VAI TRABALHAR VAGABUNDO

Como se fossem os últimos passos de um corredor de fundo, ele venceu o longo corredor de sua residência, se aproximou da cama do casal, tombou-se, postando-se de costas, pesado, estatelado, imóvel.

Parecia todo moído, de uma densidade plúmbea, afundando no leito, e as ondas de dor que percorriam todo seu corpo, em nada aliviavam a sensação desagradável da metade esquerda de sua cabeça.

Com grande dificuldade estendeu sua mão, abriu a gaveta do criado mudo, as apalpadelas procurou seu remédio de enxaqueca, e engoliu em seco, de uma só vez, os três comprimidos restantes.

Sentia-se nem vivo, nem morto, talvez num estado sonambúlico, onde poderia sair percorrendo todos os inimagináveis caminhos do mundo, apesar de sua tristeza profunda daquele momento não lhe convidasse a ir a lugar algum.

Procurou não resistir, respirou fundo - tragou o ar pelo nariz demoradamente vendo seu tórax se expandir ao extremo, prendeu a inspiração o maior tempo possível, e, depois, exalou todo o conteúdo possível de seus pulmões pela boca demoradamente fazendo um bico com os lábios. Sabia que essa manobra o levaria a um estado letárgico de insensibilidade, de quase transe mediúnico, de abertura para o inefável, onde poderia experimentar desinteresse, indiferença, apatia.

Apesar de tantas outras vezes ter conseguido se livrar do mundo hostil do dia-a-dia com essa estratégia, desta feita, depois de algum tempo, a dor começou a se localizar atrás do olho esquerdo, a se tornar cada vez mais intolerável, incômoda, molesta, e uma ânsia de vômito se insinuou.

Tentou se levantar; impossível; era como se o corpo não obedecesse mais a seu controle consciente. A tentativa, porém, conseguiu aparentemente somente agravar sua algia e vomitou um líquido leitoso que deixou sua boca ácida, mordaz, viscosa.

Apesar de ateu, não tinha a certeza plena dos loucos, e, por vias das dúvidas, elevou seu pensamento a Deus, pedindo ajuda. Ato contínuo viu-se sendo transportado em incomensurável velocidade por um túnel caleidoscópio, edênico, paradisíaco, e lhe assaltou a plena consciência que se encaminhava para o além.

Num átimo, um sem número de imagens começou a se descortinar na sua tela mental, como se a rememorar instantaneamente toda a sua vida.

E, de repente, surgiu ao longe, a figura de uma mulher, vestida como uma princesa, em cores vivas e brilhantes, de uma beleza nunca vista, serena, altaneira, esguia, que, lentamente, veio se aproximando, até ficar na sua frente, ao seu alcance.

Tamanha era sua perfeição, sua atitude acolhedora, e sua nobreza, que sentiu vontade de beijar-lhe as mãos. Não foi necessário, ela se adiantou:

- Sou grato amigo pela altivez de seu pensamento, mas aqui, como lá no mundo dos mortais, a intenção antecede o gesto e a consciência, e carece da expressão para se evidenciar. Aceito a sua deferência à minha pessoa. Mas como está se sentindo?

- Não muito confortável realmente. Parece que estou no umbral de uma nova realidade, não é mesmo? É-me dado o direito de prosseguir ou de retroceder?

- A indivíduos como você sim.

- Como assim – indivíduos como eu?

- Indivíduos cuja graça do coração suplanta a inteligência e as atitudes.

- Isso quer dizer que meu coração sempre me guiou?

- Sim, apesar de sempre ter declarado a todos e aos quatro ventos a hegemonia de seu pensar.

- Permita-me uma pergunta, por favor?

- Sim.

- Quem é você?

- Ora, eu sou você mesmo - seu início, seu meio, seu fim. E estou aqui para procurar lhe conceder um último desejo.

- Muito interessante. E se eu progredir? O que encontrarei em seguida?

- Ora amigo não importa. Isso é um mistério. A mente humana não foi feita, ou ainda não é capaz de resolver todos os mistérios. E esse é, sem dúvida, um dos mais fundamentais.

- E para que serve a mente humana então?

- Para tornar a vida mais fácil de ser bem vivida dentro de critérios de equanimidade, justiça e amor.

