"_ NITSCHEWO"

“_ NITSCHEWO”

... atravesso um modesto cemitério;

do alto, ao longe, avisto um pequeno vilarejo: uma capela, um casarão e uma carreira de casinhas, todas iguais!

Consulto minhas anotações.

Endereço confirmado!

Lentamente caminho e me aproximo do lugar, da casinha, no papel, indicada, em rabiscos.

À frente um jardinzinho, um primor, plantado na pequena morada, jardim ornado com mimosas flores silvestres...

Bato palmas!

_ Ó de casa! - anuncio, feito um arauto.

Um vulto surge à porta. Ele se aproxima, e os traços, a cada passo, vão configurando o rosto da vovó Aksênia. A felicidade ancora em meu coração, quanta emoção! Finalmente eu a encontrei!

Logo me reconhecendo, vovó Aksênia, com certa dificuldade, acelera a leveza dos passos; ela vem ao meu encontro, com olhos suplicantes de saudade.

Atiro-me em seus braços, beijo-a, ambos choramos de alegria, por tanto tempo, tão longe, tão distantes...

Vovó Aksênia, um tanto assustada, pergunta-me:

_ Criança, como você aqui chegou, quem afinal lhe acompanha?

_ Ah, vovó! Uma moça, uma dama, de longos cabelos ruivos e olhos violeta. No momento, ela passeia entre as árvores e os arbustos daquele bosquinho, ali, logo acima... Veja, verde, verdinho, próximo ao cemitério.

Vovó Aksênia, aos prantos, me abraça. Então, a ela pergunto:

_ Vovozinha, vamos voltar para casa! A mamãe e meus titios precisam tanto de você! Quem a trouxe até este lugar?!

_ Ah, meu netinho, agora não posso, não teria tempo de lhe falar, a vovó precisa permanecer por mais algum tempo por aqui. Veja ali, o jardim que semeei! Enquanto recobro a saúde...

Contemplo o mimoso jardim da vovó Aksênia: gerânios em flor, rosas multicores; num cantinho: violetas, de múltiplas cores, tudo a formar um mosaico amoroso.

_ Vovó, eu quero uma mudinha desta rosinha, da vermelhinha...

Com frágil agilidade, vovó Aksênia corta um ramo da roseira e o deposita em minhas mãos. Então me solicita:

_ Plante este raminho em seu jardim, e toda vez que contemplar a mudinha em flor, promete que reza por mim?! – solicitou-me carinhosamente a vovó, com um soluço, como alguém que se diz tão-além.

Carinhosamente, vovó Aksênia retira os espinhos do raminho, enrolando a mudinha num lindo papel lilás, clarinho e, com um sorriso tristonho, apontou-me, lá para o alto da pequena montanhazinha...

_ Veja meu netinho, aquela bela moça lhe acena, é hora da partida...

Vovó Aksênia sussurra, com a voz embargada, e uma furtiva lágrima rola em sua face. Com meus dedos, eu a toco, e a enxugo, quando alcança seus lábios.

_ Não, vovó, me deixa ficar aqui, quero conhecer a sua casinha!

_ Não, meu netinho, é hora de partir. Você mostrou-se valente vindo até aqui, me visitar. Agora vá, veja! A bela moça começa a ficar um tanto impaciente...

_ Quero um abraço e um beijo, vovozinha querida!

Então, num reticente impulso, vovó Aksênia me guarda com carinho em seus braços. E ela se põe a me contemplar. Talvez procurando identificar traços d’algum filho, do amado vovô?! Os carinhosos olhos de vovó recomendam, então, que eu envie, feito arauto, abraços, carinhos e beijos à minha mamãe e a meus titiozinhos.

_ Vovó, assim de perto, a senhora é tão bonita! Mais bela ainda do que as fotos apresentam. Prometo montanhas, maior do que aquela, de abraços e beijos para a mamãe, para meus titios e para meu querido vovô Manoel.

E insisto:

_ Vovó, me deixa ficar, eu poderia partir amanhã, junto à aurora.

_ Não, meu netinho, acompanhe a bela moça, ela é filha do crepúsculo. Veja que belo poente! Agora retorno a tecer algumas roupinhas para as criancinhas deste lugar. À sua mamãe ensinei todas as lições da boa e da bela costura. Num futuro, vejo algo melhor para todos nós, em algum tempo, num belo lugar. Vai, então, meu netinho, já é hora, “nitschewo”...

_ Adeus, vovó Aksênia!

_ Adeus, meu netinho!

Sigo montanhazinha acima... “Nitschewo”; palavra e som riscam minha memória.

Ao poente, como a vovó indicara, me aproximo da bela moça; dos seus dedos escapam os últimos raios de luzes. Ornada de purpúreo véu, uma brilhante tiara de ouro lhe ampara os longos cabelos... levemente alaranjados. Radiante cabeleira ruiva ao vento; olhos azuis violeta. Uma deusa?! A mão é macia, delicada feito veludo...

Então, em suave tom, me solicita a fechar os olhos. Eu os fecho... Tenho a sensação de uma viagem, no tempo.

Ó tempo, tempo, tempo!

Rumo a jornadas, em algum lugar, em algum tempo futuro...

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Notas do autor:

1) Vovó Aksênia Schawirin nasceu em 1909, em Moscou, Rússia. Devido às convulsões sociais da ocasião, a família Schawirin migra rumo à cidade de Tblissi, na Geórgia, sul da Rússia, ao norte do Irã. Vovó Aksênia, aos 6 anos, dialogou com o líder revolucionário Lênin, amigo da família Schawirin. Uma mensagem percorre toda a Geórgia: “Há um país distante, chamado Brasil, um autêntico paraíso”!Junto à família, vovó emigrou rumo ao Brasil, em 1916, devido às devastações promovidas pelas guerras em território russo. Vovó Aksênia amou e foi bem-amada. Morreu aos 32 anos, nos braços de uma amiga negra chamada D. Conceição, numa colônia de leprosos, em Pirapitingüi/SP, no ano de 1940. Deixou cinco filhinhos e o amado vovô Manoel de Almeida Marques [1906-1968].

2) Na madrugada de hoje, sonhei com a minha mamãe Vera de Almeida Medeiros [1929-2003] junto à minha mamãe-vovó Aksênia Schawirin. Quantas saudades!

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas... janeiro agoniza neste 2007.