A hora e vez de Augusto Matraga (parte III), de Guimarães Rosa, em Contos e Novelas, seleção de Graciliano Ramos. Livraria – Editora Casa do Estudante do Brasil

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E assim nesse parado Nhô Augusto foi indo muito tempo, se acostumando com os novos sofrimentos, mais meses. Mas sempre saía para servir aos outros, quando precisavam, ajudava a carregar defuntos, visitava e assistia gente doente, e fazia tudo com uma tristeza bondosa, a mais não ser.
Até que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela: com o calor dos dias aumentando, e os dias cada vez maiores, e o joão-de-barro construindo casa nova, e as sementinhas, que hibernavam na poeira, esperando na poeira, em misteriosas incubações. Nhô Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho entusiasmava e era leve. Não tinha precisão de enxotar as tristezas. Não pensava nada... E as mariposas e os cupins-de-asas vinham voar ao redor da lamparina... Círculo rodeando a lua cheia, sem se encostar... E começaram os cantos. Primeiro, os sapos: — “Sapo na seca coaxando, chuva beirando”, mãe Quitéria!... — Apareceu uma jia na horta, e pererecas dentro de casa, pelas paredes... E os escorpiões e as minhocas pulavam no terreiro, perseguidos pela correição das lava-pés, em préstitos atarefados e compridos... No céu Sul, houve nuvens maiores, mais escuras... Aí, o peixe-frito pegou a cantar de noite. A casca de lua, de bico para baixo, “despejando”... Um vento frio, no fim do calor do dia... Na orilha do atoleiro, a saracura fêmea gritou, pedindo três potes, três potes, três potes para apanhar água... Choveu.
Aí, então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a ideia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu:
— Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim...
— Louvor ao Divino, meu filho!
E, uma vez, manhã, Nhô Augusto acordou sem saber por que era que ele estava com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando, ao mesmo tempo, muito bom se levantar. Então, depois do café, saiu para a horta cheirosa, cheia de passarinhos e de verdes, e fez uma descoberta: por que não pitava?! ... Não era pecado... Devia ficar alegre, sempre alegre, e esse era um gosto inocente, que ajudava a gente a se alegrar...
E isso foi pensado muito ligeiro, porque já ele enrolava a palha, com uma pressa medonha, como se não tivesse curtido tantos anos de abstenção. Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina.
Não, não era pecado!... E agora rezava até muito melhor e podia esperar melhor, mais sem pressa, a hora da libertação.
E, pois, foi aí por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e té hoje mui lembrada pelo povinho do Tombador.
Vindos do norte, da fronteira velha de guerra, bem montados, bem enroupados, bem apessoados, chegaram uns oito homens, que de longe se via que eram valentões: primeiro surgiu um, dianteiro, escoteiro, que percorreu, de ponta a ponta, o povoado, pedindo água à porta de uma casa, pedindo pousada em outra, espiando muito para tudo e fazendo pergunta e pergunta; depois, então, apareceram os outros, equipados com um despropósito de armas — carabinas, novinhas quase; garruchas, de um e de dois canos; revólveres de boas marcas; facas, punhais, quicés de cabos esculpidos; porretes e facões — e transportando um excesso de breves nos pescoços.
O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe — o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.
O povo não se mexia, apavorado, com medo de fechar as portas, com medo de ficar na rua, com medo de falar e de ficar calado, com medo de existir. Mas Nhô Augusto, que vinha de vir do mato, carregando um feixe de lenha para um homem chamado Tobias da Venda, quando soube do que havia, jogou a carga no chão e correu ao encontro dos recém-chegados.
Então o bandido Flosino Capeta, um sujeito cabeça de canoa, que nunca se apartava do chefe, caçoou:
— Que suplicante mais estúrdio será esse, que vem vindo ali, feito sombração?!
Mas seu Joãozinho Bem-Bem fez o cavalo avançar duas passadas, e disse:
— Não debocha, companheiro, que eu estou gostando do jeito deste homem caminhar!
E Flosino Capeta pasmou deveras, porque era a coisa mais custosa deste mundo seu Joãozinho Bem-Bem se agradar de alguém ao primeiro olhar.
Mas Nhô Augusto, parecendo não ver os demais, veio direito ao chefe, encarando-o firme e perguntando:
— O senhor, de sua graça, é que é mesmo o seu Joãozinho Bem-Bem, pois não é?
— Pra lhe servir, meu senhor.
— Apois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lhe convido para passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo de querer ficar por aqui... E de armar sua rede debaixo do meu telhado, que vai me dar muita satisfação!
