para ser como um guarda-costa para o Chichico Alvarenga.

Deram-se muito bem. Não demorou muito, os dois passaram a ser como unha e carne: moravam no mesmo quarto dentro da propriedade principal da fazenda; saiam juntos; dividiam todas as intimidades, lazeres e arruaças.

Tudo ia às mil maravilhas, mesmo que em parte, porque o Chichico Alvarenga não havia mudado em nada sua vida e conduta. Seus pais sim muito mais confortados porque sentiam que o filho estava muito mais protegido dos desdobramentos de seus costumeiros atos descontrolados, pela amizade, destemor e lealdade de seu então contratado anjo da guarda.

Um ano após, ao voltar para sua casa com seu então companheiro inseparável, de uma noitada na zona boêmia de Ponte Nova, cruzou, de madrugada, com um cavaleiro desconhecido, num ponto desabitado, descampado, deserto da estrada e, como era seu costume, passou a afrontá-lo gratuitamente.

O circunstante permaneceu calado e continuou na medida do possível sua caminhada. Chichico Alvarenga e Ramiro Torres perseguiram-no ainda por quase meia légua, ora a frente, ora atrás, com todo tipo de provocação verbal, gestual e mesmo física, como com algumas chibatadas no cavalo e no cavaleiro.

Numa encruzilhada a vítima apressou seu passo e entrou num caminho diferente daquele dos dois irresponsáveis baderneiros. Seguiram ainda por um bom tempo vitoriosos, exultantes, barulhentos, a solver através de risos e comentários o ridículo que haviam submetido ao infeliz que ousara cruzar seus caminhos.

De repente, um estalido ecoou na madrugada fria e estrelada, e um projétil zuniu, como um zangão célere e feroz, na frente da cabeça do Chichico Alvarenga e atingiu o tórax do Ramiro Torres, na altura do coração.

Um gemido de dor e sua queda de bruços ao solo se seguiram. Novos dois estalidos se ouviram e o cavalo do Chichico Alvarenga se adiantou e, puxado pelas rédeas, rodopiou, e ambos, montaria e cavalo, se projetaram ao chão.

Chichico Alvarenga levantou-se, apesar da forte dor na coxa esquerda e, vislumbrou no morro adjacente à estrada, o vulto do agressor em movimento.

Três novos tiros foram deflagrados, um a um, com ínfimos intervalos, intermediados pelos gingados de corpo de Chichico Alvarenga que, fugindo instintivamente de ser atingido, respondia à altura com o descarregamento de sua arma.

O vulto movimentou-se em carreira pela vegetação e Chichico Alvarenga mesmo conscientemente ferido montou o cavalo do companheiro e saiu no encalço de seu algoz.

Vencida pequena distância em grande galope, talvez pela primeira vez na vida, num átimo, num instante, num momento de consciência e solidariedade, freou a montaria, deu meia volta e foi socorrer seu amigo. Ramiro Torres estava estatelado no chão, de costas, morto, semblante aterrorizado.

Chichico Alvarenga colocou o cadáver apoiado pela barriga no arreio do cavalo do companheiro, com a cabeça pendendo para um lado e as pernas para o outro. Seu cavalo ferido permanecia deitado e agonizante, atingido no pescoço. Retirou a arma do parceiro morto e sacrificou sua montaria com um único tiro. Voltando-se para o animal com o cadáver segurou as suas rédeas e se colocando na frente do conjunto, se encaminharam os três, num silêncio sepulcral, para a fazenda das Águas Mansas.

O delegado Macambira Pereira foi avisado pelo capitão Alvarenga do terrível incidente.

Três horas após o assassinato do Ramiro Torres todas as providências policiais cabíveis já haviam sido tomadas. Os delegados das cidades vizinhas haviam sido avisados do ocorrido por telégrafo. Fazendeiros da região haviam sido convocados para que eles e seus sitiantes circunscrevessem uma grande área em volta do local do crime e impedissem a fuga do assassino.

O delegado, mais dois soldados da Polícia Militar e quatro amigos inseparáveis do mesmo, em comboio, devidamente armados até os dentes e com cachorros de caça começaram a procurar em cada casa, casebre, grota, curral o então desconhecido e feroz facínora.

As buscas continuaram ininterruptas por três longos dias e nenhum indício que pudesse evidenciar a identidade do agressor ou seu paradeiro foi então levantado.

O grupo militar e paramilitar se dispersou, mas ficou, para toda aquela região praticamente, a notícia que se estava procurando um determinado assassino e suas características principais. O delegado como as grandes potências, possuía também seus informantes anônimos que certamente permaneceram como uma rede invisível na espreita e tocaia do homicida.

