A VELHA MORADA DA CURUPAITI 359

ONTEM, EU VOLTEI à velha casa da Curupaiti 359, onde minha família de origem viveu - o Sô Ataíde, a Dona Iracema, meus irmãos, eu, e alguns parentes que moraram conosco por algum tempo por ajuda. Ali, primeiro e último refúgio de nossos pais do casamento até falecerem, cresci, me formei, e me mandei no início de minha vida adulta.

Meu pai foi o primeiro a partir para sempre - quase duas décadas. Minha mãe há cinco anos, no dia anterior da tragédia do 11 de setembro do World Trade Center.

Quando perdemos nossos pais e já somos maduros na idade, dois sentimentos logo nos assaltam.

O primeiro é que somente aí passamos a perceber que também vamos morrer, ou que aquela pretensa imortalidade mais própria da juventude que até então veladamente nos acompanhava não é mais possível.

O segundo é que sem esses dois, pai e mãe, elementos fundamentais da formação de nossas cabeças, apesar de ausentes para sempre continuam nas nossas razões, sentimentos e ações no dia-a-dia. São, sem dúvida, duas ausências que permanecem conosco eminentemente presentes; sempre.

Parei o carro na frente da casa, e não desci. Fiquei olhando aquela ontem nossa querida morada, ponto de partida para nós, filhos, para o mundo dos homens e demorei-me a observar e pensar a nossa vida anterior a partir da perspectiva do hoje.

Interessante. Não, assustador. Na parede frontal dela, entre as duas janelas, e encima da porta da frente duas placas anunciavam que ali se instalaram duas instituições de prestação de serviço - um laboratório de análises clínicas e uma clínica de acupuntura.

Um misto de perplexidade, desconforto e saudade me perturbou, e realmente não sei dizer qual dessas sensações era a maior.

Um sem número de impressões foi se aninhando na minha mente, de todos matizes, tamanhos e significações.

Lembrei minha mãe lavando roupa no tanque da varanda dos fundos e eu chegando e anunciando exultante:

- Passei - e era em medicina e na federal aos dezessete anos. Ingente vitória para a época e mesmo agora para um jovem de periferia e de classe média.

E ela emocionada:

- Eu sabia. Temos de ir a Roças Grandes pagar a promessa para Santo Antonio.

Veio à lembrança as personagens daquele retrato de família em frente ao portão da garagem que guardo até hoje: meu pai à paisana sorrindo, minha mãe com seu habitual vestido cinza listrado, minha tia Tereza, meu primo Beto, meus dois irmãos, Welther e Hedda, e eu com quatorze anos, segurando com uma das mãos o cinto e sorrindo despreocupado e maroto.

Vejo-me saindo em desabalada pela porta da frente e me encaminhando para a residência do Doutor Clodoaldo Avelino, distante seis quarteirões, em busca de socorro para meu pai encontrado desmaiado, após ouvirmos um barulho surdo, e eu e meu irmão termos arrombado a porta do banheiro. Acompanho-me correndo por todo o percurso, chorando, desesperado, cruzando no caminho com um bonde em direção oposta, e pedindo a Deus interiormente e em seguida ao médico, após com muito custo ele me ter atendido à sua porta, para socorrê-lo e salvá-lo. Mais tarde no Hospital São José, o diagnóstico de insuficiência da supra-renal pelo uso imoderado de corticóide para um eczema inguinal bilateral, hipotensão e queda ao solo. Era adolescente e por horas achei que havia perdido meu querido pai.

A casa era a mesma. A pintura da parede frontal também. Nela o enfeite de pedras de ardósia preservado. As grades das janelas não mudaram. Os moradores, porém, outros, indiferentes aquele passado para nós tão importante e ainda tão vivo em minha memória. Quem sabe que no quarto que nasci, cresci e me formei, um profissional da acupuntura agora desempenha sua função e a sala de estar da frente é sua sala de espera. Bem provável que no quarto de meus pais, cozinha, varanda e quarto dos fundos clientes são atendidos para análises clínicas de seus sangues, urinas, fezes e de tantas outras secreções humanas.

Mas como pode tanta indiferença, tanta insensibilidade, tanto desrespeito mesmo, de todos dali e das coisas do mundo com nossa família e com nosso passado.

Um homem de meia-idade, cabelo grisalho, vestido de branco dos pés ao pescoço, sai da casa e do passeio e pelo vidro aberto do carro me pergunta:

- Precisa de alguma coisa? Esperando alguém?

- Não, obrigado – respondo balançando a cabeça lentamente e com cara de poucos amigos.

Apesar das vinte horas passadas do dia, as luzes ainda estão acesas e pela janela da frente vislumbro eventualmente algumas pessoas em movimento lá dentro.

Penso:

- Vou entrar.

