Um gato siamês conta a própria história
 
Estava-me enchendo do confinamento naquela gaiola minúscula, o tempo todo com um único brinquedo, além de um potinho de água e outro de ração seca. Não aguentava mais ter de fazer caras e bocas e gracinhas para crianças mimadas, esperando que se encantassem comigo e me levassem para casa. Vida de bicho em pet shop não é fácil. Mesmo para um gatinho siamês bonitinho e engraçado.

Até que enfim apareceu um moço. Perguntou se tinha um gato qualquer. O dono da loja trouxe-o até minha gaiola. O jovem achou caro. Regateou e conseguiu um desconto.

Apesar de ter sido resgatado a preço de liquidação, incompatível com a beleza e elegância de um legítimo siamês, e por um cara que não estava nada a fim de gatos, dei graças por estar saindo daquele lugar. Quando ouvi o rapaz dizer que era um presente para a namorada, alegrei-me. Todo mundo gosta de presentes e cuida bem deles. Agradeci minha sorte.

O cara não tinha muito jeito com gatos mesmo. Mandou o lojista me enfiar numa caixa de papelão com uns três ou quatro furos, comprou um pacote de ração vagabunda e me jogou no porta-malas do carro. Podia pelo menos ter mandado colocar um laço na caixa para prender a tampa em vez da rústica cordinha de sisal. Se ia me dar de presente para a namorada, um lacinho vermelho cairia bem. Uma gravata no pescoço seria melhor ideia. De nada disso o desajeitado se lembrou.

Quando a moça destampou a caixa, abri meu sorriso e joguei sobre ela o meu charme inteiro. Ronronei, fiz carinha de carente e feliz ao mesmo tempo. No chão, esfreguei-me nas suas pernas, mais macias do que minha pelagem chocolate. Finalmente um lar, pensei.

Enquanto fazia o reconhecimento da casa, cheirava os cantos, rolava-me no tapete persa da sala, distraído e feliz da vida, percebi de repente que falavam de mim. Como quem não quer nada, pulei para o colo da moça, sentada no sofá de veludo que, diga-se de passagem, era uma tentação para minhas unhas afiadas. Passei a prestar atenção na conversa.

- Meu bem, o gato é lindo, novinho ainda. Mas eu precisava de um vira-lata, sem raça. Tenho pena de abrir este. E se ele morrer? Não aguentar? Coitadinho, estou com dó.

Ôpa! Que história era aquela? Abrir? Morrer? Comecei a ficar preocupado. Apurei mais os ouvidos. Arrepiei-me todo depois de ouvir tudo.

A moça cursava veterinária na universidade. Queria um gato para estudos. Ia levar o bichano para a sala de cirurgia, raspar a barriga dele, passar o bisturi, mexer até não querer mais, tirar dúvidas com o professor, mostrar para os colegas, costurar e esperar que ele sobrevivesse. E o bichano, no caso e até segunda ordem, era eu. Sacanagem! O sujeito chegou ao pet shop, disse que queria um presente para a namorada, pechinchou o que pode e me comprou para ser estrunchado na faculdade? Grandessíssimo... Isto mesmo o que ele era. Um grande...

Meu coração ficou a mil. Esperei o grandessíssimo ir embora e imediatamente coloquei em prática o meu plano, concebido sob a pressão daqueles momentos de pavor. Tratei logo de ir conquistando o coração da moça. Ronronava nas pernas dela sem parar. Fiquei na sua cola o tempo todo. Não desgrudei. Fiz gracinhas de todo jeito, brinquei com bolinhas, mas me comportei. Resisti até ao sofá de veludo. Cada vez que passava por ele sentia calafrios de vontade de experimentar minhas unhas no convidativo tecido macio. Todavia, aguentei firme. Não podia despertar a ira de ninguém na casa. Posei de gato mais bonzinho do planeta.

Deu certo. A moça se apaixonou pelos meus encantos. No dia seguinte eu já estava achando que ela gostava mais de mim do que do namorado, aquele grandessíssimo...

