A LUZ DA ESTRELA-MENINO

Dirigindo-se ao guichê da rodoviária para a compra de sua passagem, foi-lhe informado que seu ônibus partiria ás dezenove horas e trinta minutos. Faltavam exatos cinqüenta e cinco minutos de uma espera que precisava ser vencida.

Tinha ele uma farta fatia de tempo a saborear.

Degustou o banquete da forma mais conveniente

aos ditames de seus instintos.

Pôs-se a observar os fragmentos de realidade que saltitavam ao seu redor. Espectros perdidos desfilavam numa passarela em trajes coloridos. Plumas adornavam pescoços sobre corpos frágeis.

A desesperança pulsava em muitos olhares que, perdidos, fitavam o horizonte numa ânsia insana de que algo incerto pudesse romper a esquina e invadir, em sentidos, os espaços de seus palcos.

Uma penumbra de peremptória alegria manifestando-se nos trejeitos da bela moça que passa chama a atenção do observador menos atento. Todos os sentidos são arrebatados pela formosa presença que colore a cena. Inebriados pelo aroma de alfazema, a jovem moça desenha ilusão com os pincéis de seu fascínio.

Mais ao canto, um menino-moleque exala esperança em gestos de uma pureza divina. Acolhido pela aresta de duas paredes, agachado em abraço simultâneo dos joelhos, todos percebem emergir de sua silhueta, espectros de uma bondade quase tátil. De repente, observa-se com estranheza, que o modesto saguão da rodoviária parece ter sido encapsulado numa redoma que lhe preservara dos efeitos do tempo. Ninguém entrava ou saía. O movimento e barulho externo se calaram. Somente o vento operava roçando nossas faces, com especial carinho. Éramos cerca de 50 passageiros, antes ávidos para embarcar, agora, magnetizados pela angelical presença de um menino que dominava o centro de todas as atenções, numa condição impossível de não ser percebida.

A idéia da possibilidade de termos sido dragados por uma outra dimensão começa a ser conjeturada por sua mente irrequieta e investigativa, afinal todos parecem ter sido seqüestrados de suas realidades e arremeçados numa ciranda pulsaste de um sonho coletivo.

Todas os guichês de venda de bilhetes deixaram de funcionar. Mesmo que o estivessem, não haveria mais razão para esse fim pois não existia mais demanda. Todos estavam Inebriados por uma onda de um êxtase inacreditavelmente arrebatador, cujo epicentro era justamente o vértice daquela parede preenchida pela figura daquele menino.

As luzes do ambiente reduziram sua intensidade dando cena a uma penumbra. A rodoviária parecia ter sido arrancada dos seus referenciais de espaço-tempo. Houve uma ruptura com o mundo externo. Não éramos mais percebidos. Seria como se nunca tivéssemos existido. Quando nos atrevíamos a atravessar os limites em direção à calçada, nossos corpos desapareciam na medida em que penetrávamos naquele outro universo, fazendo-nos recuar. A constatação desse fenômeno foi coletiva, mas estranhamente não houve manifestação de pânico. As pessoas experimentavam uma sensação de auto-suficiência que lhes bastavam e continha toda a animalidade de seus instintos.

Deu-se que uma luz clara e forte como um fragmento de sol depreendeu-se do corpo daquela criança que, num átimo, flutuou pelos espaços, acompanhado pelos olhares maravilhados de todos que, apesar de estupefatos, eram contidos por um regozijo fraterno de uma paz incomensurável.

Deu-se que o menino multiplicou o foco de seu olhar e contemplou a alma de cada um, tocando nas suas essências e revelando segredos insondáveis particularmente guardados. A luz daquele garoto invadia nossos seres, iluminando as mais recônditas porções, incluindo aquelas que fazemos questão de ocultar. Todo esse ritual cumpriu seu ciclo em absoluto silêncio, que num dado instante, banhado foi pelas lágrimas incontidas da imensa maioria. Mas eram lágrimas restauradoras.

A luz que envolvia a criança foi se tornando cada vez mais intensa, ao ponto de nada mais poder ser reconhecido pela sua intensidade absurdamente desmedida. Nossos olhos cegaram por completo. Repentinamente, como numa descarga elétrica, fomos trazidos para a realidade num convite brutal de um anuncio que comunicava a partida de seu ônibus rumo ao destino aguardado.

Recobrados da experiência, ao olhar no relógio, dezenove horas e trinta e cinco minutos, marcavam os ponteiros. Todos os passageiros entreolharam-se em profundo silêncio, revelando uma mansidão jamais vista. O limite entre a realidade e a ficção não importara. A Sensação experimentada sobrepujava qualquer tentativa de compreensão.

MARCO ANTONIO BREGONCI
Enviado por MARCO ANTONIO BREGONCI em 19/08/2012
Reeditado em 18/11/2012
Código do texto: T3838561
Classificação de conteúdo: seguro