Uma Tragicomédia: Emanuel e o Talião

Pavilhão Três. Conhecem-no todos. Indolente, o faxineiro despeja sob o capacho o pó pertinaz que teima ajuntar-se, embaraçando comensais e engrolando a digestão. Pavilhão Três - o capacho dos fundos - sobre que se devem bater as sandálias, entrando ou dele saindo...

- Eh! Eh! Hoje, recebi um telegrama importante! Serei nomeado... uuum... capitão! É! Eu sou Capitão Kirk, a seu dispor! E me mandarão pr'uma missão especial. Irei à Galáxia de... de Andrômeda! Missão diplomática. Cê sabe, né? Aqueles alienígenas vêm exigindo mundos e privilégios...

- Posso ir junto? Deixa, vai!

- Não e não! Um espião, isso é que é! Os Borgs enviaram você! Aqueles cretinos são uns inimigos da Federação! Com licença, mas vou precisar matá-lo agora, meu caro! - E segura pelo colarinho do uniforme o companheiro. Dá-lhe socos e gravatas. Os outros se acercam. Vibram e gritam; emborcam colchões, dão pulos e arremessam contra as grades das janelas pratos e penicos de alumínio. A azáfama fez acorrer os enfermeiros e auxiliares. Chegam munidos de cacetes e seringas, distribuindo pancadas e xingamentos; amarram ao leito os renitentes. Capitão Kirk, tomado pelas golas e de costas, fora arrojado contra uma parede, voando. Das narinas escorriam fios de sangue: - Ai, meu Deus! Os Kazons invadiram a Voyager! É o fim! o fim! - E uma cacetada de jeito o mandou para as estrelas. Caiu desfalecido.

Isso acontecia amiúde. Amiudados os tabefes.

Um homem gordo prostrara-se ao rés do soalho. Chegado há uma semana, gemia. As papadas regadas de suor. Mijava-se. Irritou aquela deploração o auxiliar. Indo até o estertorante, curvou, poderoso, o joelho sobre proeminente ventre. Ao miserando faltou ar. A cara ruborizou-se. Ia morrer, afigurava-se. - Geme, agora, seu boi cagão!

Fazia um mês, pouco mais, que médicos não apareciam ali. E se vêm, de leito em leito formulam maquinalmente tal ou tal diagnose, como dando penitências de padres-nossos e salve-rainhas. Esfregam as mãos. Entre bocejos prescrevem quais e quais fármacos. E se algum dos inquilinos da casa denuncia maus tratos: - Veremos isso, veremos... - diz o doutor. E vão o mais rápido que podem.

Pavilhão Três, anexo do Hospital Estadual - onde se fecham os tumores e as mazelas que enfeiam com seus pruridos a limpa urbanidade.

Sociopatas, hebefrênicos, até autistas e senis se podiam achar, em promíscua convivência. Se são algum chegasse, realmente louco logo se tornaria. E a todos era dispensado indistinto tratamento. Empurravam-lhes coquetéis psicotrópicos, como se dão balas de hortelã. As agressões rotineiras completavam a medicação. Não raros os casos de sodomia praticados pelos empregados e ajudantes, aproveitando-se da letargia em que caíam os internos.

Difícil respirar naquela atmosfera pestilenta, nauseabunda. Sofria-se de erisipela e micoses. Morria-se, muita vez, de infecção. A quem favorecesse a Providência, iria para a vala de indigentes do cemitério público. Ninguém reclamava o desvalido. Muitos eram catados nas ruas ou repudiados pelos familiares, tão pobres como indigentes. Outros, homicidas e tantos banidos, designava a cega Justiça àquele destino, supondo incapacidade de discernimento, quando do delito.

Cercavam o apêndice psiquiátrico muralhas de quatro metros ou mais, encimadas por pregos e gargalos de garrafas. Entre os muros e a edificação cresciam urtigas, mamoneiras e espinheiros. O capim espichava, alto. Em suas paredes externas sobravam uns resquícios de reboco. Data de cinco anos a última demão de cal.

Habitava naquele condomínio certo Emanuel, desses desterrados por sentença. Ao jovem talentoso defensor público que lhe tomara a questão, interessava mais o prestígio que advinha da notoriedade novelesca do caso. Aspirava por liberalmente advogar. Via no cargo um trampolim para outros saltos. Poderia, às expensas dos refletores, em breve, pedir que o exonerassem.

Sucedera a Emanuel, certa tarde, surpreender um moleque que lhe houvera subido a mangueira do quintal para subtrair os frutos. Tomou duma pedra e, cheio, acertou o garoto quando este já escalava a copa. A queda matou-o, senão o teria feito vegetar o traumatismo da violenta pedrada.

O milagreiro defensor transmutou dolo em culpa, vertendo e subvertendo a letra da Lei. E a tese de culpa foi logo esvaziada, fazendo inimputável seu cliente. Tal o espetáculo, que palco e platéia se quedaram comiserados. Por escrutínio, o réu foi de calculista criminoso a mero débil mental. A promotoria, sonolenta, deu por encerrada a demanda e despachou-se o doente.

E estava lá Emanuel fazia uns três meses. Era tido como demente bem comportado. Não dizia palavra. Nunca se envolvia em disputas como as de hoje.

De papo para cima, olha indiferente o imundo teto da enfermaria. Silêncio.

Desde os primeiros dias, estudava a rotina e seus convivas. Sabia de cor expediente e expedidores.

Pouco em pouco foi aliciando os cativos, conquistando-os por partilhar-lhes as alucinações. Conhecia-lhes os medos. Chaveiro, adentrava mundos; portais abria a outros tantos. Imergia. Emergia. Fazia pequenos favores a um, a outro. Barganhava, manipulando-os.