Entretanto, a felicidade muitas vezes não é completa ou dura pouco. Estava tudo bem. A moça decidiu que me pouparia do sacrifício. Não iria mais abrir a minha barriga e ficaria comigo. Mas tinha um porém. Sempre tem um para atrapalhar a vida da gente.

Os cachorros da casa. Três enormes e ferozes pastores alemães. Foi o pai da moça quem advertiu.

- Não podemos ficar com o gato. Se ele for para o quintal os cachorros o dilaceram. Aqui não dá.

O homem pensava que eu era bobo de cair no quintal com três assassinos a minha espera. Eu, hein!

A moça voltou-se para um velho recém-chegado e que a tudo ouvia sem se manifestar.

- Vô, não dá mesmo para o gato ficar aqui. Cães e gatos não conseguem conviver em paz. Leva ele, vô?

- Para onde?

- Para sua casa. Ficando lá, poderei vê-lo quando quiser. Ele não é uma gracinha?

O velho concordou. Levou-me com ele. Mais um passeio de carro. Desta vez, passeio mesmo. Não estava dentro de uma caixa, trancado no porta-malas do automóvel do grandessíssimo. Viajei solto. Janelas fechadas, claro, somente com uma pequena fresta para circulação de ar. Se abertas estivessem, eu poderia não resistir ao convite do mundo e me mandar.

Em frente à sua casa o vô estacionou na calçada para abrir a porta da garagem. Desceu comigo no colo, mas parou para cumprimentar a filha da vizinha que entrava no carro dela para ir embora.

- Bonito gatinho. É seu?

- É da neta. Ganhou do namorado para estudar na faculdade. Ficou com dó de abrir ele. Pediu para trazer para cá porque na casa tem cachorros bravos.

- Coitadinho. Estudar num gato tão fofo.

- Quer para você? Direi que ele fugiu.

- Quero sim, se não se importar.

- Pode levar.

Eu de carro outra vez. Já estava me acostumando. Acomodei-me no banco de trás. Quase tirei um cochilo.

Entramos na casa. Fui logo tomando posse. Um quarto com uma cama grande, outro com uma de solteiro. Pela decoração era de um piá. Sala de televisão. Na frente uma outra cheia de sofás e um tapete felpudo. Não faltaria lugar para me refestelar e tirar boas sonecas sem ser incomodado.

Logo depois chegou o patrão e o guri. A patroa comigo nos braços foi me apresentar faceira. Antes que ela falasse, ouviu do marido.

- O que é isso?

Se ele entendesse minha linguagem saberia o que eu mesmo respondi.

- Um gato, imbecil.

Ouvi tudo de novo.

- Seu Ladislau me deu. Era da neta para abrir na universidade. Ficou com pena...

- E como é que ele vai viver aqui com o Tigre?

Êpa! Problema novo. Um tigre? Vou ter de conviver com um colega felino? Será que ele reconhecerá um parente distante e não vai me papar?

- Ora, o Tigre fica nos fundos e o gatinho dentro da casa e no jardim. Não haverá conflito. Garanto - respondeu a patroa.

Acordo fácil. Ganhei um lar definitivo. O tigre nos fundos, eu na frente. Basta cada um respeitar seu território e poderemos viver em paz - concluí feliz da vida.

Poucas horas depois já me sentia à vontade no meu espaço. Escolhi meus lugares preferidos. Ah, aquele tapete da sala de visitas era demais!

Só no dia seguinte me lembrei do outro. O tigre. Resolvi dar uma espiada lá nos fundos. Subi na soleira da janela do quarto de casal. Nem consegui me equilibrar no lugar. Mal apoiei as patas na madeira e instintivamente pulei de volta para dentro. Por pouco não caí na boca do tigre.

O que eu pensei que era um tigre, não era um tigre. Era o Tigre. Um boxer tigrado, cara de mau e com uma boca grande o suficiente para eu caber inteiro dentro dela.

Com o coração disparado, do chão olhava perplexo para a enorme cabeça na janela. O bicho latia de espumar, com as patas dianteiras apoiadas na soleira. Para meu conforto ele não conseguia saltar para dentro porque havia na abertura uma grade salvadora. E também não podia ver a minha humilde figura parecendo um coelhinho assustado, porque o ângulo não o favorecia.

