A FÁBRICA DE LINGÜIÇA DE CARNE DE BURRO

NA ZONA DA MATA das Minas Gerais, mais precisamente no Vale do Rio Doce, na década de 1950, vivia um fazendeiro de uma inteligência invulgar e de uma grande capacidade inventiva.

João Pereira Martins, conhecido como capitão Martins, era muito poderoso e sua fazenda, talvez, a maior na época de toda a região.

Recebera inicialmente quase todo o patrimônio como herança de seu pai e, por sua vez, durante toda uma vida, de luta diária e tenaz, havia acrescentado a parte em vida reservada a sua mãe.

Ali vivia desde o nascimento, e nessa época, em companhia de sua mulher Mariazinha e de seus sete filhos - três filhas e quatro filhos.

Era respeitado pelas plantações de café e de cana, mas sua paixão verdadeira era a pecuária.

Como nada é perfeito, porém, toda a família convivia com um osso duro de roer – o filho caçula, Chichico Martins, que padecia de um evidente déficit de inteligência.

Tecnicamente era um limítrofe, ou uma pessoa com quociente de inteligência entre o normal inferior e o deficiente mental.

Naturalmente que essas pessoas dependendo do meio social, das posses financeiras de seus pais, do acompanhamento responsável de um ou de vários membros da família, dos desdobramentos do destino e das vicissitudes do dia-a-dia, podem conseguir desfrutar uma vida simples, porém, de boa qualidade. Infelizmente essa não tinha sido até então a sorte de nosso personagem.

O capitão, dona Mariazinha e os seus irmãos nunca se omitiram no cuidado amoroso e continuado com o Chichico Alvarenga, tanto na ajuda aos seus afazeres escolares, quanto no acompanhamento, passo a passo, de sua vida, fornecendo-lhe feedback significativos, oportunos e freqüentes.

Apesar desse esforço motivador, sério, conseqüente dos familiares, ele não conseguiu completar sua educação primária e a nenhum tipo de atividade profissional dentro do universo mesmo da fazenda se adaptou ou persistiu.

Seu pai sentiu-se, então, na obrigação de propiciar ao filho, mais do que uma fonte de renda, um trabalho, que o pudesse dignificar e inseri-lo socialmente.

Dotado que era de uma excepcional capacidade inventiva construiu um projeto de uma fábrica de lingüiça de carne de burro com características especiais para seu filho. Tal era sua adequada engenharia que bastaria ao jovem apertar um botão no início do processo ou, na entrada do curral de burros e, depois de um processo industrial de meia hora somente, conseguia-se, na outra extremidade do sistema o produto final, ou seja, a lingüiça de carne de burro, sem ninguém praticamente precisar tocar nos animais e ainda com um número extremamente reduzido de empregados.

Mandou construir todo o sistema estrutural em São Paulo e instalou a fábrica sem dar conhecimento ao Chichico Alvarenga e mesmo a qualquer dos outros membros da família.

Tudo pronto chamou seu filho e ...

Antes, porém, quero aqui fazer um pequeno comentário sobre a inteligência humana, mesmo sabendo que isso possa ser tomado, por algum leitor mais impaciente ou mais crítico, como uma digressão não tão necessária ao desenvolvimento dessa estória. Assumo, entretanto, sem medo o risco.

O que é a Inteligência humana?

Visto por uma perspectiva histórica, pode-se dizer que no início do século XX, as autoridades francesas solicitaram a Alfredo Binet e Pierre Simon que criassem um instrumento para a identificação de crianças com um retardamento intelectual que, no futuro, viesse a prejudicar as chances das mesmas no ensino formal.

Eles estabeleceram para tal uma seqüência de tarefas com dificuldade variando desde as muito fáceis, que mesmo crianças muito jovens poderiam realizar, até as muito difíceis, que apenas adultos poderiam completar.

Com base nessa seqüência de tarefas, produziram o conceito da Idade Mental de um indivíduo (criança) como sendo a idade em que a maioria das crianças poderia resolver a tarefa mais complexa que o indivíduo sendo avaliado era capaz de resolver. Assim, se um menino ou menina pudesse chegar a resolver somente até as tarefas que se esperaria que um sujeito de 10 anos de idade pudesse resolver, a Idade Mental desse menino ou menina seria de 10 anos, independente da idade real da criança (chamada de Idade Cronológica) situar-se acima ou baixo desse valor.

