A FLECHA

                Estranhamente , por segundos, sentiu um calafrio perpassar-lhe o corpo, eriçando os pelos que lhe cobriam os braços, as pernas e o tórax, apesar do calor intenso; uma sensação de deja vú, tomou conta dos seus pensamentos e percebeu ainda, que,de tão lento percebera-se inerte, até que o som de um grito distante o sacudiu e acordou das suas íntimas reflexões. De onde viera grito tão agudo, tão forte, tão longo que atravessara toda aquela imensidão e viera encontrar-lhe, acordando-o de tão intensas divagações ? Todos que por ali passavam, viraram-se, como uma só pessoa, viraram-se a interrogar: quem? De onde? Por que ? Fez-se então um ritmo em slow motion, tudo ali em volta, todo o ambiente, todo o contexto, todo o ar, tudo o que era movimento e vida, naquele momento, naquele exato momento parou, chamado pelo grito que veio de longe, como flecha que corre certa e penetra no interior mais profundo do ser. A flecha que uma vez arremessada,veio inteira atravessando almas e corações, tornando lento, o que um dia fora veloz ; poderosa, impôs um momento para que todos aqueles indivíduos, pudessem olhar-se profundo, e ouvir o silvo da flecha arremessada, como um grito que cortou o ar, como faca amolada cortando a língua que cala, ferindo de morte o medo. Foi como se o tempo, como nós o conhecemos, houvesse parado, ainda que tardia e talvez até, inutilmente, a nos amostrar que ainda há tempo, e de repente, aquela pressa voraz e sem sentido, que nos fazia caminhar em círculos, a buscar o nada, e a esquecer do Tudo, a deixar escoar pela ampulheta do tempo, a areia fina do nosso destino, foi contida por aquele grito, flecha certeira atirada por mãos fortes e habilidosas. Havia naquele gesto, naquele momento, naquele exato segundo, a riqueza toda de um início, como se fosse uma segunda feira, de blusas alvas, de sorrisos amplos, de bom dia afetuosos, de flores coloridas que se renovam nos jardins onde é sempre setembro e as primaveras são constantes. E em meio ao caos suburbano, paralisados pelo tempo, sibila no ar a flecha certeira, o grito, homens de terno, pasta e gravata, mulheres de linho e scarpin, bem maquiadas, gestos impensados, e todos ali, graves, suspensos todos no ar, num momento sem movimento, um momento incompleto,um passo não terminado, uma marcha não cancelada, um coletivo na contra mão, a fumaça parada em meio a espiral, o riso largo, sem contudo,expandir-se em gargalhadas, o passo não contemplado, a boca entreaberta na ânsia de uma palavra, e no ar, a flecha certeira que passa, rasga,e sibila e agora, como um só homem, um só pensamento,paralisado e angustiado, sem saber a exata e real intenção do momento, agiu, como todos agiram, esperando que, alguma palavra lhe dissessem que explicasse de onde vem este grito, que penetrou em todos os escaninhos do seu ser, fazendo transbordar-lhe o medo. O medo. Este amigo que nos inspira e transpira na dor voraz do desconhecido, do desconhecido que esmaga, com tantos nós, a nós e nos permite agir, buscando assim a conservação da espécie, ameaçada. Naquele momento, no momento da flecha sibilina que foi ao ar, e penetrou tempestivamente e perpassou por toda a gente, não pode deixar de perceber um acontecimento, naquele universo coletivo, o parar e deixar-se olhar para si, ouvir o grito e perceber, que ele vem de dentro, de lá de dentro, do mais profundo do seu âmago, daquele canto mais recôndito. Repensar,refazer, registrar, reagir, realizar há muito tempo, há muito tempo ele, o grito,a flecha certeira, estava lá, cristalizou-se, mas permaneceu lá, incógnito,incompleto, ígneo,incomodava, mas, lhe foram postos limites, limites de cercas farpadas, que sangravam, que feriam,a quem deles se aproximava, até que, o grito, flecha certeira, pontiaguda , expandiu-se,conquistou o espaço e fez-se perceber. Depois,tudo, aos poucos e poucos voltou ao normal, o homem de terno e gravata e pasta continuou o seu caminhar, a mulher de tailleur e scarpin andou em direção ao seu local trabalho, o coletivo voltou a circular, a fumaça, em espiral,evolveu em direção ao infinito; o metrô continuou viagem; o trem, café com pão, café com pão. Era necessário parar e retomar o caminho que foi esquecido, por ser preciso, é necessário ser-se de novo rico. Enfim, o grito, a flecha chegou certeira, completou sua trajetória, atingiu o seu objetivo.