Durante muitos dias deixei de visitar os quartos. Contudo, do jardim eu via o Tigre através de uma cerca de ferro que o continha no quintal. Mas não me arriscava a chegar perto.

Com o tempo ele foi se acalmando e já não latia quando me via passeando no jardim. Acho também que se acostumara com o meu cheiro. Possivelmente já havia entendido que eu também fazia parte da família e ficar nervoso seria perda de tempo.

Animado com esse pensamento, resolvi fazer mais uma tentativa de aproximação. Dirigi-me decidido ao quarto de casal e cautelosamente pulei para a soleira. Nem esquentei o lugar e o Tigre apareceu, mas desta vez não tentou me alcançar. Imóvel, com aquela cara de poucos amigos, limitava-se a me olhar e rosnar de vez em quando. Foi só.

Aproveitei a deixa, relaxei e deitei na soleira, mantendo os olhos bem abertos nele. Ficamos uns bons minutos assim, olhando um para o outro.

- Compadre, acho que você já entendeu que eu vim para ficar - arrisquei iniciar uma conversa - então vamos contrariar os instintos e viver como amigos. Que tal?

Soberbo, ele nem se deu o trabalho de responder. Permaneceu a uns dois metros de distância o tempo todo, olhando para mim, até eu me aborrecer e ir procurar outro canto.

Fiz daquele procedimento uma rotina. Todas as manhãs, quando a patroa abria a janela eu pulava para a soleira. Puxava conversa, mas o Tigre não queria papo. Estático o tempo todo, não tirava os olhos penetrantes de mim. Eu tinha medo só de imaginar o que poderia estar-se passando na cabeça dele.

Ficamos cerca de duas semanas nessa lengalenga silenciosa, até que um dia ele me surpreendeu. Quase caí da janela quando, tentando ser afável, ele falou com o seu vozeirão:

- Oi gatinho. Bom dia.

Meio zonzo com a surpresa, demorei a responder. E para acreditar.

- Desce aqui. Venha tomar sol - ele continuou.

Eu? Cair nessa? Este canzarrão deve estar mal intencionado e quer me seduzir, pensei desconfiado.

- Não tenha medo, não vou lhe fazer mal algum.

Depois do tempo necessário e suficiente para o meu coração voltar a bater direito, resolvi arriscar.

- Tenha juízo, Tigre. Vou descer. Não se esqueça de que também sou da família. Se alguma coisa de ruim me acontecer, os patrões não vão gostar. Você vai ter que se entender com eles.

Pulei para a calçada e me encolhi junto à parede. O Tigre se aproximou com aquela mania que os cachorros têm de cheirar tudo. Eu minúsculo diante da baita cara chata e do narigão fungando em cima de mim. Péssimo costume de cão, foi logo cheirar meu fiofó.

- Ó Tigre, pare com isso. Não sou cachorro, não. Olhe o respeito - supliquei, sentindo o focinho gelado no meu traseiro.

- Desculpe o mau jeito. Tudo bem, não faço mais.

Naquele momento iniciamos uma bela e duradoura amizade. Nem parecíamos gato e cachorro. Passei a frequentar o quintal sem medo. Gastávamos horas ao sol batendo grandes papos. O Tigre confessou que invejava minha liberdade. Enquanto eu podia circular livremente dentro e fora da casa, e até sair para a rua, ele era mantido no quintal. Com a supervisão do patrão, às vezes ia ao jardim.

Um dia uma gata da vizinhança entrou no cio. Fui atrás e me apresentei à turma. Por cortesia convidei todo mundo para uma bagunça no jardim lá de casa.

O Tigre ficou maluco com tantos gatos. O patrão não gostou da folia e abriu o portão para ele dar um corridão neles. Quase me acabei de tanto rir. O Tigrão investiu furioso para cima da galera. Foi um salve-se quem puder e gato para todo lado, esquivando-se pelos vãos da grade. Fiquei só olhando, parado e me divertindo. Daí o Tigre apontou para o meu lado. Acho que não tinha me reconhecido de pronto. Gritei e ele estancou com a bocarra aberta. Corri sério risco. Se ele fechasse o bocão na minha cabeça, poder-se-ia dizer que era uma vez um gato siamês.