- Isso mesmo, eu sempre pensei dessa mesma maneira. Mas como é difícil ser sempre sereno de espírito, moderado, imparcial, não é mesmo?

- Muito difícil. Mas temos todos de exercitar na vida terrena, a cada minuto, a cada hora, a cada dia, esses desígnios.

- Olha, eu quero voltar. Tenho certeza que apesar de consciente da força desses atributos, não os exercitei com a devida responsabilidade e preciso me redimir.

- Você é quem decide. Nunca é tarde para se querer recomeçar.

- Ótimo. E o que eu preciso aprender mais para poder viver uma vida mais plena?

- Ora, você, assim como toda a humanidade, já tem ou acumulou conhecimento suficiente para atingir esse objetivo. Precisamos apenas querer realmente exercitá-lo. A questão não é somente a quantidade ou a qualidade do conhecido, mas, muito mais, a decisão de se seguir alguns dos mais primários preceitos e se chegar a um porto qualquer possível, em vez de como um barco sem rumo, a cada momento, mudarmos de trajetória pelas forças das intempéries do cada dia.

- Mas se são tantas as possibilidades de orientação por onde devo começar?

- Por exemplo, pelo princípio primeiro de sua própria cultura cristã – amar o próximo como a si mesmo. E para tal, comece pelo genuíno perdão a você e aos seus semelhantes e pela compreensão e aceitação da perspectiva de cada um ser humano que a vida colocar no seu caminho.

- Mas, realmente o que vem a ser o amor?

- Ora, o amor nada mais é do que a harmonização de todas as diferenças. Somente o amor pode conciliar tanta diversidade de sentimentos, de perspectivas de pensar, e de possibilidades de agir das pessoas e as tamanhas contradições do mundo.

- Sim, realmente isso é razoável.

- E mais razoável ainda, é você não querer fazer mais do que é possível para sua atual dimensão pessoal. Use a sua inteligência com o devido limite guiado pela sua consciência alcançada, porque se não conseguir conciliar essas duas perspectivas – inteligência e consciência -, você se desumanizará e poderá se tornar um animal de rapina, esperto, premeditado, voraz, ou um ingênuo, um passivo, um Zé Ninguém alugado para qualquer finalidade.

- E mais?

- E mais? Sempre haverá um “E mais”. Relaxe. Toda estrada deve ser trilhada, desde o início, por pequenos e decisivos passos, que se sucedem no tempo e se viabilizam pelas possibilidades inerentes ao caminho. Dê o primeiro passo, siga seu coração e sua consciência, e viva de cada vez cada dia.

- E, quais metas, eu devo estabelecer e priorizar?

- Aquelas primeiras que forem possíveis. Mas, lembre-se, não se imponha metas impossíveis. Respeite a compreensão, o tempo, e a situação sua e de cada um de seus companheiros de viagem e seu discernimento será seu mestre a guiá-lo pelo desejável e possível.

- Muito razoável. Mas foram tantas as pessoas que julgo não as ter compreendido durante a minha vida, tantas a quem consciente ou inconscientemente fiz mal, ou não fiz o melhor possível, que seria impossível me remeter a elas todas e lhes pedir perdão ou compreensão.

- Não é preciso. Muitas fizeram o mesmo com você. Peça perdão no seu próprio íntimo e o universo seguramente reconciliará o conciliável e talvez até o inconciliável. Mas que tal se redimir tacitamente ou não com as que lhe são mais próximas, de momento.

- Sem dúvida. Pode ser o meu primeiro passo.

- Sim, com certeza.

- Olha, sou grato pela sua compreensão e a nova oportunidade a mim oferecida. Que Deus nos abençoe.

- Estou certo que sim.

- Então, até o menos breve possível.

- Sim, até o dia possível.

De repente, ele acorda com sua esposa o empurrando e o admoestando quanto ao horário de início de seu trabalho, que há muito expirara.

- Oh amor, perdão por tudo que lhe fiz de mal nessa vida.

- Oh deixa de brincadeira rapaz! Vai trabalhar vagabundo.

CARLOS VIEIRA
Enviado por CARLOS VIEIRA em 14/02/2007
Código do texto: T380651
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