De posse dessa seqüência de tarefas e do conceito de Idade Mental, foi criado o conceito de Quociente de Inteligência, definido como sendo a razão entre a Idade Mental e a Idade Cronológica, multiplicando-se o resultado por 100 para evitar o uso do ponto decimal. Assim, uma criança com Idade Mental de 12 anos e Idade Cronológica de 10 anos teria um Quociente de Inteligência de 120, enquanto que uma criança com a mesma Idade Mental, porém com Idade Cronológica de 12 anos teria um de 100 e outra com Idade Cronológica de 16 anos teria um de 75.

O Quociente de Inteligência surgiu assim como um prático indicador quantitativo da precocidade ou retardamento de uma criança em relação à sua idade. Aquelas com Quociente ao redor de 100 estariam dentro do desenvolvimento normal, aquelas acima de 100 seriam precoces e as abaixo de 100 seriam retardadas, com o valor específico fornecendo uma medida da maior ou menor defasagem entre idade e intelecto.

Algum tempo depois de sua criação, o Quociente de Inteligência de Binet e Simon foi levado aos EUA, onde foi revisto e transformado na Escala de Inteligência de Stanford-Binet.

Posteriormente, surgiram vários outros testes do mesmo gênero, cada um com suas variações específicas, inclusive com variações nos valores da média e do desvio padrão, mas todos dentro do mesmo paradigma básico de comparação estatística entre o indivíduo e a população da mesma idade. Houve também a ampliação do espectro de aplicação do teste para incluir também a avaliação de indivíduos adultos.

Durante várias décadas, o QI foi considerado como sendo a única e perfeita medida da inteligência humana, abrangendo a totalidade do potencial intelectual de um indivíduo. De fato, inúmeros estudos apontavam para uma clara relação entre o nível de QI e o sucesso acadêmico e profissional. Como conseqüência, disseminou-se rapidamente o seu emprego nas escolas, universidades, instituições governamentais e empresas privadas, particularmente nos EUA, sendo o teste usado tanto para acompanhamento quanto para seleção.

Thorndike, porém, na década de 1920 distinguiu outros tipos de inteligência: a prática - revelada ao nível das atividades concretas, envolvendo a manipulação de objetos e agendas; a social ou emocional - responsável pelos comportamentos na relação social; a abstrata ou conceptual - manifestada nas capacidades de compreensão, raciocínio, resolução de problemas e tomadas de decisão.

A partir do final dos anos 70, diversos pesquisadores começaram a apontar várias falhas ou lacunas dos testes de QI em termos da sua capacidade de abranger a totalidade das faculdades intelectuais de um ser humano nos diversos contextos e situações, bem como as limitações do seu potencial em termos de prever o futuro sucesso pessoal e profissional.

O QI, no entanto, continuou sendo uma medida expressiva da capacidade de se lidar com uma lógica formal aplicada ao conhecimento acadêmico num contexto escolar ou abstrato e requisito imprescindível para atividades como pesquisa científica, trabalho acadêmico, para se lidar com a alta tecnologia, realizar cálculos e estimativas, escrever ensaios e artigos, realizar palestras, fazer avaliações e auditorias etc. Naturalmente, não media os fatores motivacionais, emocionais e ambientais necessários para o sucesso em qualquer atividade, tampouco os requisitos intelectuais associados a empreendimentos em contextos culturais diferentes do mencionado acima.

O teste de QI considera infradotadas as pessoas com quociente de inteligência igual ou menor de 74, abaixo da média entre 75 e 89, medianas entre 90 e 110, acima da média entre 111 e 125 e superdotadas as de QI igual ou maior de 126.

Ressalta-se que cidadãos listados no American Men of Science registram quocientes de inteligência em torno de 140; alunos diplomados Cum Laude nas melhores Pós-graduações em torno de 150 e os grandes gênios do passado em torno de 180.