Mudamos de casa, para um bairro não muito distante. Casa maior, mais espaço. Menos para o Tigre, que teve de se contentar com um canto menor, sem gramado. Em compensação ganhou uma casinha de concreto. Um apartamento com abrigo onde ficava o bebedouro automático, garantindo água sempre fresca, e a tigela de ração. À noite saia para passear com o patrão. Voltava cansado, mas feliz.

Eu dormia na churrasqueira. Deixaram um buraco na vidraça, perto do chão, de modo que eu podia sair e entrar quando quisesse. Liberdade. Coisa boa. Um vidão.

Logo que mudamos resolvi conhecer o bairro. Saí distraidamente, admirado com as novas paisagens. Na volta fiquei meio confuso e errei de rua e de casa. A porta da frente estava aberta e fui entrando sem ser notado. Vi que era uma butique funcionando na sala e mais tarde fiquei sabendo que a dona e duas filhas habitavam as outras peças. Tentando recuperar a memória e descansar um pouco, achei um canto escondido e dormi. Já estava fora de casa havia dois dias. Quando acordei, tentei ir embora, mas a porta estava trancada. Andei pela casa procurando uma saída. Estava tudo fechado e não havia ninguém. Começou um foguetório, então me lembrei de que era o último dia do ano. Os humanos despedem-se do ano velho e comemoram a chegado do novo com muito barulho e farra. Aborrecido por estar fora de casa num dia desses e desejando um pouco de silêncio, procurei abrigo no armário de um quarto de dormir. Não foi difícil abrir a porta, puxando-a na parte inferior com as patas dianteiras, apenas um tantinho para eu poder entrar. A porta fechou-se por si e eu me aninhei entre as roupas, adormecendo em seguida.

Acordei com vozes no quarto. Uma de mulher e duas de criança. Não esperava que a dona fosse abrir justamente a porta da repartição do armário onde eu me encontrava. Levei um baita susto e saltei para fora, passando entre as pernas dela. A mulher deu um grito do tamanho do mundo. Pensei que tivesse morrido.

Escondi-me no primeiro buraco que encontrei e fiquei bem quietinho. A mulher e as meninas me procuraram por toda parte. Não me encontraram. Acho que as crianças concluíram que a mãe tinha visto miragem, por conta de umas taças de champanha a mais no réveillon. Ela própria deve ter pensado assim, porque desistiu da caçada e foi dormir.

No dia seguinte aproveitei uma janela aberta e saí. Não conseguindo encontrar o caminho de casa, errei pelas redondezas durante vários dias. Mais tarde ouvi os patrões contando que me procuraram dias e dias pelo bairro todo e que a patroa chorara no almoço do Ano-novo. Acharam que eu tinha voltado para a casa antiga porque, segundo dizem, os gatos se afeiçoam mais ao ambiente do que às pessoas. Então, pensaram que eu tinha voltado para lá, ou pelo menos tentado, e me perdera no caminho.

Depois de vários dias vagando, sem querer fui parar na boutique de novo. Entrei sorrateiramente e me escondi para um descanso, como fizera na primeira vez. Posso garantir que cheiro de roupa nova é uma delícia. Quando acordei me peguei prisioneiro outra vez. E sozinho. Fiquei desesperado e comecei a miar pedindo socorro dentro de um banheiro que encontrei com a janela semiaberta. Infelizmente não conseguia alcançá-la porque era muito alta.

Enquanto eu emitia meu SOS em miados, o patrão encontrava-se na garagem procurando não sei o quê. Ao olhar por acaso para minha tigela de comida vazia, já guardada, pois não havia mais esperança de que eu voltasse ou fosse encontrado, ouviu um miado. Pensou que estivesse maluco. Seguiu procurando o que queria e quando focou a tigela novamente, escutou mais um miado. Estranhando a coincidência e para se certificar de que não estava enlouquecendo, resolveu investigar. Foi para o quintal e apurou os ouvidos. Miei de novo. O Tigre começou a latir e o patrão a me chamar. Do meu cativeiro eu podia ouvi-los com bastante clareza. Passei a miar sem parar. Com o alvoroço que provocamos, uma vizinha apareceu na janela. Incrível como eu estava tão perto de casa. A butique moradia fazia fundos com a casa que ficava ao lado da minha. Pelo som, imaginei com acerto que a janela do banheiro onde eu estava ficava defronte a janela onde estava a vizinha, ambas nos fundos das respectivas construções e a pouca distância uma da outra.