— Eu aceito sua bondade, mano velho. Agora, preciso é de ver quem é mais, desse povinho assustado, que quer agasalhar o resto da minha gente...
— Pois eu gostava era que viessem todos juntos para o meu rancho...
— Não será abuso, mano velho?
— É não... É de coração...
— Pois então, vamos, que Deus lhe pagará!...
E seu Joãozinho Bem-Bem, que, com o rabo do olho, não deixava de vigiar tudo em volta, virou-se, rápido, para o Epifânio, que mexia com a winchester:
— Guarda a arma, companheiro, que eu já disse que não quero essa moda de brincar de dar tiro à-toa, à-toa, só por amor de espantar os moradores do lugar!...Vamos chegando! Guia a gente, mano velho.
E aí o casal de pretos, em grande susto, teve de se afanar, num corre-corre de depenar galinhas, matar leitoa, procurar ovos e fazer doces. E Nhô Augusto, depois de buscar ajuda para tratar dos cavalos, andou de casa em casa, arrecadando aluá, frutas, quitandas, fumo cheiroso, muita cachaça, e tudo o mais que de fino houvesse, para os convidados. E os seus convidados achavam imensa graça naquele homem, que se atarefava em servi-los, cheio de atenções, quase de carinhos, com cujo motivo eles não topavam atinar. Tinham armado as redes de fibra nas árvores do quintal, e repousavam, cada qual com o complicado arsenal bem ao alcance da mão. Então seu Joãozinho Bem-Bem contou a Nhô Augusto: estava de passagem, com uma pequena parte do seu bando, para o sul, para o arraial das Taquaras, na nascença do Manduri, a chamado de seu amigo Nicolau Cardoso, atacado por um mandão fazendeiro, de injustiça. E Flosino Capeta acrescentou:
— Diz’que o tal tomou reforço, com três tropas de serranos, mas é só a gente chegar lá, para não se ver ninguém mais... Eles têm que “dar o beiço e cair o cacho”, seu moço!... Mas a gente nem pode mais ter o gosto de brigar, porque o pessoal não aparece, no falar de entrar no meio do seu Joãozinho Bem-Bem...
Mas seu Joãozinho Bem-Bem interrompeu o outro:
— Prosa minha não carece de contar, companheiro, que todo o mundo já sabe.
Nhô Augusto passeava com os olhos, que nunca ninguém tinha visto tão grandes nem tão redondos, mostrando todo o branco ao redor. Seu Joãozinho Bem-Bem ria um riso descansado, e os outros riam também, circundando-o, obedientes.
— A gente não ia passar, porque eu nem sabia que aqui tinha este comercinho... Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do rio tinha a maleita, e da outra está reinando bexiga da brava... E falaram também numa soldadesca, que vem lá da Diamantina... Por isso a gente deu tanta volta.
Os pretos trouxeram a janta, para o meio do pátio. Era um banquete. E quando a turma se pôs em roda, para começar a comer, o anfitrião fez o sinal da cruz e rezou alto; e os outros o acompanharam, com o que Nhô Augusto deu mostras de exultar.
— O senhor, que é o dono da casa, venha comer aqui perto de mim, mano velho... — pediu seu Joãozinho Bem-Bem. — Mas, que é que o senhor está gostando tanto assim de apreciar? Ah, é o Tim?... Isso é morrinha de quartel... Ele é reiúno...
Nhô Augusto namorava o Tim Tatu-tá-te-vendo, desertor do Exército e de três milícias estaduais, e que, por isso mesmo e sem querer, caminhava marchando, e, para falar com alguém, se botava de sentido, em estrita posição.
— Esta guarda guerreira acompanha o senhor há muito tempo, seu Joãozinho Bem-Bem?
O chefe acertou a sujigola e tossiu, para responder:
— Alguns. É tudo gente limpa... Mocorongo eu não aceito comigo! Homem que atira de trás do toco não me serve... Gente minha só mata as mortes que eu mando, e morte que eu mando é só morte legal!
— Epa, ferro!... — exclamou Nhô Augusto, balançando o corpo.
Seu Joãozinho Bem-Bem continuou:
— Povo sarado e escovado... Mas eles todos me dão trabalho... Este aqui é baiano, fala mestre... Cabeça-chata é outro, porque eles avançam antes da hora... Não é gente fácil... Nem goiano, porque não é andejo... E nem mineiro, porque eles andam sempre com a raiva fora de hora, e não gostam de parar mais, quando começam a brigar... Mas, pessoal igual ao meu, não tem!
