A Aposta

A taverna de Trebon era um lugar para loucos. Isso era de conhecimento geral. Mas houve um dia que ficou marcado na memória até mesmo do dono do estabelecimento, que após tantas loucuras que tinha para contar, após ter presenciado todas elas, essa era a que ele nunca se esquecia.

Trebon era um gordo careca de olhos pequenos e finos e um nariz grande, que denunciava sua descendência indígena, algo comum ali naquela região. Sempre havia um viajante sedento ou faminto que parava para abastecer sua diligência com provisões para os próximos cinco dias de viagem até a cidade mais próxima. Ele morava ali, num dos quartos do andar de cima, o mesmo que as prostitutas que ele aliciava utilizavam com seus clientes.

Eu me alegro de ter estado no bar aquele dia. Me rendeu essa boa história. Eu estava sentado numa cadeira num dos cantos da sala, próximo ao balcão de onde Trebon servia seus clientes e de onde ele quase nunca saía. Ficava ali, vestindo sempre sua camisa de algodão branco que ele nunca tirava ou lavava. Naquele tempo, com a guerra eclodindo no leste, quem se importava com a camisa que usava?

Eu estava fumando meu cachimbo e bebendo vinho com pão e queijo, cortesia de Trebon por ter insistido tanto para que eu tocasse aquele dia. Ganhei um quarto para ficar e vinho e comida nas horas vagas. O que importa é que o bar estava cheio naquele dia, não havia uma mesa em que não houvesse gente. Eu não prestava atenção no que as pessoas diziam, mas prestava bastante atenção nas pessoas em si. Pessoas me interessam, e são elas que fazem as minhas histórias serem o que são. O fato é que pouco antes de eu voltar a tocar meu alaúde, um homem entrou pela porta da frente fazendo barulho. Até aí não havia nada demais nisso. Ele usava uma blusa marrom, uma calça branca de linho e trazia uma adaga simples numa bainha de couro amarrada à cintura. Ele ficou parado em frente à porta por alguns segundos, procurando por alguém dentro da taverna, até que viu um grupo de 12 homens sentados numa mesa redonda bebendo rum e conversando aos berros. Os homens chamaram por ele.

Não estava bêbado como os seus amigos, mas sentou-se entre eles e não tardou estava conversando e rindo como eles como se tivesse bebido uma garrafa inteira sozinho.

Piratas. Eles são facilmente reconhecidos, as garrafas de rum e o cheiro de sal trazido pela maresia os entregam. O grupo de homens sentados no centro da taverna, numa mesa circular, não era diferente. Vestiam roupas sujas, fedendo a vômito, sal e bebida. As barbas eram de todos os tamanhos e suas roupas eram uma mistura curiosa de lã, algodão, seda e linho fino, provavelmente roubados de alguma realeza distante ou não.

Eu voltei minha atenção para meu vinho e meu pão e queijo. Depois que o homem se sentou com seus amigos, eu achei que ele não iria mais chamar minha atenção naquele dia. Era um final de tarde fresco. O porto fazia o dia ser quente em certos horários, fresco em outros e frio durante a maior parte da noite. O sol já ia descendo por trás do oceano aquela hora, quando esse homem se levantou da mesa em que estava e caminhou até o balcão onde Trebon ficava. Parou de frente para o taverneiro e se apoiou com o cotovelo sobre o balcão. Ele tinha uma barba rala e um cabelo mal cuidado descendo até os ombros. Um sorriso amarelo preenchia seu rosto marcado pelo sol e suas rugas na pele queimada.

— Eu quero uma dose dupla de Madaras ­— disse ele. Madaras era o rum mais caro do continente, e ainda é. Poucos tinham dinheiro para pagar por ele. Eu fiquei tão assustado quanto o taverneiro que, relutantemente, e com muito mau humor, devo dizer, encheu o copo de doses para ele.

O pirata tomou o rum com gosto e colocou o copo na mesa. Ele não estava bêbado, mas era um maluco de marca maior. Depois de beber, ele arrastou o copo até a ponta do balcão e deixou-o no ponto mais distante de si e do taverneiro.

Olhou para o copo e depois para Trebon, que tinha em seu rosto uma expressão de quem não estava entendendo mais nada.