Escutei a mulher contar para o patrão o susto da outra na noite da passagem do ano, quando ela abriu a porta do armário e eu vazei a toda entre as suas pernas. Fiquei preocupado ao ouvi-la dizer que iria telefonar para um parente da dona da butique para se informar se ela estava na cidade ou não. E se ela não estivesse? Depois deu a notícia ao patrão.

- Ela não viajou. Melhor você esperar em frente a casa para preveni-la. Se ela entrar e encontrar o gato de novo vai morrer do coração.

O patrão e o filho foram aguardar a mulher. Eu parei de miar.

Quando a mulher chegou tarde da noite conduzindo o seu fusquinha e viu um homem e um rapaz no portão, hesitou em parar. Teve medo, mas resolveu arriscar. Sem chegar muito perto, o patrão se apresentou como novo morador do bairro, praticamente vizinho de fundos, e explicou o motivo da presença deles ali.

- Esse gato de novo?! Quase me matou de susto!

Ouvi as vozes das meninas. Não sabia se o patrão e o filho estavam junto com elas. Receoso, fui para o conhecido guarda-roupa me esconder. Permaneci em silêncio, na expectativa.

Enquanto o guri e as duas meninas entraram para me procurar, o patrão ficou conversando com a mulher. Como não me acharam, os três voltaram para a rua. A vizinha continuava de sentinela. Gritou de lá que não me vira sair pela janela do banheiro. Portanto, eu permanecia na casa.

O patrão pediu licença à mulher para ele mesmo fazer a busca. Entrou na casa chamando-me pelo nome. Ao perceber que ele chegara ao quarto e reconhecendo sua voz, respondi de dentro do armário. Ele abriu a porta surpreso e contente. Tomou-me nos braços, pediu desculpas à mulher pelo transtorno que eu havia causado e fomos embora.

Como foi bom voltar para casa, beber água fresca, comer ração de primeira, arrematada com um leitinho morno e deitar na minha cama. Delícia de retorno, doçura de lar.

Um dia, com o patrão viajando, a patroa saiu cedo. Retornou acompanhada da comadre e trazendo um bebê no colo. Depois entendi que a criança veio para ficar e tinha sido resgatada antes de ser entregue a um abrigo. Mais um na casa. Uma menininha. Surpresa para todos nós. Para o patrão também. Chegando de viagem, viu-se pai de novo.

Não me deixavam ficar sozinho com o bebê. Os humanos pensam que gatos sufocam criancinhas no berço. Bobagem, nós apenas somos curiosos e queremos ver tudo de pertinho. Mal não fazemos.

O neném era lindo e bonzinho. Não chorava. Virou atração da família e reizinho da casa. Parentes e amigos da família vinham visitá-lo. Uma romaria. Traziam presentes e alegria, além de votos de saúde e felicidade.

Uma noite veio um casal de amigos com um menino. O homem tinha nome de cientista famoso. Na copa, fiz mesuras para a mulher de rosto oriental e para o garoto. Depois me dirigi à sala com o propósito de dar as boas vindas ao homem. Cheguei muito sim senhor e pulei para o assento ao lado dele. O camarada parecia ter visto assombração. Fechou as pernas e encolheu-se todo contra o braço do sofá, quase em posição fetal. Pensei que ele ia ter um troço.

O patrão assustou-se e perguntou se ele estava passando mal. Ele respondeu que o problema era eu. Justificou dizendo que sofria de ailurofobia e por isso a presença de gatos lhe causava arrepios.

Por causa dessa ailurofobia do amigo do patrão fui expulso da sala. Saí contrariado, com aquela palavra esquisita na cabeça. Corri para o dicionário e lá encontrei o significado e os sinônimos: ailurofobia - aversão ou medo mórbido de gatos, galeofobia, elurofobia, gatofobia. Que frescura, pensei. Medinho de gatos? O homem estava com medinho de mim!

