O SÔ BODE E O SÔ ONÇA

ERA UM VEZ um bode - pedrês, violento, sagaz -, que há muito tempo, nos rincões das Minas Gerais, entendeu de se mudar de perto da cidade, onde vivia, com sua família - Dona Cabra e sete cabritinhos, três machos e quatro fêmeas - para o meio de uma floresta próxima.

O motivo era o processo de industrialização rápido, decorrente da implantação de uma usina siderúrgica na região, que passara a beneficiar suas ricas jazidas de minério em produção de aço. Este processo trouxe consigo uma irrupção de violência generalizada contra os moradores, e contra a fauna, e a flora, começando mesmo a dizimar a maior parte dos animais silvestres ali existentes.

- Aquele tempo bucólico, singelo, puro, de minha infância e adolescência, quando pastava livremente por toda região junto a meus pais e amigos, representa hoje uma tão somente mera e saudosa recordação, concluiu o bode com muita tristeza, certa feita, após muito pensar.

Não podemos esconder, que o nosso caprino era como um outro Capra aegagrus hircus qualquer, nas suas características básicas: mamífero, quadrúpede, ruminante, herbívoro, chifres ocos ou cavicórneos, fedorento, por exalar um cheiro muito forte, ruim, nauseabundo, de suas glândulas localizadas na base de seus chifres, orgulhoso de seus pelos compridos sob o queijo, que pareciam mais um cavanhaque ou uma barba, mantida sempre limpa, asseada, penteada. Esse em particular era descendente da espécie Bezoar, encontrada no Mediterrâneo e Oriente Médio, principalmente na ilha de Creta.

E se quisermos ser mais precisos, detalhistas, acadêmicos mesmos, aproveitando o trabalho profícuo de Lineu, de 1758, ousamos até afirmar que o bode em questão pode mesmo ser classificado como do reino animalia, do filo chordata, da classe mammalia, da ordem artiodactyla, da família bovidae, da sub-família caprinae, do gênero capra, da espécie capra aegagrus e da subespécie, já anteriormente nomeada, Capra aegagrus hircus.

Mas, felizmente, ele não mais encarnava o papel descabido, atávico, injusto, de bode expiatório, que seus antepassados egípcios assumiram quando os antigos Hebreus os espantavam para o deserto, na festa da expiação, depois de os haverem carregado de todas as iniqüidades e maldições que se as queriam afastar do povo. Felizmente os políticos de hoje haviam por mérito, direito, e com muito mais propriedade, os substituído desta penosa sina.

Seu proprietário, fazendeiro de muitos alqueires e de muitas lidas, sempre o seduzia dizendo que achava muito melhor lidar com cabras, cabritos e bodes do que com o gado:

- Eles são muito amorosos, se aconchegam fácil na gente, e não carecem de amarrar ou apear.

Sua satisfação, porém, logo se via arrefecida, porque ele vinha em seguida com um rosário de altercações não muito lisonjeiras:

- Mas etá bicho arisco! Vive buscando jeito de ultrapassar as cercas com vários fios. Cerca pra eles tem de ter sete arames, senão não segura. Sim, isso ele admitia: se cabra é um bicho que gosta de liberdade, bode então nem se fala.

E sempre emendava:

- A gente tem que ficar esperto com eles, porque o bode não pode ficar perto das cabras, seu cheiro forte compromete a qualidade do leite. Se um bode escapa e chega perto das cabras que estão sendo ordenhadas é prejuízo na certa – todo o leite está perdido. Ninguém consegue beber.

Foi por esses e outros senões que o nosso personagem quis partir e não demorou a iniciar a concretização de seu sonho: acordava cedinho, e com seus três filhos machos, se encaminhava para um local da floresta, que, a uma primeira vista, se enamorou, pelo seu panorama bonito, clima ameno, exuberância de cores e matizes, e principalmente por ser banhado por um córrego de águas mansas, transparentes, cristalinas. Logo demarcou uma área no cume de um monte, fez uma derrubada, limpou tudo direitinho, tirou uns esteios e os deixou empilhados para iniciar a armação de uma nova moradia.