Tudo isso foi o Miguelin que me contou, mas de início se referiu ao capitão José Martins Alvarenga:

- Ele tinha muito gado selvage, aquelas mulas selvage, que matava cachorro dos outro e rombava qualquer cerca. A gente encontrava com ele no seu carro de boi pela estrada:

- Oh capitão! Tem um gado rebentando cerca, matando cabrito, cachorro. Aquele gado é do senhô?

- Ah é meu mermo. Ôce vai lá na fazenda; chama os empregado. Traz a cachorrada e manda encostá aquele gado pra lá da fazenda Boa Vista, lá encima.

- Oh capitão! O gado tá estragando aí, tá dando muito prejuízo, tá matando criação, tá correndo criança, cercando a gente. O gado do senhô é muito bravo, capitão.

- Ah! Chama os empregado lá. Eles é assim mermo. Eles é muito. Eles invade mermo.

- Sabe Capitão, aquele gado dá um galope na gente. Rebenta nossas cerca, e não é que nóis descuida não.

- Ah é? Toca pra lá e avisa os empregado.

O capitão Alvarenga apesar de não controlar sua criação era um homem digno, correto, ajuizado. Seu filho Chichico Alvarenga, esse era um danado e vivia para fazer coisa errada. Estava sempre procurando orientar seus passos:

- Meu Chichico, não faiz isso, não. Nóis temo essa riqueza toda. É nossa. Vamo gozá disso. Não fica fazendo esses absurdo que ôce faiz não.

E o Miguelin, continuou:

- E o Chichico parece que não ovia. Suas estórias era muita. Se ia passando um viadante assim na estrada, indo pra um pagodinho, com uma sanfona nas costa, o Chichico chamava:

- Oi, ôce vem cá com essa sanfoninha sua. Vamo tocá um pouquinho.

- Ninguém ousava desobedecê ele. O sujeito chegava meio sem jeito e tocava ali perto do Chichico até ele mandá pará:

- É isso aí. Agora eu quero qu’ocê trata dos meus capado primeiro. Despóis ocê lava meu chiquero.

- Sim senhô Sô Chichico.

- Ocê vai pro pagode, não vai? Mas ocê pode entrá com essa roupa suja mermo. Os porco do Chichico é tudo caro.

Era comum o sujeito nem reclamar:

- Oh ocê sujou sua roupa. Ocê ia pro pagode, não ia? Ocê não ficou com raiva, não, ficou?

- Não senhô, não fiquei não, Sô Chichico.

- Então ocê não aborreceu, não, né? Oia, ocê sujou sua roupa toda!

- Não, Sô Chichico, não aborreci não senhô. Não sujei, não senhô.

O pai interferia sempre:

- Oh! Chichico. Não faz isso, não, Chichico. Que idéia mais besta. Ocê fazê esse home tratá de porco. O home tava indo pro baile.

O Chichico, às vezes, se tocava.

- Oh! capitão. Eu ia dá ele um par de roupa.

E dirigindo-se ao infeliz:

- Agora, ocê vai alí e toma um banho. Toma esse sabão. Eu vou te dá um parzinho de roupa e ocê vai chegá lá no pagode com sua sanfoninha e com uma roupa grãfininha, viu?

O Chichico levava então o pagodeiro para seu quarto:

- Oh, aquí, oh, veste esse par de roupa. Coloca esse cheiro. Ocê vai chegá lá no baile todo cheiroso, viu?

E ainda não satisfeito:

- Ocê antes pega sua sanfoninha e toca mais uns troço pra mim. Aonde é mermo esse baile?

- O baile é lá na Serra Queimada, Sô Chichico.

E o pai não desanimava:

- Oh Chichico, não faz assim não, criatura. Não é assim que a gente procede.

Era como não tivesse ouvido qualquer ponderação.

O Miguelin acrescenta:

- Não se contam quantas vezes o Chichico quebrou o boteco do Zé Rodrigo. A cena sempre se repetia.

- Oh moçada. Cheguei aqui. Está chegando aqui o Chichico Alvarenga, nessa merda aqui do Pontal.

Começava sempre quebrando umas garrafas no bar do Zé Rodrigo para provocar quem estava no recinto e nas imediações.

Ninguém reclamava, não se ouvia um aí.

- Oh Zé! (Com o revólver encostado na nuca do Zé Rodrigo ou de algum outro que ele não gostasse da cara):

- Ocê vai cantá igual um galo e batê as asas.