— E o senhor também não é mineiro, seu Joãozinho Bem-Bem?
— Isso sim, que sou... Sou da beira do rio... Sei lá de onde é que eu sou?!... Mas, por me lembrar, mano velho, não leve a mal o que eu vou lhe pedir: sua janta está de primeira, está boa até de regalo.., mas eu ando muito escandecido e meu estômago não presta pra mais... Se for coisa de pouco incômodo, o que eu queria era que o senhor mandasse aprontar para mim uma jacuba quente, com a rapadura bem preta e a farinha bem fina, e com umas folhinhas de laranja-da-terra no meio... Será que pode?
—Já, já...Vou ver.
— Deus lhe ajude, mano velho.
Enquanto isso, os outros devoravam, com muita esganação e lambança. E, quando Nhô Augusto chegou com a jacuba, interpelou-o o Zeferino, que multiplicava as sílabas, com esforço, e, como tartamudo teimoso, jogava, a cada sílaba, a cabeça para trás:
— Pois eu... eu est-t-tou m’me-espan-t-tando é de uma c’coisa, meu senhor: é de, neste jantar, com t-t-tantas c’comerias finas, não haver d-d-duas delas, das mais principais!
— Que é que está fazendo falta, amigo?
— É o m’molho da sa-mam-baia e a so-p-p’pa da c’c’anjiquinha!
Nhô Augusto sorriu:
— Eu agaranto que, na hora da zoeira, tu no pinguelo não gagueja!
— Que nada! — apoiou seu Joãozinho Bem-Bem. — Isto é cabra macho e remacheado, que dá pulo em cruz...
Já Nhô Augusto, incansável, sem querer esperdiçar detalhe, apalpava os braços do Epifânio, mulato enorme, de musculatura embatumada, de bicipitalidade maciça. E se voltava para o Juruminho, caboclo franzino, vivo no menor movimento, ágil até no manejo do garfo, que em sua mão ia e vinha como agulha de coser:
— Você, compadre, está-se vendo que deve de ser um corisco de chegador!...
E o Juruminho, gostando.
— Chego até em porco-espinho e em tatarana-rata, e em homem de vinte braços, com vinte foices para sarilhar!... Deito em ponta de chifre, durmo em ponta de faca, e amanheço em riba do meu colchão!... Está aí nosso chefe, que diga... E mais isto aqui...
E mostrou a palma da mão direita, lanhada de cicatrizes, de pegar punhais pelo pico, para desarmar gente em agressão.
Nhô Augusto se levantara, excitado:
— Opa! Oi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com as clavinas... E você outro, aí, mais este compadre de cara séria, pra voltearem... E este companheirinho chegador, para chegar na frente, e não dizer até-logo!...
E depois chover sem chuva, com o pau escrevendo e lendo, e arma de fogo debulhando, e homem mudo gritando, e os do lado de lá correndo e pedindo perdão!...
Mas, aí, Nhô Augusto calou, com o peito cheio; tomou um ar de acanhamento; suspirou e perguntou:
— Mais galinha, um pedaço, amigo?
— ‘tou feito.
— E você, seu barra?
— Agradecido... ‘tou encalcado... ‘tou cheio até à tampa! Enquanto isso, seu Joãozinho Bem-Bem, de cabeça entornada, não tirava os olhos de cima de Nhô Augusto. E Nhô Augusto, depois de servir a cachaça, bebeu também, dois goles, e pediu uma das papo-amarelo, para ver:
— Não faz conta de balas, amigo? Isto é arma que cursa longe...
— Pode gastar as oito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...
— Deixa a criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar, vocês não reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...
Fez fogo.
— Mão mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um em dois... Ferrugem em bom ferro!
Mas, nesse tento, Nhô Augusto tornou a fazer o pelo-sinal e entrou num desânimo, que o não largou mais.
Continuou, porém, a cuidar bem dos seus hóspedes, e, como o pessoal se acomodara ali mesmo, nas redes, ao relento, com uma fogueira acesa no meio do terreiro, ele só foi dormir tarde da noite, quando não houve mais nem um para contar histórias de conflitos, assaltos e duelos de exterminação.
Cedinho na manhã seguinte, o grupo se despediu. Joãozinho Bem-Bem agradeceu muito o agasalho, e terminou:
— O senhor, mano velho, a modo e coisa que é assim meio diferente, mas eu estou lhe prestando atenção, este tempo todo, e agora eu acho, pesado e pago, que o senhor é mas é pessoa boa mesmo, por ser. Nossos anjos da guarda combinaram, e isso para mim é o sinal que serve. Apois, se precisar de alguma coisa, se tem um recado ruim para mandar para alguém... Tiver algum inimigo alegre, por aí, é só dizer o nome e onde mora. Tem não? Pois, ‘tá bom. Deus lhe pague suas bondades.