Um pequeno intervalo de tempo, porém, dificultou uma sua segunda ida ao local, preso que ficou por obrigações anteriormente agendadas e que se mostraram prementes ao sustento e manutenção de sua família.

Eis que um onça pintado, manhoso, malicioso, e não menos arguto, por questões de segurança, ao sentir sua vida ameaçada, após a covarde matança de sua esposa, de seus três filhos, e de um vizinho e amigo, também se encantou com o sonho de uma moradia mais segura, mais distante, mais imune à sanha daqueles predadores fanáticos, vorazes, inconscientes, de um clube de caça e pesca recém-fundado da cidade vizinha.

E para não me acusarem, logo de início, que privilegiei mais o bode do que o onça nesta estória, sou obrigado também, mesmo sabendo que pode parecer não muito simpático para alguns leitores mais apressados, a classificar esse felídeo, raro, ágil caçador, e a beira da extinção em nosso país, como manda a ciência dos homens: reino animalia, filo chordata, classe mammalia, ordem carnívora, família felidae, gênero panthera, espécie onça, nome vulgar onça pintada.

E se me perdoam um pouco mais de informação sobre esse animal quero acrescentar mais algumas de suas características.

O mesmo é o único membro da família dos “grandes gatos” (felinos) que vive no Continente Americano. A onça-parda, também vive nas Américas e é quase do mesmo tamanho que a onça pintada, mas ela é classificada como pequenos gatos porque não pode rugir ou urrar.

Os outros seis membros da família dos grandes gatos são: o leão, o tigre, o leopardo, o leopardo das neves, a cheeta e o guepardo.

As outras vinte e sete espécies de pequenos gatos incluem: o gato-do-mato, o gato leopardo, o lynx, gato bob, a jaguatirica e o gato de Geoffroy.

Maiores que os leopardos, as onças-pintadas possuem uma larga e grande cabeça e poderosas patas. Elas podem medir de sessenta e oito a setenta e seis centímetros de altura (sem incluir a cabeça) e pesar de cinqüenta e sete a cento e treze quilogramas. As onças-pintadas podem rugir ou urrar, mas geralmente emitem grunhidos, rosnam e até miam.

As onças-pintadas são geralmente amarelo-pardas com manchas pretas, denominadas de rosetas, mas elas também podem ser pretas com manchas pretas. São de hábitos noturnos e possuem um excelente sentido de audição e olfato. São excelentes nadadores, escaladores de árvores e se locomovem com muita facilidade pelo o solo.

Vivem de uma dieta rica de pequenos e grandes animais tais como: porcos-do-mato, capivaras, antas, veados, macacos e também de tartarugas, sapos e peixes que caçam nos rios e matas.

Os filhotes permanecem com as mães geralmente até aos três anos de idade, quando eles começam a formar suas próprias famílias. Semelhantes aos gatos domésticos, eles marcam seus territórios com urina e arranhões nas árvores. São consideradas espécies vulneráveis ou ameaçadas de extinção, devido a caça predatória pela sua pele e a destruição dos seus habitat.

Vivem aproximadamente vinte anos, atingem a maturidade dos três aos quatro anos de idade, se reproduzem durante todo o ano, com período de gestação entre noventa e três e cento e cinco dias, produzindo de um a quatro filhotes de cada vez, atingem o peso de trinta e seis a cento e cinqüenta e oito quilogramas, e seus filhotes pesam de setecentos a novecentos gramas.

Pernas para quem tem, e o onça não demorou a encontrar o mesmo lugar do nosso bode, e divisando os esteios deixados ali por ele, disse:

- Opa, Deus ta me ajudando. Oia que coincidência. Este tanto de pau assim já tirado. Eu vô é fincá esses pau aqui e fazê uma casa.

