RABISCOS DA TARDE

As marés preguiçosas costumam lamber meus pés em tardes de setembro. As sombras se espicham pela areia e aspira-se um quê de primavera nostálgica. Caminho ao sabor do vento, compartilhando uma espécie de solidão com tantos outros que, feito as marés, vão e vêm deixando rastros molhados no espelho da praia. Marcas que duram poucos segundos. E novos desenhos vão sendo feitos e consumidos, lambidos pelas águas do mar. Sinto-me um pássaro com asas e, ao mesmo tempo, chumbos nos pés, tal a estranheza do passeio. Um leve pesado, misto de pressa e fuga. O sol dessa hora nostálgica tinge o horizonte de amarelo, rosa e cinza desmaiado. Barcos solitários repousam sobre as ondas em suave balanço. Uma gaivota recorta o horizonte sem deixar nenhum vestígio de sua trajetória. Apenas uma silhueta que se desloca mais além. A praia se veste e se despe de rendas, brancas espumas se desfazendo em raiados geométricos. O vento traz-me cheiro e lembranças. A nossa última conversa. Aquela despedida. Aperto o passo, pois a noite já começa a ensaiar as primeiras estrelas. É nessa hora que a solidão gosta de assobiar canções e preparar mistérios em sussurros de vento. Você estava tão linda e ao mesmo tempo tão triste que eu não sabia o que dizer. Lembro-me ainda hoje que não houve nenhuma promessa entre nós. Apenas o marulhar das ondas, o mesmo som de agora, de um mar que vai e vem, como que nos confirmando que a vida é fluxo e refluxo. Eu queria te prender nos meus braços. Mas você parecia aquela gaivota que se esvaiu no horizonte ainda há pouco. Sem deixar rastros. E permanece como lembrança que jamais se apaga. Tudo o que é triste parece durar uma eternidade. O que importa agora? Não me arrependo de nada. Sei que tivemos momentos felizes. Pequenos momentos que pensávamos que iriam durar para sempre. Mas, no fundo, bem no fundo, cada um de nós sabia que não era bem assim. E agora, entendo que não adianta a gente querer se enganar. Tudo acontece exatamente como tem que ser. Seja alegria ou tristeza. E a noite chega. E a primeira estrela solitária ensaia o seu brilho. Hora de retornar para casa. Sei que haverá um vazio a me abrir a porta. Haverá um silêncio me abraçando e fazendo eco dessas lembranças que as marés não conseguem apagar. Tua ausência, apenas a tua ausência, hoje, mora comigo.

PS. Ao chegar em casa, havia uma carta dela, com selo de Dublin. Ainda não tive coragem de abri-la.

José de Castro
Enviado por José de Castro em 28/09/2012
Reeditado em 28/09/2012
Código do texto: T3906470
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.