MEDO DE BARATAS

TRÊS RAZÕES EU CREIO foram fundamentais para Maria decidir se casar com José.

A primeira delas, talvez a mais importante, era seu exagerado medo de baratas. A visão de um exemplar do pequeno inseto, em qualquer lugar e em qualquer circunstância, liberava-lhe uma reação extrema de repulsa que beirava o pânico, semelhante aquela talvez que um ser humano pode denunciar numa situação de ameaça de morte. Seu rosto sempre exprimia todo seu horror; dava alguns passos para trás para se distanciar ao máximo do perigo, e implorava a quem estivesse por perto, mesmo a uma criança, que matasse o feroz inimigo.

A segunda razão era que ela acabara sua graduação em Administração de Empresas, em São Paulo, na São Camilo, o que apenas consolidara sua posição de membro da diretoria da empresa em que trabalhava, onde todos reconheciam e elogiavam suas exemplares qualidades de executiva.

A última era que ao voltar à sua casa no interior das Minas Gerais, por ocasião das festas de fim de ano, seu noivo, também conceituado médico, após cinco anos de espera, e ainda de luto pelo falecimento da mãe, precisava e insistia no matrimônio por todas as razões possíveis – sincero amor, necessidade de companhia, exigências do exercício de sua profissão. Claro, que a mãe de Maria, verdadeira fã do genro, exerceu também uma inquestionável parcela de positiva contribuição com seu aconselhamento, quando a mesma presenciou a cena da filha desesperada por uma baratinha que aparecera sem ser convidada na sala de espera, quando José se despedia de Maria numa noite de domingo.

- Minha filha, você tem de casar com esse rapaz. Não vejo como você pode protelar tanto esse casamento com uma pessoa tão especial. Olha o jeito com que ele atendeu a seu pedido e matou aquela barata, pra mim, é uma prova cabal do amor dele por você e de seu empenho para se casar com você.

Acreditem que um acontecimento tão aparentemente banal, de pouca monta, ridículo para alguns mesmo, instigou, no subconsciente ou no consciente, alguma força misteriosa e três meses passados, eis Maria e José, confirmando perante Deus, seu amor e compromisso, numa cerimônia que iria marcar época no calendário festivo local.

Eu que acompanhei, desde o início do namoro, os pormenores daquela união, inclusive tendo estado presente à cena decisiva - a morte da baratinha - um exemplo intangível de covardia, dada a força exercida pelo noivo apaixonado esmagando com o sapato da noiva a indefesa intrusa, me perguntei como aquela barata doméstica pôde representar um perigo tão aterrorizante àquela bela, talentosa e altaneira senhorita.

Após a linda cerimônia de casamento, na matriz local, celebrada pelo bispo regional e acompanhada por familiares dos noivos, amigos e expressiva parcela da sociedade, fomos para a festa de cumprimentos dos recém-casados. Eis que lá, pelo meio da recepção, divisei um colega do noivo, psiquiatra, e apesar do mesmo já denotar alto teor alcoólico, e também achar que um psicanalista talvez fosse mais bem indicado, porque deve ser muito mais afeto à leitura e mais comprometido com esses pequenos senões do ser humano - como o medo de baratas - eu me arrisquei a argui-lo sobre o tema em questão. Fui até muito bem recebido na minha curiosidade e me pareceu muito clara sua explicação apesar de sua voz muito arrastada e de ter se agarrado à minha gravata nova durante toda a explanação:

- Olha, senhor Justino, são mistérios do inconsciente. Uma mulher como essa é neurótica - claro que não havia nomeado a noiva como detentora daquela peculiaridade, ainda mais em atenção ao dia de suas núpcias. Ela tem fobia que é uma das reações de defesa ou de adaptação do neurótico. O neurótico se defende pela fobia, pela ansiedade ou pela depressão. Fobia é um temor ou aversão exagerada de confronto a situações, objetos, animais ou lugares. Caracteriza-se pelo pavor desmedido de quem a tem, que mesmo sabendo do caráter ridículo ou inofensivo de seus medos, não consegue controlar-se.

Acrescentou logo:

- As baratas são insetos de hábito noturno, durante o dia escondem-se em frestas de muros, em baixo de pedras ou em esgotos. A grande maioria das baratas é terrestre, porém existe uma pequena parcela de representantes aquáticos. À noite, elas deixam seus esconderijos em busca de alimentos, e por isso é comum encontrarmos esses insetos, em nossas cozinhas ou em lugares com resíduos ou detritos orgânicos. Existe, no mundo, cerca de vinte espécies de baratas domésticas e no Brasil a mais comum é a Periplaneta americana. O medo natural de baratas se justifica por habitarem regiões inóspitas (esgotos, monturos etc) e por transmitirem várias moléstias ao homem, além do que podem contaminar nossos alimentos. Não é raro, à noite, elas roerem também os lábios humanos no canto da boca, principalmente de crianças, ocasionando uma erupção conhecida como “herpes blattae”. Porém, a existência desse repugnante inseto se justifica pela sua importância ecológica como recicladora da matéria orgânica.

Finalizou triunfante:

- Li alhures que as mulheres além de terem medo das baratas subirem pelas suas pernas e quererem entrar num lugar que o senhor sabe aonde, elas, as baratas, por serem nojentas e virem de lugares sombrios e escuros representam magicamente uma ameaça contundente às defesas neuróticas delas por poderem despertar cenas traumáticas infantis ou desejos há muito reprimidos e perigosos.

Apesar de o médico ter vomitado no colarinho da minha camisa, porque pronunciou todo seu discurso, além de agarrado à minha gravata, com a boca ao pé do meu ouvido esquerdo, como se me confidenciasse um autêntico segredo, fiquei realmente surpreso pela sua sábia e coerente resposta.

Três anos se passaram. O casal, cada um a seu turno, progrediu na profissão. Uma moderna residência foi construída, e já estavam preparando o primeiro herdeiro ou herdeira, quando, sem muita explicação o marido começou a não querer matar alguma barata que por ventura se insinuasse à visão de sua esposa. Chegou mesmo, algumas vezes, de maneira infeliz, a propor que a mesma procurasse uma ajuda psicológica para resolver aquele desconforto que já começava a angustiá-lo também.

Maria prontamente aceitou a sugestão e começou a fazer uma análise com um psicanalista da capital, muito bem conceituado e nomeado por algumas de suas melhores amigas.

Dois anos após, Maria se divorciou de José, na medida que aprendeu a conviver com as baratas, guardando ainda uma razoável dose de repulsa pelas mesmas, mas já sem a necessidade de sacrificá-las e muito menos da maneira impiedosa que costumava ocorrer. Mudou-se para São Paulo, seis meses após o falecimento de sua mãe.

José? Casou-se com uma prima, de jeito manso e costumes caseiros, apesar de apresentar todos os medos do mundo – elevador, altura, de ladrão, de ser abandonada, de falar em público, da morte – nunca evidenciara o mais leve temor por baratas.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380640
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.