Incontinenti, a onça furou uns buracos no chão e sentou os esteios, naquele mesmo dia. Ficou perto de uma semana por ali e deixou a construção praticamente precisando somente do telhado.

Na semana seguinte os três cabritinhos e o nosso vigoroso bode se deparam com a cena inusitada de uma casa quase completamente acabada, e como eram muito tementes a Deus, não demoraram a agradecer a providência divina:

- Oh Deus, não merecemo tamanha graça!

Entusiasmados pelo pretenso milagre, sentiram-se mais animados ainda e, em poucos dias, acabaram a casa, e ainda fizeram uma dispensa, um grande fogão, e um reservatório de água drenada de uma nascente próxima.

Quase um mês transcorreu, e numa manhã, eis que o bode e a sua família já prontamente instalados e felizes esperam, ao redor do fogão, Dona Cabra preparar o almoço.

De repente, eis que aponta o onça, lá em cima no espigão, e percebe aquele barulho danado, medonho, exultante, que naturalmente era o de uma família em íntima confraternização, e, vem, pé ante pé, e do lado de fora, pela janela da cozinha, se anuncia:

- Uai, Sô Bode, essa casa aí é minha!

- Minha o quê home?

- Minha porque fui eu que construí, Sô!

- Oia home, o que sei é que tamém construí.

Dona Cabra de pronto se apresenta:

- Oia, Sô Onça, tem um trein atrapaiado nesse entremeio e nos percisa discutí isso com mais calma.

- Uai perfeitamente, minha senhora. Sou todo ouvido.

- Meu marido com certeza trabaiô muito nessa casa. É mió ôces dois conversá direitinho logo e se entendê.

Chamou o Bode de lado e sussurrou:

- Oia marido, ocê precisa ir lendo a bula pra ele logo, falá com ele assim bem determinado, porque ocê sabe que a primeira imperssão é a que fica.

O bode e a onça se distanciaram um pouco da casa, conversaram e ficou tudo esclarecido:

- Oia home, eu vim pr´aquí; eu derrubei essa mata; tirei esteio; deixei.

- Oh Sô, eu cheguei; achei isso aberto; o esteio tirado; eu fui finquei.

- Ah!

- Dava de sorte que o dia que eu vinha, ocê não vinha.

- Ta tudo explicado!

A tensão como que por encanto se amainou um pouco, e os dois puderam mesmo se olhar, um o outro, se não com um pouco mais de compreensão, com um pouco menos de arrogância, de defesa, de medo.

- Ta convencido? A casa é de nóis dois, né Sô?

- É. Não tem outro jeito, né home.

- Ocê trabaiô, eu trabaiei tamém.

- Então nóis tem que fazê uma combinação.

- Nóis temo é de ficá junto.

E aí veio essa solução provisória, se bem que lógica, um tanto temerária, posto que aqueles dois, poderiam, eu penso, como agora, eventualmente se capitular à razão, mas fatalmente, quando menos esperarem, seão dominados por seus instintos predatórios, defensivos, irracionais, como é regra acontecer nos animais.

- É, então, a metade da casa é minha, a metade é sua.

- Certo home.

- Vamo então dividi a casa. Sua famíia é grande?

- Não, eu sô sozinho nesse mundo. Minha muié e meus dois fíios morrero numa emboscada, faz tempo, dois ano.

- Então eu vô dá ôce um quarto bastantinho bom e despóis se precisá nóis faz mais uma puxada.

- Não tem percisão não Sô. Um quarto me basta. Eu fico mermo mais tempo é fora mermo. Costumo í em casa é só pra dormi mermo.

- Então ta.

E o onça começou a sonhar seu sonho redentor:

- Eu vou sê muito feliz aqui. Lá onde tô, ta uma confusão danada: eles dá um tiro daqui, dá um tiro d‘acolá – uma preseguição tremenda. Tô muito incomodado; aqui nesse centro de mata eu sei que vô vivê é sussegado.

