A AMIZADE SINCERA

ALEGRE, COMUNICATIVO, EXPANSIVO - em linhas gerais - assim era o Ernesto. Nunca o vira triste, nem em ocasiões esperadas como da perda de seres queridos, nos revezes da sorte, ou naqueles períodos em que tudo dá errado. Há seres humanos que já nascem inteiros por natureza.

De repente, porém, ei-lo, cabisbaixo, sorumbático, abatido, perdido em si mesmo, isolado, pensativo.

Logo questionei sua esposa sobre sua mudança de comportamento:

- Que eu saiba não houve nada, não. Ta tudo bem.

A um colega seu de trabalho que encontrei inadvertidamente na rua, sem denunciá-lo diretamente, procurei saber como ia o ambiente de trabalho e o desempenho dele lá:

- O Tavares (seu nome de família) que eu saiba tá bem. Algum problema?

- Não. Não o vejo há muito tempo.

- Ah.

Eu que me considerava seu amigo querido, senão seu mais constante, maior e fiel admirador, o interpelei certo dia pela manhã e ele prontamente desabafou:

- To muito contrariado amigo. Eu vou mesmo é ver se me agüento.

Surpreso, acrescentei:

- Que isso Ernesto? Alguém lhe sacaneou?

- Ninguém. O problema é comigo mesmo.

- Como assim? Algum problema de saúde? Você fez alguma coisa? Dinheiro? Estava ansioso e carente por uma explicação.

- Não vejo saída, amigo. Passo na sua casa no final do dia. Prometo que lhe conto tudo.

Insisti ainda segurando-lhe pelos braços. Inútil. Abaixou a cabeça, deu-me as costas e partiu célere.

Fui para o Hospital amargurado. Meu melhor amigo passando por um problema grave e nem mesmo podia saber como ajudá-lo.

Pensei:

- Estranho. O que será? Devo procurar a Ernestina e avisá-la; ou algum amigo de seu serviço e pedir para ficar de olho no seu comportamento e, protegê-lo, se necessário, sem o mesmo saber; ou procurá-lo de novo e, insistir com ele para me esclarecer agora mesmo, porque eu quero participar do problema e ajudá-lo. Não consegui de pronto decidir.

O dia transcorreu para mim pesado, arrastado, amargurado.

No final da manhã, liguei para o consultório do Ernesto procurando-o. Sua secretária confidenciou-me:

- Não veio trabalhar hoje até agora. Tive de desmarcar todas consultas. Dona Ernestina também acabou de ligar e ficou muito preocupada.

Passei a filosofar sobre a comunicação humana. Não me interessei pelos aspectos estruturais, funcionais ou mesmo lingüísticos do tema. Prendeu-me a precariedade da condição humana na sua expressão relacional.

Como no século XXI, passada a fase dos tambores, do telégrafo e do rádio e, atingida a possibilidade da comunicação em tempo real de todos os humanos por todo o planeta, o homem ainda, às vezes, no âmbito do relacionamento interpessoal, interfamiliar, intersocial, não consegue se fazer compreender?

Uma particularidade, porém, me dava tranqüilidade: tantas situações eu e o Ernesto havíamos enfrentado juntos nesses trinta anos de amizade, tantos segredos tínhamos já compartilhado, tantos sonhos ousáramos sonhar em comum que ele, seguramente, sabia que meu coração, assim como meu entendimento e, mais ainda minhas mãos, estariam à sua disposição para o que desse e viesse.

Pela minha cabeça passaram num relance tantas lembranças. A nossa primeira experiência sexual aos quatorze anos com a mesma parceira, nosso ingresso na Medicina aos dezessete após a guerra do vestibular concorrendo com colegas que já haviam feito um ano de cursinho dentro da faculdade – o então denominado pré-médico da Federal de Minas Gerais, nossos amores frustrados e tempestuosos, nossa separação na residência médica quando escolhemos especialidades diferentes, nossas dificuldades de sobrevivência na grande São Paulo durante essa última fase e tantos outros momentos e segredos que são somente privilégios de uma amizade verdadeira.

No início da noite, uma chamada de celular, que logo identifiquei meu amigo e, que se perdeu assim que atendi após um breve intervalo. Retomei imediatamente a ligação: fora da área de serviço ou desligado.

Inquietei-me mais ainda. Um seqüestro? E ele estava tentando estabelecer uma comunicação? Um último aviso desesperado? Uma tentativa de me avisar que não podia me encontrar naquela noite?

Liguei para seu consultório – ninguém atendia. Nova tentativa pelo celular: infrutífera novamente. Liguei para Ernestina:

- Estou desesperada. Até agora ninguém conseguiu falar com ele. Não foi trabalhar o dia inteiro. Ninguém sabe dele no Hospital. Seus colegas não o viram também. É muito estranho?

- E os meninos não sabem dele também?

- Não. Ta todo mundo preocupado.

- Ele lhe falou de algum problema que possa estar passando?

- Não, e com você?

- Também não. Não quis preocupá-la. Tranqüilize-a e disse que passaria a procurá-lo. Combinamos nos falar novamente se algum dado novo aparecesse. Despedimo-nos.

Passei a tentar comunicação com o Ernesto pelo celular a cada cinco a dez minutos e andei pela cidade como a procurar uma agulha num palheiro. Passei no Hausmussen – nosso recanto de sábado pela manhã após a visita médica do Hospital onde vários amigos e colegas se encontravam para estreitar laços de amizade e para jogar conversa fora. Passei na casa da Sueli (uma sua antiga amante) mesmo ninguém tendo atendido ao chamado telefônico. Sou obrigado a confidenciar esse segredo antigo já muito desfeito por ter caído no domínio público, inclusive no da Ernestina. Quem sabe uma recaída? Passei no Minas Tênis Clube, unidade 2 e, até na unidade 1, que há muito não freqüentávamos mais por ter ficado longe de nossas novas residências.

Liguei para casa em torno das vinte e uma horas. Minha filha Milena atendeu.

- Cadê sua mãe?

- Saiu. Deixou um bilhete pr´ôce.

- Diz se ela chegar que vou demorar. Estou procurando o tio Ernesto que deve estar em apuros.

- O quê?

- Depois lhe conto. Tchau.

- Tchau.

Continuei a caçada. Liguei para alguns colegas comuns. Nada. Ninguém o havia visto hoje.

Liguei para Ernestina.

- Toninho, o Ernesto me abandonou, confidenciou-me chorando.

- O quê?

- Isso mesmo. Acabou de sair de casa.

- O quê?

- Foi viver com outra mulher?

- Quem?

- Não quis me contar, soluçando.

- Eu vou aí. Desliguei.

Passei antes em casa, a meio caminho. Queria compartilhar com a Mariana a separação da Ernestina e do Ernesto. Subi ao segundo andar. Passei no quarto de Milena e ela já estava dormindo. Fui até meu quarto. Mariana não havia chegado ainda. Encima da cama, um bilhete:

Toninho

Perdoe-me. Estou tomando uma decisão muito penosa, sentida e definitiva. Há dois anos vivo um conflito doloroso. Eu e o Ernesto nos apaixonamos. Estamos partindo para vivermos juntos. Que você nos perdoe. Tentamos resistir de todas as maneiras por consideração e amor por você. Você não merece isso. Seja feliz. Mariana.

Acordei Milena. Ela já sabia de tudo. Fomos juntos para a casa da Ernestina. E a partir daí Ernestina e eu fomos estreitando nossa relação e há dois anos vivemos juntos, ao lado de Milena, André e Marcos, uma prazerosa relação e, porque não dizer, um grande amor.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380639
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