O SACO, A SÁ MALVINA E A ÉGUA MOURA

O SENHOR BELO me contou que, por volta de 1955, então com doze anos de idade, na sua terra natal, Bom Jesus do Galho, era muito conhecida a Sá Malvina. Uma velha que andava pelas ruas, sem destino e sem pouso, como uma alucinada, chocalhada pelas crianças e desprezada pelos adultos.

Havia caído no fogo na infância, queimado todo o rosto e, principalmente o lado direito, onde se destacavam um olho murcho, pequeno, horripilante e uma orelha escura, macilenta, enrugada. Andava sempre com um pano, velho, encardido, como um meio chapéu, tentando, sem muito êxito, cobrir as suas deformidades.

Quando uma criança começava a ser inconveniente o pai falava:

- Vou dá ôce pra Sá Malvina - e era o que bastava para acalmá-la.

O senhor Belo morava junto aos pais, cinco irmãs e seis irmãos, numa pequena fazenda onde se produzia de tudo: café, arroz, feijão, milho, mandioca, farinha...

Orgulhoso com sua infância esclareceu-me:

- A minha mãe fazia a calça da filha, o sutiã. Não se falava naquela época em menstruação e sim em regra. O pai não deixava a filha casar menstruada.

- É?

- Não deixava, não. Muitos casamentos foram adiados por essa simples circunstância. As mulheres tinham dez a quinze filhos em suas casas com parteiras ou sozinhas, sem recurso de médico ou de hospital. Alguns morros tinham no seu alto um Cruzeiro. As pessoas punham pratinhas no pé deles para poder pagar promessas e ninguém ousava mexer. Não havia os ladrões de hoje, exceto os de galinha, de café e de cavalo.

Continuou:

- Cada quinze dias, porém, era preciso ir à Caratinga, distante vinte e duas léguas, para pequenas compras ou trocas. Um dia fui buscar macarrão e bacalhau (e também outros gêneros básicos) porque estava vesprando a quaresma. Antigamente as fazendas forneciam rapadura, querosene, gordura, macarrão, aos seus colonos em troca de horas de seus serviços. Naquele tempo não existia dinheiro. Lembro nitidamente que levei sacos com bandas de porco como moeda para trocar pelo que necessitávamos.

Quis saber o trajeto.

- Saí de Bom Jesus do Galho, passei por Sapucaia, Barreirinha e, cheguei em Caratinga, no início da tarde. Sessenta quilômetros. Comerciávamos com um amigo de meu pai, por nome Justino Barbosa, que era dono de um armazém de secos e molhados.

E detalhista continuou a me relatar:

- Não existia arame. A cerca era feita por escravos de uma vala de três metros de largura e dois de fundura. Nesse buraco cercando a fazenda se plantava bambu que impedia que os bois passassem. Era comum também nas pequenas comunidades o costume de cada vez um vizinho matar um boi e distribuir a carne com todos os outros. E, como se fosse combinado, todo mundo comia carne, cada hora vindo de uma das fazendas. Não se aproveitava a barrigada do boi morto (era jogado fora ou dada para fazer sabão); o couro não era aproveitado; o chifre era colocado na horta para proteger as plantas. O engenho (ou engenhoca) era feito de madeira com prego dobrado para fazer o friso da moenda. Não se fazia rapadura. Secava-se um pouco a garapa e guardava o melado para não azedar. A broa de fubá era feita de soro de queijo, melado, ovos, bicarbonato e fubá. Era uma broa de encantar qualquer um.

Prosseguiu o relato de sua aventura:

- Aquele dia na viagem de volta choveu muito. Eu parei na fazenda do Bastião Berto num local chamado Córrego da Sobra. Esperei a chuva passar. A mulher dele insistiu que eu trocasse minhas roupas e fui obrigado a vestir as roupas de adulto do fazendeiro. Com medo de meu pai me repreender (ele era muito severo), apesar da noite avançada, quase onze horas, avisei:

- Dona Lia, eu tenho que ir embora. Papai não pode me buscar.

- Passa a noite aqui meu filho. É muito perigoso você subir a serra essa hora.

- Agradeci. Saí da fazenda. Peguei uma mata. Comecei a subir a serra da Raminha. No alto dela tinha um cruzeiro. Todo mundo tinha medo de passar no pé dele, à noite. Diziam que o lugar era amaldiçoado. Eu montava uma égua por nome Moura – porque da mesma cor da frutinha de mesmo nome que quando amadurece fica cinza com umas pintinhas vermelhas.

Daí a algum tempo a égua começou a gemer. Percebi que ela estava sentindo muito peso. Na minha frente apareceu um vulto branco. Pensei: o quê essa Malvina está fazendo aqui essa hora, meu Deus?

A Malvina era vista por toda parte, andando com sua mochila e, era vista dormindo também ao relento em qualquer lugar.

Gritei:

- Oh Sá Malvina, o que está fazendo aí essa hora? Deixa eu passar que estou com pressa.

Passar como?

A égua bufava, sapateava no chão, elevava de tempos em tempos a cabeça e, se inclinava para trás, sustentada somente pelas patas traseiras como se assustada não quisesse ou pudesse prosseguir.

Eu apertava os pés na barrigada dela, batia na sua cabeça e, nada. De repente o tempo fechou todo. Uma nuvem começou a passar e deixava ser atravessada por uma claridade vinda da lua cheia. No momento seguinte tudo escurecia novamente.

Apavorado gritei:

- Sá Malvina, deixa eu levar esse saco da senhora. Ele deve estar pesado. Falei assim como uma estratégia tentando estabelecer alguma comunicação com ela. Deu certo. O vulto deu meia-volta e veio se encaminhando para mim. Entregou-me o saco. Mas que saco pesado! Peguei-o sem qualquer maldade e coloquei entre minhas pernas, na cabeça do arreio. A égua ficou mais assustada ainda. Tentei devolver o saco porque realmente estava muito pesado.

Novamente gritei:

- Oh Sá Malvina, toma esse saco de novo aqui porque está muito pesado. Não estou agüentando.

Desta feita nada consegui. O vulto foi cada vez andando mais rápido, se distanciando, se afastando na nossa frente.

Desesperado:

- Oh Sá Malvina pega esse saco aqui. Não vou levar isso mais não. Está muito pesado.

Quando eu e a mula atingimos o pé do Cruzeiro, o vulto, como por um encanto, desapareceu subitamente e a égua aí se soltou e cavalgou em desabalada, a mil por hora. Em pouco tempo chegávamos na fazenda onde meus pais me esperavam ansiosos.

Você prezado leitor deve estar como eu curioso sobre esse saco pesado, do destino que foi dado a ele, o que continha.

Perguntei então ao meu amigo senhor Belo:

- E o saco? Que fim foi dado a ele?

Marotamente, me respondeu, prontamente:

- Ah eu sabia que o senhor ia perguntar sobre o meu saco. E com o indicador apontou-o:

- Ora, eu trouxe ele aqui, uai. Eu continuo com ele até hoje, uai. Ah! Ah! Ah!

E seu rosto se iluminou com um sorriso largo, debochado, vitorioso.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380637
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