E assim, sem mais delongas, os últimos detalhes foram tratados.

- Oia home, tem uma coisa mais: ocê respeita minha famíia, que nóis respeita ocê.

- Certo Sô.

- E tem o seguinte: o que eu arrumá ocê come, e o que ocê arrumá nóis come tamém.

- Ta combinado. Nóis fica assim, disse a onça encerrando aquela primeira conversa.

Não demorou muito e a tensão entre o bode e o onça se instalou. No dia seguinte, o onça saiu e logo divisou um bando de caprinos que serenamente pastavam nas imediações. Meia hora após entra inopinadamente na sua recém conquistada residência e joga um grande bode morto na sala com o pescoço denunciando uma única mordida, que ainda sangrava.

- Oh Sô, limpa aí pra nóis comê.

Todos presentes na casa se entreolharam e a tensão se tranformou em susto, pânico, terror. Nem o bode, nem a Dona Cabra, e muito menos os cabritinhos se prestaram na ocasião a inqüirir o Onça, o quando, o onde, e o porquê daquele ato inusitado. A Dona Cabra, porém, mantendo a calma, a malícia, a serenidade, que Deus havia lhe atribuído naturalmente, levantou-se e fingindo-se satisfeita respondeu:

- Oh Sô Onça, que bom, não é que nóis já temo comida pra muito tempo. Vô logo é prepará e acondicioná essa carne.

Durante quase uma semana o clima se manteve carregado, denso, pesado, entre os moradores daquela casa, que apesar de ter sido erigida para fugir da violência dos homens e da sua sociedade, se transformara num campo de batalha, imerso em intolerância, em agressividade e na mais completa impossibilidade de solidariedade entre seus ocupantes.

Mas o leitor pode argumentar ou mesmo se perguntar: como é possível a convivência entre forças tão animais, tão irracionais, tão irrazoáveis, mesmo quando premidas pela necessidade de segurança e de manutenção de sua sobrevivência, e mesmo quando se vêem colocadas numa situação de diálogo espontâneo ou obrigatório?

Respondo, não é possível.

A circulação da energia no universo é independente da vontade dos homens, dos animais, dos vegetais, dos minerais, e vida pressupõe evolução, e evolução pressupõe competição, manutenção, reprodução, persistência da manifestação dessa mesma energia, em todos os lugares, níveis e condições.

Essa luta tenaz, instintual, automática, determina pelos humanos e animais a apropriação de bens e valores (comida, sexo, dinheiro; território, coisas, pessoas; amor, beleza, amizade; família, trabalho, instituições; saber, poder, segurança; educação, comunicação, lazer, etc.).

E esse condicionamento inexorável de tudo que é visível e invisível, leva-nos a todos, a matar ou morrer, perder ou ganhar, por ou dispor. E sempre o mais sensível, o mais capaz, o mais inteligente vai comandar o jogo, vai se apropriar da maior ou da melhor parte dos recursos, das produções, e das instituições disponíveis.

E sempre vai direcionar o sentido do movimento da circulação e da evolução da energia do universo para onde seu nariz apontar, com um discurso ditatorial, onde somente ele fala e não escuta a ele mesmo e a ninguém, sempre competindo com uma pequena parcela, que em tudo e em todo momento, se opõe dinamicamente, e levando todos - ele, a pequena parcela crítica, e a maioria inconsciente - para onde e como ele desejar, sempre, até o último fim.

Mas voltando à nossa estória, passado algum tempo, o bode caminhando pela floresta, encontra uma armadilha que provavelmente alguns homens haviam fabricado para pegar onça.

Pensou:

- Ta aí, minha resposta pra aquele gato miseráve.

E, a partir de então, voltava, três a quatro vezes ao dia, a aquele agora útil, engenhoso, admirável artefato construído pela inteligência humana, para se cientificar se algum felídeo fora capturado. E quanto mais passavam os dias, e o bode e sua família, tinham de comer, querendo ou não, aquela “saborosa” carne de carneiro, e na presença do onça, se deleitando, voraz, orgulhoso, altaneiro, mais o desejo de vingança se impunha na mente de nosso caprino.