— Vão com Deus! Até à volta, vocês todos. ‘té à volta, seu Joãozinho Bem-Bem!
Mas, depois de montado, o chefe ainda chamou Nhô Augusto, para dizer:
— Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida pra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?
— Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Pois então, mano velho, paciência.
— Mas nunca que eu hei de me esquecer dessa sua bizarria, meu amigo, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem!
Aí, o Juruminho, que tinha ficado mais para trás, de propósito, se curvou para Nhô Augusto e pediu, num cochicho ligeiro, para que os outros não escutassem:
— Amigo, reza por uma irmãzinha que eu tenho, que sofre de doença com muitas dores e vive na cama entrevada, lá no arraial do Urubu...
E o bando entrou na estrada, com o Tim Tatu-tá-te-vendo puxando uma cantiga brava, de tempo de revolução:
O terreiro lá de casa
não se varre com vassoura:
varre com ponta de sabre,
bala de metralhadora...
Nhô Augusto não tirou os olhos, até que desaparecessem. E depois se esparramou em si, pensando forte.
Aqueles, sim, que estavam no bom, porque não tinham de pensar em coisa nenhuma de salvação de alma, e podiam andar no mundo, de cabeça em pé... Só ele, Nhô Augusto, era quem estava de todo desonrado, porque, mesmo lá, na sua terra, se alguém se lembrava ainda do seu nome, havia de ser para arrastá-lo pela rua da amargura...
O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...
E o oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seu Joãozinho Bem-Bem, e oTim, e o Juruminho, e o Epifânio — e todos — rebentavam com o Major Consilva, com o Ovídio, com a mulher, com todo o mundo que tivesse tido mão ou fala na sua desgarração. Eh, mundo velho de bambaruê e bambaruá! ... Eh, ferragem!...
E Nhô Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes.
Mas, qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mão mais dura...
E só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua penitência, e entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer tirar sua alma da boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente, para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais.
Recorreu ao rompante:
— Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguém não me faz virar e nem andar de fasto!
E, à noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porque ele já viajou, do acordado para o sono, montado num sonho bonito, no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em cima, sem descuido, garantindo tudo. E, assim, dormiram as coisas.
Deu uma invernada brava, mas para Nhô Augusto não foi nada: passava os dias debaixo da chuva, limpando o terreiro, sem precisão nenhuma. Depois, entestou de pôr abaixo o mato, que conduzia até à beira do córrego os angicos de casca encoscorada e os jacarandás anosos, da primeira geração. E era cada machadada bruta, com ele golpeando os troncos, e gritando. E os pretos, que se estavam dando muito bem com o sistema, traziam-lhe de vez em quando um golinho, para que ele não apanhasse resfriado; e, como para chegarem até lá também se molhavam, tomavam cuidado de se defender, igualmente, contra os seus resfriados possíveis.
E ainda outras coisas tinham acontecido, e a primeira delas era que, agora, Nhô Augusto sentia saudades de mulheres. E a força da vida nele latejava, em ondas largas, numa tensão confortante, que era um regresso e um ressurgimento. Assim, sim, que era bom fazer penitência, com a tentação estimulando, com o rasto no terreno conquistado, com o perigo e tudo. Nem pensou mais em morte, nem em ir para o céu; e mesmo a lembrança de sua desdita e reveses parou de atormentá-lo, como a fome depois de um almoço cheio. Bastava-lhe rezar e aguentar firme, com o diabo ali perto, subjugado e apanhando de rijo, que era um prazer. E somente por hábito, quase, era que ia repetindo:
— Cada um tem a sua hora, a minha vez há de chegar!
Tanto assim, que nem escolhia, para dizer isso, as horas certas, as três horas fortes do dia, em que os anjos escutam e dizem amém...
Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá embaixo — a manhã mais bonita que ele já pudera ver.
Estava capinando, na beira do rego.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro.
Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais juntas.
— Uai! Até as maracanãs!
E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam mais. Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra — grão de verdura — se sumindo no sul.
— Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!
E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido — rrrl-rrril! rrrl-rrril!...
Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás.
 
Guimarães Rosa
Enviado por Germino da Terra em 11/10/2012
Código do texto: T3927503
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