DOMITILA, A MENINA QUE SONHAVA CONQUISTAR O MUNDO

Pele de jambo, um tanto judiada pelo caudaloso calor tipicamente nordestino, olhos escuros e profundos de quem abriga muitos segredos, mas também muita dor, voz afável, apesar do carregadíssimo sotaque regional, silhueta bem feita, a qual todos diziam ter sido caprichosamente esculpida pelo Criador, sorriso sereno, longos cabelos negros e escorridos a roçar-lhe as ancas. Assim era Domitila. Qualquer um que a visse, diria que se tratava apenas de mais uma bela moça comum do sertão cearense, mas seus sonhos gritavam-lhe todos os dias que iria conquistar o mundo.

Primogênita de oito, Domitila recebera logo cedo a responsabilidade de ajudar a mãe com a casa e os irmãos menores. Desde muito miúda manifestara curiosidade pelas letras. Abaixo a rústica mesinha que sustentava dificultosamente a antiga televisão, a qual transmitia, em dias de sorte, apenas um canal, isto ainda com o auxílio improvisado de um pedaço de palha de aço suspensa à antena, repousavam as duas únicas obras literárias encontradas naquele humilde lar. O Novo Testamento, que a mãe ganhara havia alguns anos de uns cristãos que por ali passaram apregoando sua fé e um exemplar muitíssimo gasto de ‘As Viagens de Gulliver’, que o pai encontrara certa vez no lixo enquanto catava sucata, a fim de trocar por míseros centavos, mas que serviriam ao menos para o pão daquele dia. O patriarca não sabia ler, mas achara encantadoras as gravuras estampadas no livreto. Imediatamente guardou-o no bolso para levá-lo à ‘Dila’, como chamava sua menininha mais velha, por quem nutria um apreço notavelmente diferenciado, embora tentasse inutilmente disfarçar. Fato esse, volta e meia provocara ataques enciumados dos outros filhos e até mesmo da mãe, que vivia a repreendê-lo pelo comportamento, mas o coitado não agira mal intencionado, apenas repartira com aquela maiores afinidades que para com os outros. Pouquíssimas vezes aqueles olhinhos irradiaram tamanha alegria como ao contemplar o livrinho. Tinha já sete anos quando do ocorrido e a única vida que conhecera até então eram tão somente os afazeres do lar. Buscar água no poço, lavar roupas à beira rio, cuidar dos irmãos...

A escola mais próxima ficava quilômetro e meio dali, mas a insistência do pai era sempre subjugada ante os obstáculos impostos pela mãe. Mesmo assim, aqui acolá a pequena Dila dava suas escapulidas e via-se a espreitar pelas janelas. As aulas que mais lhe atraíam eram sem dúvidas as de português. Ficava embasbacada como simples símbolos, juntando-se podiam significar tanta coisa. Oh como eram preciosos aqueles instantes! Quando retornava à casa, imediatamente buscava seu único livrinho e martelava a cabecinha tentando entender o que contavam todas aquelas letras. Pelas imagens, supunha que fosse uma história deveras esplêndida. Fracasso! Pensava: “Se ao menos pudesse ter ficado mais tempo, talvez tivesse aprendido alguma coisa.” Pobre menina! Não podia imaginar que até o pouco que tinha lhe seria tirado.

Certo dia, a mãe a seguiu e quando viu que a menina estava a lhe desobedecer, foi surra para deixar a coitadinha acamada quatro dias. Findado o resguardo, voltara tudo ao seu normal, mas a menina nunca mais tivera coragem de retornar a escola.

Domitila tinha 13 anos quando a arranjaram o primeiro emprego. Servia as mesas no bar do tio Zacarias. Bonita e precocemente desenvolvida, era vítima de muitos gracejos dos homens que por ali passavam. Ficava indignada como muitos deles, casados, atreviam-se daquela forma.

Os sonhos de Domitila andavam quase sempre adormecidos... Amortecidos. Mas quando em vez, meio que ‘num’ despertar ou dormitar, como queira, a menina sentia-os novamente próximos. Tudo que a cercava remetia seu maior sonho. O cardápio do bar, as paredes das ruas, placas, até as roupas das pessoas. Sentia-se cega diante de tantas referências que para ela nada referiam.

Domitila beirava os 17 anos quando certa vez, antes de ir trabalhar, ainda no boteco do tio, sentiu uma peculiar vontade de levar ‘As Viagens de Gulliver’ para o trabalho. Mesmo sem entender o porquê daquilo, não mostrou resistência. Levou.

Era quase meio dia, Domitila estava para baixar os portões, quando surgiu, adentrando por estes mesmos, um belíssimo tipo. Um moreno charmoso, atlético, alto, olhos castanhos claros, sorriso largo e vibrante que quando aparecia, acentuava duas covinhas que contribuíam em demasia para a formosura daquele rosto. Um encanto! Logo despertou a atenção da moça. Atrairia a atenção de qualquer uma, diga-se de passagem.

O moço pediu um refrigerante e convidou-a a divagar com ele. A menina dirigiu um olhar hesitante ao tio Zacarias, ao que ele consentiu. A mocinha tão prestativa bem que merecia uma distração; e que mal poderia fazer-lhe aquele rapaz tão distinto, bem ali diante de si?

O moço era Felício, um jornalista carioca muito renomado, que estava ali de passagem à trabalho. Ao pôr do Sol, ambos já haviam discorrido toda a sua vida. Havia paixão no ar...

De súbito a proposta:

- Domitila, venhas comigo para o Rio de Janeiro e te ajudarei realizar sonhos que tu ainda nem tiveras.

Depois de pensar um pouco, a menina percebeu que não tinha a perder. Já perdera tanto ao desperdiçar anos cedendo aos caprichos alheios! Sentia pelo pai, pelos irmãos e até mesmo pela mãe que nunca a compreendera, mas tinha de fazer isso. Eles já possuíam a vida que queriam. Domitila não! Ela quisera mais, sonhava muito além. Poderia um dia retornar e explicar-se, até ajudá-los como pudesse, quem sabe?

- Então, vamos Domitila querida, queres passar na tua casa e pegares algo de que vá precisar?

- Não Felício. Disse ela fitando o velho exemplar de 'Gulliver'.

- Tudo de que preciso tenho cá comigo!

Partiram.

E lá se foi Domitila... Descobrir as palavras, conquistar o mundo!

Priscilla Carvalho
Enviado por Priscilla Carvalho em 30/08/2012
Reeditado em 31/08/2012
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