O bebê foi crescendo e transformando-se em uma menininha encantadora. Logo começou a andar e a falar sem parar. Fazia de mim gato e sapato. Puxava-me para um lado, para outro, punha-me no colo como se eu fosse um nenezinho. Maravilhado com ela, não ligava. Nunca me zanguei nem a ameacei. Se me cansava, saia um pouco para espairecer.

De vez em quando dava minhas escapadas para ir a algum casamento nas cercanias. Voltava fatigado. Os anos foram passando e comecei a sentir o peso da idade. Na última festa tive de enfrentar gatos mais novos e fortes para disputar a gatinha. Barra pesada. Voltei todo estropiado. Quase não pude chegar a casa. Mal podendo andar, fui-me arrastando.

Os patrões me levaram ao veterinário. Ele disse que precisava operar-me urgentemente ou eu morreria. Tinha feito uma hérnia pelo esforço despendido nas brigas. Estava sentindo-me muito mal mesmo. Um caco.

Aproveitando que seria sedado e anestesiado, o doutor sugeriu que eu fosse também castrado, para sossegar o pito. Esse foi o segundo grandessíssimo que encontrei na vida. Onde já se viu sugerir uma coisa dessas!

O pior é que os patrões, preocupados muito mais com a minha vida e menos com o meu prazer, concordaram e autorizaram a castração. Se eu não estivesse tão mal, juro que daria um jeito naquele grandessíssimo, aplicando-lhe umas boas arranhadas e providenciais mordidas. Mas não pude fazer nada. Fiquei na clínica.

No final da tarde foram me buscar. Ainda estava meio grogue em decorrência do efeito da sedação. Chegando ao lar, caí na cama. Quando melhorei fui me queixar ao meu amigo, no canil.

- Fiquei sem as bolas, Tigre. Um grandessíssimo me capou. Não mais as gatinhas, adeus noitadas ao sereno sob a luz da Lua. Acho que vou entrar em depressão. Talvez precise de um analista e deva tomar remédio de tarja preta. Que horror!

Desse dia em diante não saí mais de casa. Passava os dias dormindo. Gastava horas papeando com o Tigre. Ele no canil e eu no lado de fora. Nós dois deitados curtindo sol ou sombra, conforme o caso. Cabeça com cabeça.

Senti que estava ficando velho. Perdi alguns dentes. A patroa comprava comida molinha para mim no supermercado, própria para gatos. Por sinal uma gostosura. Pena que não comia por prazer, só por necessidade. O Tigre também estava velhinho, mas ainda firme e valente, impondo respeito. Nossos tempos estavam chegando ao fim. Quem iria primeiro?

Uma noite percebi que o meu dia se apresentava. Fiquei aflito porque não desejava que os da casa me vissem morto, principalmente a menininha. Pensei em poupá-la da visão trágica do meu cadáver. Então tomei uma decisão.

- Tigre, não dá mais para mim. Irei ao encontro do meu dia longe daqui. Vou desaparecer, ir-me-ei com o raiar da aurora. Cuide bem da menininha, no que depender de você e estiver ao seu alcance. Foi muito bom desfrutar da sua amizade, dividir a casa e o amor dos patrões. Adeus amigo.

O alvorecer estava próximo. Atravessei a rua em direção à praça. Do outro lado, no alto do morrinho, virei-me e avistei pela última vez a casa sutilmente iluminada pelos primeiros raios de sol.

Parti ao encontro do meu dia com a certeza de que fui um gato feliz, não posso me queixar. Recebi amor e alegria, retribuindo da mesma forma. No último instante escolhi ser um gato desaparecido, para não macular as lembranças dos que me amaram e respeitaram, com a imagem do meu corpo inerte no chão. Assim, para todos os efeitos, eu não morri. Apenas saí para mais um passeio, uma farra talvez.

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N. do A. - Na ilustração, Mitze, o gato siamês cuja trajetória de vida inspirou este conto, tão real quanto possível.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 15/08/2012
Reeditado em 08/06/2020
Código do texto: T3831627
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