• Có có ri ó có. Có có ri ó có…

- Oia, ocê não tá cantando direito. Tá muito desafinado.

• Có có ri ó có…

Não satisfeito, saía pela rua e apontava a arma para a cabeça do primeiro que cruzasse seu caminho e ordenava:

- Agora ocê vai andá no currimão da ponte. Se caí, ocê leva um tiro.

E o cidadão ficava entre cair na ponte e levar um tiro ou, cair no rio, de uma altura mais assustadora ainda.

Eventualmente, subia até a estação local do trem e, ordenava a um dos dois agentes da estação:

- Oh Sô Gama! Oh Sô Sabino! Qualquer um du’cês que tivé aí anuncia minha chegada.

Era prontamente obedecido, sem qualquer contestação.

Blem! Blem! Blem! O sino da estação ferroviária anunciava para Pontal que o Chichico Alvarenga estava chegando. O agente após soar o sino, sabia que tinha que deixar a estação e, chegando na beira do barranco, gritar na direção da cidade:

- O Chichico Alvarenga chegôôô...

- O Chichico Alvarenga chegôõô...

- O Chichico Alvarenga chegôôÔ.

Anunciado para a comunidade local sua chegada, sempre apoteótica, descia o morro e, passava em todas as vendas possíveis. Colocava todo mundo bebendo, por sua conta, sem naturalmente contribuir com um centavo sequer.

Escolhia sempre alguém para cheirar a ponta do cano de seu revolver.

- Que cheiro tem aqui esse revolvre.

- Cheiro de polvra.

- Cheiro de polvra, não, seu mentiroso. Cheiro de defunto.

- Tá certo Sô Chichico. Cheiro de defunto.

- Cheira de novo.

- Cheiro de defunto.

- Agora fala que eu sou um jaracuçu e ocê é uma perereca.

- Oh Sô Chichico! Eu sou uma perereca e o senhô é um jaracuçu.

- Isto! Isto! Isto! Isto aí!

Normalmente fazia parte de seu ritual demoníaco cortar um pedaço de toucinho ou pegar um saco de mantimentos e dar para alguém. Fazer fartura com a mão do próximo era uma de suas práticas mais prazerosas. Ninguém reagia. Todos tinham medo dele.

Xingava sempre um dono de venda:

- Você é um miserável...

Assim o Chichico Alvarenga continuou fazendo suas arruaças por muito tempo. Mas um dia caiu numa esparrela, num ardil, num logro arquitetado por ele mesmo, conta o Miguelin.

Vinha descendo a Rua Principal e ao passar em frente ao grupo escolar viu a Ana Jardim lecionando, através de uma janela aberta da sala de aula.

Ana Jardim era filha de um dos mais ferrenhos adversários políticos de seu pai, o Mário Jardim, cunhado do José Pereira do Engenho, tio não consangüíneo da Izabel Pereira. Debruçou-se na janela e, ficou postado do lado de fora da sala, na calçada, observando a aula, com atenção aparentemente respeitosa.

Os Jardins não eram de brincadeira. O Alvarenga Filho, porém, não conhecia limites de qualquer natureza e, com certeza, quando repartiram a prudência no mundo dos homens, seguramente, nenhuma parte lhe foi reservada.

A moça sorriu para um de seus alunos e mostrou uma alva dentadura com um dente de ouro logo nos da frente. O Chichico Alvarenga num relance pressentiu uma oportunidade para se aproveitar da dedicada professorinha.

Gritou para ela de fora para dentro da sala de aula:

- Oh ocê riu bonito aí professora.

E repetiu:

- Oh ocê riu bonito aí professora.

A Ana Jardim, vindo o elogio de quem vinha, logo lhe percebeu a malícia, mas não se importou e continuou sua aula. Ensinava o primeiro ano para todas as turmas do grupo local. Era uma professora dedicada, carinhosa, e amada por todos seus alunos.

E o Chichico Alvarenga, que já tinha bebido umas pingas, não satisfeito com a reação da Ana Jardim, continuou, em tom provocativo:

- Oh! ocê riu bonito aí, professora. Ocê riu bonito aí, professora.

Não conseguindo um mínimo gesto da professorinha como resposta enfureceu-se:

- Amanhã eu vou lá na cidade e vou mandá pô um dente de ouro na minha mula igual o d’ocê. E vou fazé ela ri igual ocê.

A moça despediu seus pequenos alunos e deixou, serenamente, a sala de aula, sem qualquer reação à provocação do fanfarrão, que, por muito tempo ainda, continuou zombando e procurando se satisfazer com a situação por ele criada.