Prenunciasse a chegada dos carcereiros, incontinenti emudecia. Fingia cadentes movimentos, o olhar sem foco, inexpressivo. Quem o visse, aquela melancolia centrada, a cara imbecil, decerto o tomaria por bom louco, tão previsível quanto uma pá de mó.

Um dia, um dos auxiliares resolvera aproveitar-se daquela pasmaceira bovina: - Olha pra mim que eu tô falando, porra! - desferia-lhe secos tapas na cabeça rapada. Tinha-o fortemente seguro pelo maxilar. E ele olhava para cima, além e aquém, mas não fitava o interlocutor. Se lhe ocorresse nele cravar os olhos, sabia que a sua máscara iria por terra. Tomá-lo-ia gana e um apetite mortal. Era necessário que o supusessem alienado, irremediavelmente. Dispunha-se agüentar desta, ou de outras, conquanto não chegado o tempo...

Prosseguisse a comédia, em breve teria um pequeno exército de maltrapilhos. Poderia estourar um motim, uma guerra civil, simples lhe acudisse à veneta!

Nunca provava da medicação oral. Suas amígdalas enormes ajudavam. Concedia que lhe levassem à boca um ou dois comprimidos. Não passavam da base da língua. Aprendera a fazê-los recônditos ali. Displicente, o enfermeiro lhe abrisse os queixos não notaria facilmente. Saísse a assistência, era regurgitá-los janela afora, no capim alto. E, assim, não se deixava sedar.

Uma semana passou-se. Sobreveio-lhe confiança. Ardia.

Nomeou-se comandante da Resistência Terráquea e conspirou com Capitão Kirk uma revolução estelar. Convenceu-lhe de que os Kazons, depois da invasão à Voyager, bem mereciam o troco!

À noite, recrutaram-se dentre os menos débeis os soldados rebeldes. Urdiram a arte da guerra. Os demais terminariam fazendo sua parte sem o saberem, apenas armado o tumulto.

Emanuel não ignorava que era véspera de pílulas. Chegariam bem cedo os encarregados, em número de três. Raramente, depois de entrar, aferrolhavam a porta do galpão em que se amontoava o gado. Também não desconhecia o fato de, naquela manhã, coincidir turno de um já velho e pouco hábil guarda patrimonial: desarmado, velava o acesso à rua, adiante. Naquele horário, tornado propício, era reduzido o tráfego de médicos e funcionários que transitavam pelas seções do hospital.

Não dormiu.

Manhãzinha. Aproximavam-se um enfermeiro e dois assistentes. Notou-se que apenas um portava o pau de Jucá.

Emanuel posicionou-se duma maneira que, aberta a porta, seria favorecido por meio ocultá-lo.

Um dos soldados rebelados engendra, bem defronte, suposto embate com um lunático. Agarra-se-lhe ao pescoço e quer estrangulá-lo. Outros três, estrategicamente colocados, atiçam ânimos e instigam um bulício infernal. Mais quatro, acordados com Emanuel, esperam...

Brusco escancara-se a porta. O do cacete vinha à frente. Emanuel, ágil, esgueira-se por trás e com um repelão arranca-lhe a arma. Quebra-lhe logo as pernas. A esse tempo, os companheiros daquele querem se precipitar sobre o agressor: são rapidamente imobilizados com mordidas, socos e pontapés pelos apostos combatentes.

O homicida vê a oportunidade. Célere, abandona seu pelotão e dispara em direção à saída principal.

Um médico, que já se dirigia às pressas ao pavilhão, de êmbolo puxado e doses cavalares de tranqüilizantes, topou com ele em meio ao corredor. Quis barrar-lhe caminho: levou segura paulada no abdômen - não sem antes, porém, descarregar um terço da seringa na coxa do fujão.

O pobre guarda, vendo aquela aparição - um espantalho de porrete em riste, desvairado e berrando gritos de ordem - apontar em direção sua, teve arrepiados todos os pêlos e escafede-se dali, dando passagem ao demônio.

E ganha a liberdade!

Continua correndo. Percebe, então, que os sentidos vão falhando: - Aquele puto me espetou!

Já não atina. Mas segue, aos solavancos. Vai golpeando o ar, imaginando-se seguido, acercado.

Brincavam por ali cerca de vinte garotos. Jogavam pelada.

Viram aquele boneco careca, em pijamas de listras, sujo, cambaleante, a açoitar o vento.

Não deu outra: - O doido! Olha o doido! Pega ele! Pega! - sabiam do sanatório, pertinho.

Vendo aquela turba avizinhar-se, entrou em pânico.

Voltar não podia. Prendê-lo-iam por certo. A essas alturas o reforço já alcançara as imediações.

- E agora? E agora? - Chorava. Não conseguia enxergar direito. Divisava uns pequenos vultos se achegarem, em cantoria. Umas vozezinhas medonhas - talvez diabretes que lhe quisessem garfar o lombo!

Parou. Não obstante a vertigem, percebeu que se recostara numa árvore. Era uma castanholeira. Restavam-lhe uns rasgos de força. Soltou o porrete e alçou um galho baixo. Em criança, muito subira a alheios pés de frutas. E foi galgando, pendurando-se numa e noutra ramada. Chegou ao cimo.

- Derruba o doido! Derruba!

Uma saraivada de pedras o atingiu, cheio. Indefeso, acertavam-lhe ora o ventre, ora os membros, ora a boca. Mas foi um caco de tijolo colhido na cabeça que o fez despencar.

Não o houvesse matado a queda, o traumatismo teria feito dele um vegetal.

2007, 12 Fev