Howard Gardner, psicólogo da Universidade de Harvard, em 1985, cunhou a Teoria das Inteligências Múltiplas, como uma alternativa para o conceito de inteligência humana, identificando a inteligência lógico-matemática, a espacial, a musical, a sinestésica, a interpessoal e a intrapessoal.

Postulou que essas competências intelectuais são relativamente independentes, tendo sua origem e limites genéticos próprios e substratos neuroanatômicos específicos e dispõem de processos cognitivos próprios.

Segundo ele, os seres humanos dispõem de graus variados de cada uma dessas inteligências e combinações e organizações diferentes das mesmas e se utilizam dessas capacidades intelectuais para resolver problemas e criar produtos. Ressalta que, embora estas inteligências sejam, até certo ponto, independentes uma das outras, elas raramente funcionam isoladamente.

Na sua teoria, Gardner propõe que todos os indivíduos, em princípio, têm a habilidade de questionar e procurar respostas usando todas as inteligências. Todos os indivíduos possuem, como parte de sua bagagem genética, certas habilidades básicas em todas as inteligências. A linha de desenvolvimento de cada inteligência, no entanto, será determinada tanto por fatores genéticos e neurobiológicos quanto por condições ambientais. Ele propõe, ainda, que cada uma destas inteligências tem sua forma própria de pensamento, ou de processamento de informações, além de seu sistema simbólico. Estes sistemas simbólicos estabelecem o contato entre os aspectos básicos da cognição e a variedade de papéis e funções culturais.

A noção de cultura é básica na Teoria das Inteligências Múltiplas de Gardner. Com a sua definição de inteligência humana como a habilidade para resolver problemas ou criar produtos que são significativos em um ou mais ambientes culturais, sugere que alguns talentos só se desenvolvem porque são valorizados pelo ambiente. Afirma que cada cultura valoriza certos talentos, que devem ser dominados por uma quantidade de indivíduos e, depois, passados para a geração seguinte.

Segundo ele, cada domínio, ou inteligência pode ser visto em termos de uma seqüência de estágios: enquanto todos os indivíduos normais possuem os estágios mais básicos em todas as inteligências, os estágios mais sofisticados dependem de maior trabalho ou aprendizado.

Em 1995, o psicólogo Daniel Goleman, no seu livro “Inteligência Emocional” retoma uma nova discussão sobre o assunto da inteligência humana trazendo o conceito da inteligência emocional como a maior responsável pelo sucesso ou insucesso das pessoas.

Destaca que a maioria das situações de trabalho é envolvida por relacionamentos entre as pessoas. Desta forma aqueles com qualidades de relacionamento humano, afabilidade, compreensão e gentileza têm mais chances de obter o sucesso.

Goleman destaca o óbvio que não só a razão influencia nos nossos atos, mas, que a emoção também é responsável por nossas respostas e tem grande poder sobre as pessoas.

Destaca também o controle do temperamento, a adaptabilidade, a persistência, a amizade, o respeito, a amabilidade e a empatia como habilidades emocionais consideradas importantes para que uma pessoa alcance seus objetivos, seja feliz e alcance sucesso na vida.

Apresenta vários níveis de Inteligência Emocional:

1. O autoconhecimento emocional - conhecimento de si próprio, de seus sentimentos, fundamental para que o homem tenha confiança em si (autoconfiança) e conheça seus pontos fortes e fracos;

2. O controle emocional – ou capacidade de gerenciar os próprios sentimentos, na medida em que controlar seus próprios sentimentos implica em se dar bem em qualquer lugar e em qualquer ato que se realize;

3. A automotivação – ou capacidade de realizar colocando as emoções a serviço de uma meta e realizando tudo que planeja pois tem consciência que todos os problemas são contornáveis e resolvíveis;

4. A empatia - ou saber se colocar no lugar do outro, perceber e captar o sentimento do outro. Sugere que a calma é fundamental para que isso aconteça. Os problemas devem ser resolvidos através de conversas claras. As explosões devem ser evitadas para que não prejudique o relacionamento com os outros;

5. A aptidão social – ou a capacidade de lidar com emoções do grupo. Saber trabalhar em equipe é fundamental no mundo atual. Sendo os sentimentos mais fortes do homem a tristeza, a alegria e a raiva, é fundamental saber lidar com eles. As pessoas que sabem controlar suas emoções são aquelas que obtém mais sucesso na vida.