Passados alguns dias, não é que o Chichico Alvarenga, montado em sua mula, se posta, na calçada, em frente ao grupo escolar, exatamente ao lado da sala da professora Ana Jardim, chamando a atenção de todos com sua gritaria e suas pantomimas. E, pasmem, não é que realmente a mula tinha um dente de ouro na sua arcada dental frontal superior, que ele procurava expor abrindo o focinho dela com as duas mãos e aos berros comparar com o da professorinha!

Ana Jardim, até então, havia mantido em absoluta reserva, o primeiro episódio de escárnio perpetrado pelo Chichico Alvarenga, quem sabe, orientada pelo seu espírito superior, pela sua educação genuína, e por sua constituição e temperamento, sem qualquer traço de rancor e malícia. Mas tudo um dia clama por um limite: foi para sua casa e relatou todo o acontecido a seu pai Mário Jardim. Este mandou chamar todos seus filhos e ponderou:

- Meus fios! O Chichico Alvarenga abusou da irmã d’ôces, hoje, lá na escola.

E relatou o acorrido com todos os pormenores.

- E, aí, nóis vamo ter que sujá nossas mão com aquele home, concluiu.

O filho mais velho, o Noel Jardim, depois de pensar algum tempo, ponderou:

- Não, pai, nóis mermo não suja as nossas mão, não. Nem o senhor, nem eu, nem os outro menino. O senhô dá uma volta e arranja aí um caçadô que vem e limpa ele daí pra sempre.

Todos concordaram. O Mário Jardim partiu para o Rio Pomba. Foi visitar seu amigo Antonio Home.

- Oh Antonio Home! Ocê não tem aí um home que tem corage de matá qualqué onça não, qualqué gato.

- Tenho, uai. Tem o Sô Ramos que tá meio vêio, mas tem os fio dele, tudo bom. São bom caçadô.

O Senhor Ramos não titubeou quando os dois coronéis de terra foram procurá-lo:

- Ah! Sô Coração! Se precisá de matá, eu mato fácil, mas eu tenho uns menino aí que tá mais novo. E eles gosta tamém de atirá na cova do olho esquerdo das onça.

São as próprias palavras do Miguelim, relatando-me o restante do ocorrido:

- Viero para o Rio Casca: Pedro, Pierre, Honório, Carlos, José, João, Francisco, Ricardo e mais o velho Ramos. Viero todos cortar cana. E o tempo foi passando. Um dia estava todos no Canavial e o Carlos ficou em casa. A casa era no alto, lá encima. O Carlos Ramos, o mais perigoso da famía, descendo em direção à Estação toca, na metade do caminho, com o Chichico Alvarenga. Esse já tinha aprontado toda sua habitual desordem lá embaixo e tava subindo:

- Ocê sabe quem eu sô, Sô?

- Não senhô, Coração - a família Ramos toda falava manso e chamava os outros de coração.

- Eu sô o Chichico Alvarenga.

- Ah! O senhô é o Sô Chichico? Eu não conhecia o senhô não, coração. Ele sabia e tavá ali era pra matá era ele mermo.

- É. Eu sô o Chichico Alvarenga.

- Não sabia não senhô, coração.

- Oia, eu não tô gostando nada desse tal de “coração” seu não. Eu não tô gostando desse jeito que ocê tá falando comigo não.

- É coração?

- Chichico Alvarenga, já devidamente irritado e furioso, levou a mão na cintura pra pegá o revólvre. Foi tudo muito rápido. Antes de pegá a garrucha o Chichico Alvarenga levou um tiro “na cova do olho esquerdo”, caíu, e rolou morro abaixo.

Continuou:

- A notícia correu. Os Alvarenga revoltô tudo. A Polícia veio e intermediô o caso, porque se alguém quisesse desforra tudo iria virá era uma guerra.

O Carlos Ramos foi preso dois anos despóis. Foi julgado e condenado. Acabô na cadeia de Neves. Lá ele passô muitos ano. Quando ele chegô a voltar pro Pontal, porque sua família continuô vivendo lá e, não voltou mais pro Pomba, os Alvarenga já tinha vindido tudo e espaiado pr’um lado e outro desse mundão. Despóis ele foi para a Usina do Camarão e foi feitô nela muito tempo. Comprou despóis um sítio num lugá por nome de Pouso Alto. Lá um sujeito atirô num político importante, o Dr Chico das Neves, e foi o Carlos Ramos que descobriu tudo e denunciô. Ficou assim nas graça do político que arranjô para ele um lugá de investigadô do Estado. E assim, dizem, acabou seus dias.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380635
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