Pensava obcecado:

- Oh home, ocê vai me pagá direitinho; ocê vai vê; mais dia, menos dia; ocê espera.

Mais alguns dias se passaram, e eis que chega na armadilha e lá se depara com uma onça presa, se debatendo, atemorizada. Mas sua alegria logo se esvai, porque apesar de ter a sua frente um espécime indefeso, a mesma ainda de nada valia, porque viva, faminta, desesperada, metia medo até a uma distância segura.

Disse para si mesmo:

- O negócio agora é rezá para esses home não voltá a tempo, e esse bicho podê morrê, e de fome, porque como é que vô matá ele mermo nessas circunstância?

Gastou ali um bom tempo a pensar possibilidades de execução desta sua presente inimiga mais feroz, mas também a sua maior e mais provável arma contra a ignomínia, o opróbrio, a desonra, perpetrada por aquele outro, agora seu velho, detestável, e inconveniente condômino. Tudo foi pensado e deixado de lado: truques, ardis, artimanhas; técnicas, instrumentos, objetos; projetos solitários e com a ajuda e comunhão da família e mesmo de amigos; preces, oferendas, despachos. Não, nada, nada mesmo, lhe pareceu mesmo um pouco factível, provável, exeqüível.

Acreditem que o bode voltou à sua casa e inventou para sua esposa uma missão na cidade, onde, por força de compromissos assumidos anteriormente, deveria gastar um bom tempo, e voltou e ficou de tocaia, espreitando toda a agonia da onça que caminhava inexoravelmente para a morte por imobilidade e inanição e, como se lembram, como era muito religioso, pedindo ao Superior para que os homens, agora mais do que nunca, tivessem algum contratempo e não voltassem tão logo à armadilha.

Quarenta longos dias e noites se passaram, e a onça, numa madrugada, onde a lua cheia majestosa do alto iluminava o terreno desmoitado, lavrado, arroteado, a clareira em meio da mata, espessa, emaranhada, brejosa, deu seu último suspiro.

O bode exultante abriu a armadilha, amarrou a onça com cipós, pelas patas, pelo pescoço, e pelo rabo, e, em segredo, com a ajuda então conseguida de seus três filhos queridos, puxou o animal até o terreiro de sua casa, e chamou a onça sua desafiante.

- Oh home, isso aqui é pra nóis comê hein? Ocê se apressa a tirá o couro desse gatão e prepará a carne dele, porque a que ocê arranjô deu só até onte hein?

A onça meio cismada com aquele feito do bode pensou três vezes, mas não conseguiu permanecer silencioso, e argüiu:

- Oh Sô, aonde ocê arrumô essa onça?

- Eu não sei. Eu matei.

- Matô com o que?

- Matei com um gravenutinho que tenho aí.

- Mas com um gravenutinho?

- É, com um gravenutinho. Mas eu hoje de manhã tamém tava naqueles dia... Oh home, eu vô avisá ôce, hein? O dia que eu tivê de quinze pra dezesseis... Que ocê vê eu saí aqui no meio do terreiro, gritando, berrando, dando cabeçada em tudo que tivê na minha frente... Enquanto não miná água no meu corpo, pra mode deu moiá minha barba... Eu não sussego... Eu não sussego... Eu não sussego...

- Oh Sô, é mermo? É bom eu sabê!

- Uai, home, ocê ta meio assulerado?

- Tô não Sô.

- Isso é pra nóis comê mermo, Sô Onça.

- Hoje mermo, nóis vai começá a comê esse bicho aí. É bom eu sabê que posso contá com ocê tamém pra sustentá nossas barriga, né?

A Dona Cabra não gostou nada. Suspeitou logo a manha, o ardil, o estratagema encetado pelo marido. Chamou-o como de costume a um canto:

- Oi marido, adonde ocê quê chegá? Ocê quê usá a merma arma do inimigo?