A influência dessa teoria na educação humana foi altamente positiva, pois chamou a atenção para o fato de que as escolas não devem preocupar-se apenas com a inteligência de cada aluno, mas também com o desenvolvimento de sua capacidade de se relacionar bem com os outros e consigo mesmo.

Nos últimos quarenta anos, a seu turno, as neurociências (principalmente a neuropsicologia), formularam uma teoria dividindo o cérebro humano, estrutural e funcionalmente, em três cérebros - o reptílico, o límbico, e o cortical (cérebro triúnico), ou em três processos mentais fundamentais - o racional, o emocional e o prático.

Esses três processos mentais apesar de distintos, interdependentes e dinamicamente interligados, são sempre usados globalmente, mas a cada momento um deles está no comando, em predomínio sob os demais, orientando a nossa ação e recebendo a colaboração simultânea em proporções diferentes dos outros dois, de uma forma complementar ou opositiva.

Apesar desses três cérebros ou três processos mentais terem características próprias, constituem um sistema funcional complexo, simultâneo, interdependente e possível de cultivo, ou seja, de se melhorar a quantidade e a qualidade de seu desempenho.

Assim sendo é necessário entender a inteligência não como a otimização de uma inteligência específica qualquer (seja racional, emocional ou prática) e sim como o produto do uso das três em conjunto e separadamente de acordo com a necessidade de cada uma para o momento e a tarefa necessária para se atingir o fim almejado. É preciso também compreender que é possível cultivar cada uma das três principais inteligências por mecanismos e processos específicos para cada uma delas e que se deve sempre procurar se atingir um nível proporcional entre elas, não se podendo privilegiar o cultivo ou uso de uma delas em detrimento das outras duas.

Voltando à nossa estória o pai orgulhoso chamou seu filho e foi até o local da propriedade onde a fábrica de lingüiça de carne de burro havia sido recentemente instalada.

O diálogo que se seguiu foi mais ou menos assim:

- Filho, agora você vai poder provar sua inteligência e capacidade administrativa. Eu construí uma fábrica para você poder tocar sua vida com mais segurança no futuro e de maneira menos cansativa.

- Oh Pai, que bom!

- E como nossa fazenda é estritamente voltada para a pecuária eu resolvi botar uma fábrica de lingüiça de carne de burro para você trabalhar e administrar.

- Que maravilha!

- O equipamento chegou de SP na semana passada e a fabrica terminou de ser instalada hoje.

- Que bom!

- Vamos começar aqui no curral de burros. Olha o sistema é muito simples. Primeiro você toca os burros e bota eles neste curral. Depois cada um burro passa naquela estação de lavagem ali e toma um banho demorado. Em seguida recebe um choque elétrico e é morto. Passa para o setor que tira o couro. A esteira leva o burro até a dessossadeira onde é desossado, esquartejado e acaba nos ganchos de dessossamento. A carne ainda na esteira vai até essa máquina que separa a gordura e leva para a máquina de encher lingüiça. Lá embaixo o único funcionário necessário munido de cordinhas coloca tripas na boca do cano de saída daquela máquina e começa a encher as lingüiças.

- Que maravilha, Papai!

O pai continua entusiasmado:

- Assim filho veja que sem você tocar no animal durante todo o processo, basta você apertar o primeiro botão, lá no curral, onde o burro entra e, daí a meia hora, ele está saindo aqui no final do processo sob a forma de lingüiça.

- Que maravilha pai!

- Gostou mesmo meu filho?

- Uma maravilha! Posso fazer uma pergunta, pai?

- Pode filho.

- Pai, quer dizer que eu coloco o burro lá e saí a lingüiça aqui. Então se eu comprar bastante lingüiça e colocar aqui eu vou tirar o burro lá, né?

O pai não perde sua flegma:

- Meu filho, acho que não. O único lugar que eu enfie uma lingüiça e saiu um burro foi na ... de sua veneranda mãe.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380638
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