Fico indeciso:

- Mas para quê? O tempo passou. A realidade é outra. O que me adianta dizer para essas pessoas que agora transitam tranqüilamente pela casa, que ali cheguei feliz após o encontro com minha primeira namorada, que ali fiz minha primeira poesia e minha primeira música ao violão, que também ali nossa família se reunia no dia das mães e no dia após o natal. Sentávamos à mesma mesa, nos mesmos lugares, comíamos a mesma comida feita pela nossa mãe, sempre seguida do mesmo pudim de leite e encerrado pelo mesmo saboroso e cheiroso café. Não, eles vão morrer de rir.

Ligo o rádio do carro. Procuro e sintonizo a AM em 850 Kilociclos. A mesma que, muitas vezes, meu pai e eu ouvíamos, baixinho, na sala de estar, até quase a metade da madrugada. Ele a conferir as contas da Tesouraria Geral da Policia Militar de Minas Gerais, acendendo um continental no outro, e eu a estudar aqueles livros dispendiosos na época para nosso poder aquisitivo, grossos, com cheiro de novo, de Anatomia, de Fisiologia, de Bioquímica do primeiro ano do curso médico.

Lembro-me do João Leão, do Fernando, seu irmão, e do Zé Nico da Dona Geralda, meus colegas do Grupo Escolar Professor Morais, no bairro Padre Eustáquio, da capital mineira. O João foi ser engenheiro, casou, desquitou, seus cabelos já estavam todos brancos na última vez que o encontrei há dez anos. Sua gargalhada larga e fácil, porém, era a mesma. O Fernando não quis passar do segundo grau, seu casamento vingou, criou família, na época duas meninas, hoje devem estar já beirando a menopausa. Quê calamidade! O Ninico da Dona Geralda, não passou do primário. Foi ser caminhoneiro.

Meu olhar dirige-se para a rua de baixo - Olinto Magalhães – hoje, única via de retorno do bairro para carros e ônibus para o centro da cidade. Na esquina, ainda funciona o bar do Sô Arnaldo da Dona Geralda com outro proprietário desde a morte de ambos há quinze anos. Dona Geralda, minha mãe de leite, e amiga de minha mãe.

O passeio do bar que dava para a Curupaití era o ponto de encontro, meio século antes, da patota que ali viu televisão pela primeira vez e dali partia para as partidas de futebol de meia nas ruas próximas, para as disputas de futebol de botão principalmente na casa do Lincoln e para as descidas em carrinho de rolimã no morro do aeroporto próximo – ONTA. Eu então com dez anos era talvez o mais novo da turma.

Revejo a Dona Maria, minha avó materna, que morreu sob meus cuidados, já como médico recém-formado, de derrame cerebral, no Hospital Militar, aos noventa e quatro anos de idade e até então plenamente lúcida e cruzeirense doente.

O amor pelo Cruzeiro de meu irmão mais velho e meu nasceu a partir dela. O cruzeiro dessa época era o de Tostão, Dirceu Lopes e Piazza e quantas vezes ela nos acompanhou ao Mineirão. Ela era como uma madrinha no bairro do time. As paredes de seu quarto eram repletas de retratos dos jogadores, individualmente ou de suas formações campeãs. Assistia a todos programas esportivos da época durante a semana e aos jogos sozinha, trancada no seu quarto, pela Guarani, ajoelhada, com o terço na mão, rezando inclusive no intervalo e ouvíamos do lado de fora pedidos desesperados do tipo: - Oh, Santo Antonio fica com o Raul no gol! Oh, Virgem Maria ajuda o Tostão a marcar este pênalti! Oh, São Judas não deixa o Cruzeiro perder! E parece que naquela época todo os santos dos Céus conspiravam a seu favor e do Azul Celeste. Se o resultado era desfavorável, no dia seguinte, ia a pé de nossa casa até a da tia Onésima – dez quarteirões - e por toda a Rua Padre Eustáquio ouvia sempre das mesmas pessoas conhecidas provocações:

- Oh, Cruzeiro!

E recebiam, em alto e bom som:

- Vai à merda, seu filho da ... Todos a conheciam e recebiam o nome da mãe em meio a deliciosas gargalhadas.

De novo, o homem de roupa branca voltou e:

- Você não é o Carlinhos da Dona Iracema?

- Sou.

- Oh Carlos, imagino porque você deve estar parado aí e pensando. Sou o Geraldo, filho do Zé farmacêutico. Meu pai comprou a casa, você sabe?

- Sim.

- Eu minha mulher formamos em fisioterapia e farmácia e trabalhamos juntos aqui. Vamos descer?

- Grato Geraldo. Recomendações a seu pai. Vim de Coronel Fabriciano para um Congresso de Psiquiatria que começa amanhã no Minas Centro e antes de ir para a casa de meu irmão na Pampulha vim rever de longe nossa casa e matar um pouco da saudade.

- Pois é Carlos, fica tranqüilo. Nós sempre gostamos e admiramos muito seus pais. Dona Iracema e Sô Ataíde continuam aqui conosco, em memória, vivos.

- Grato Geraldo. Até.

- Até.

Arranquei o carro e na esquina ainda olhei por mais uma vez a nossa casa da Curupaiti 359.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380644
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.