- E não?

- Não. Contra a força bruta não há resistência, é perciso paciença, o tempo certo, e sê é mais astuto.

- Eu quero mermo é vê a cara deste gato miseráve comendo, e gostando sem gostá, de comê uma sua companheira.

O clima da casa nada mudou nos dias seguintes, apenas se inverteu a sensação de insatisfação entre os dois ferrenhos contendores, quando à mesa, risonho, dominante, despreocupado, o bode dava bocadas de boca cheia na carne bem preparada pela Dona Cabrita e se dirigia insistentemente ao Onça:

- Oh home ocê ta meio constrangido? Não ta gostando da carne? Mastiga esse trein direito.

O Onça manteve a calma por muito tempo, mas finalmente não agüentando mais, ainda à mesa, procurou se defender:

- Oh Sô Bode, eu esqueci de lhe dizê, que o dia que eu amanhecê meio buzinado, e sai aí pro terreiro e dar um berrado, um ronco, um rosnado, ocê não corre não. Eu não faço nada a ninguém.

O bode não se intimidou:

- Oh home, pois é, eu tamém o dia que eu tivê de quinze para dezesseis, eu pulo encima de casa, eu pulo encima de barranco, eu pulo encima das pessoas, pulo pra ali, pulo pra lá, pulo pra acolá, enquanto não miná água no meu corpo Sá Onça eu não sussego. Eu tenho que miná água pra mode d´eu moiá minha barba. Eu tenho de moiá minha barba. Eu moiando minha barba eu tô feito.

Na primeira lua cheia o Onça cumpriu a sua palavra. Saiu para o terreiro e deu um urro tão estonteante, que estremeceu toda a natureza em volta, a casa, e os cabritinhos, que com medo entraram para debaixo das camas, intimidados, atemorizados, assombrados.

Dona Cabra, pasmada, atônita, estupefata, sofrendo fundo no coração o terror de seus filhos, se encaminhou até eles para confortá-los.

O Bode foi para a janela presenciar o triste espetáculo e sentindo sua liderança ameaçada não se conteve e num átimo se viu também no terreiro a dar cabeçadas, a pular aqui, a pular lá, a pular acolá.

A Onça, a seu turno, a cada salto do bode alterava o ritmo, o compasso e a intensidade de seu contracanto, e a lua lá de cima serena a tudo cismava.

O valente felino, mais por displicência do que por medo, foi o primeiro a silenciar, e como Dona Cabra acabava de deixar a casa a ela se dirigiu:

- Oh minha senhora, dá água pro Sô Bode pra moiá a barba dele.

- Oh Sô Onça ele ta começando agora. Pode deixá. Enquanto não miná água no corpo dele pra ele moiá aquela barba dele, ele não sussega de jeito nenhum. Hei, ali agora só Deus.

O bode continuava sua função, sua demonstração, sua performance desesperada. Pulava daqui, pulava dali, pulava acolá.

A Onça reiterou seu conselho:

- Minha senhora, dá água pra ele pra moiá a barba dele e vê se ele sussega.

E o Bode cada vez parecia mais doido. Vinha até perto da Onça, freiava, deixava uma mijada, que ora atingia ela, ora se inscrivia no chão demarcando o terreno à volta dela, e voltava para trás. E novamente repetia os mesmos passos como se fosse uma cena magistralmente marcada por um diretor de teatro. E a coreografia se repetia, estereotipada, exuberante, ameaçadora.

E aí aconteceu o imprevisível, o nunca esperado, o de todos insuspeitado: o Bode veio como se viesse para não voltar mais, envergou para o lado da Onça, e lançou a urina para molhar sua barba, mas aquela urina fedendo bateu na cara do Onça, e ela saiu em desabalada correria e mais nunca ou até hoje, pasmem, não havia voltado àquela casa.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380647
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