— Eu te desafio! — disse o pirata, por fim.

Trebon ficou um minuto em silêncio, esperando para ouvir qual era o desafio, mas o outro continuou calado, esperando para ver a reação do taverneiro.

— Certo — disse Trebon, com muita calma.

— Eu aposto 500 moedas de prata que consigo mijar naquele copo daqui de onde estou! — disse o pirata.

Trebon fez uma expressão de quem tinha preguiça desse tipo de aposta. Olhou para o copo e depois para o pirata de volta. Pensou um pouco consigo mesmo. O homem só podia ser louco. Muito embora Trebon não tivesse certeza que aquele sujeito estranho tivesse de fato 500 moedas de prata, ele não tinha o que perder. Ninguém no mundo conseguia mijar a 3 metros de distância, ainda mais dentro de um copo.

Então ele aceitou. Eu pensei em quem iria limpar a sujeira do pirata depois que ele terminasse o serviço.

— Fique à vontade, então — disse Trebon.

Imediatamente, mas não antes de olhar e dar um sorrisinho maroto para seus amigos na mesa redonda, o homem abaixou a calça de couro um pouco e colocou o mijador para fora e começou a soltar tudo o que tinha. Eu não acreditei no que vi. Trebon não acreditou que ele estava falando a verdade e as mulheres soltaram aquele “oh”! típico de surpresa, nojo e, posso jurar, uma ponta de excitação.

O homem mijou no chão. Mijou no balcão, mijou sobre o balcão, mijou nas cadeiras perto dele, mijou no cliente, mijou em que estava perto dele, mijou em Trebon, mijou em todos os lugares em que poderia alcançar. Ele não se moveu do lugar em que estava, contudo, mas não havia uma única gota dentro do copo.

Ao final, Trebon sorria e se regozijava com seu perdedor. Ele estava feliz porque acabara de ganhar 500 moedas de prata sem precisar ter feito nada. Havia um sorriso de triunfo no rosto de Trebon, mas, subitamente, sem que ninguém esperasse, o pirata começou a gargalhar também. Todas as pessoas no bar que viram aquilo ficaram sem entender. O pirata fazia uma dança de triunfo esquisita direcionado não para o barman, mas sim para seus companheiros sentados na mesa. Dessa vez, eu não entendi.

— Por que você está feliz? — disse Trebon — Você acabou de perder 500 pratas!

Apesar da dúvida, ainda permanecia um sorriso no rosto de Trebon. Ele aguardou até que o pirata parasse de dançar de braços cruzados. Esse outro, quando finalmente se cansou de pular feito um maluco de um lado para outro, se encostou novamente no balcão sujo de mijo e falou para o taverneiro.

— Está vendo aqueles caras naquela mesa ali? — ele apontou para seus doze amigos sentados na mesa redonda, a única da taverna. Todas as pessoas que prestavam atenção naquela cena se voltaram para os outros piratas, que olhavam pasmos para o balcão. Os olhares na taverna eram de todos os tipos. Havia olhares abismados, olhares assustados, olhares desentendidos, empolgados, animados, felizes e irritados — Antes de apostar com você eu apostei 500 moedas de prata com cada um deles de que mijaria no seu bar inteiro, inclusive em você, e você ainda ficaria feliz.

Eu ri alto quando escutei aquilo. Não consegui me conter. Algumas pessoas olharam para mim e logo depois voltaram sua atenção para Trebon e o pirata. Trebon não sabia o que dizer, e os piratas sentados ao redor da mesa estavam pálidos e inconformados. Ninguém ali sabia dizer, eu ainda hoje não sei dizer, se a aposta foi paga. Nem sei se o pirata pagou Trebon a sua parte, minha atenção foi desviada logo em seguida quando um conhecido meu passou pela janela e acenou para mim do lado de fora, me chamando para me unir a ele. Era o sinal que eu estava esperando para colocar os pés para fora dali e iniciar o que havíamos planejado para aquela noite.

Então eu peguei meu alaúde, minha flauta e a garrafa de vinho, e deixei a taverna de Trebon para entrar no final de tarde fresco do porto. E não voltei mais ali.

— Extraído dos manuscritos de Tharivon Naïle