Ítaca




Antes mesmo de conhecê-la, ele pressentia algo estranho, como se chegasse a um divisor de águas. Um vazio e uma angústia, o assaltavam como se o tempo escoasse rapidamente. Talvez até por isso, amou-a como se não houvesse amanhã. Ela, lamentavelmente, como se apenas fosse um dia nublado de ontem e nele desapareceu. Desde então, foi incapaz de refazer-se nos braços da vida. Em seu novo e amplo apartamento, num antigo prédio do centro da cidade, foi criando sua zona de conforto, seus oásis. Nada como deixar fluir seus pensamentos como um barco, entre rios de palavras e livros. Saía pouco. Escrevia. Lia muito: poemas, estórias plenas de feitos, filosofias e sínteses magníficas, mas nenhum afeto as curvava sinuosas em mistério. Em seus sonhos, pouco a pouco, apagavam-se também as requintadas vias para fêmeas raras, nem mesmo doces meninas ou bad girls e assim ergueu um mundo supostamente indolor. Sem se dar conta, acabou cultuando o espectro da sedução. Matou todos os sortilégios e fascínios perigosos. Exterminou o enigma, o segredo do que não pode ser dito. Protegido, na sua torre de simulação, comandava suas redes sem contatos, alimentando seus fantasmas sem afetos. Tornou-se um simulacro de si mesmo. Sem emissor nem receptor, instaurou a auto-sedução. Ele não sabia que um mundo, até mesmo dentro dele - sem o perigo de sucumbir à vertigem de uma sombra, não era mundo. Rompida a harmonia feita de tensões, tornou-se uma lira sem arco, onde o vento transpassava debilmente. Por fim, se perdeu em insanas conjecturas, pensando-se além do bem e do mal. Mergulhado nelas, já nem se importava com seu velho companheiro Sherlock, um belo cão weimaraner. Na última semana mal o alimentava. Sherlock, assustado, pressentia um perigo e deitado num canto, enroscava-se em si mesmo, olhando-o de soslaio. Em sua mímica ancestral, ele tentava dizer que ali, já não era mais um lugar seguro, mas seu dono tinha perdido tais referências. Os dotes de Sherlock adquiridos ao longo de séculos eram infrutíferos. Numa tarde, vendo que o dono esquecera a porta aberta, saiu por ela furtivamente. Perambulou pelo longo corredor mal iluminado, olhou para as escadas que davam para o térreo mas acabou voltando. Aninhou-se na porta ao lado, ressonando na interminável espera dos cães. Já tarde da noite, Sherlock ergueu a cabeça, suas orelhas se eriçaram com o barulho de passos. A vizinha chegava. Era uma jovem bailarina clássica que há alguns meses dançava em casas noturnas para sobreviver. Ao ver o cão tão maltratado, sentiu pena e levou-o para dentro de casa. Deu-lhe água e comida depois, abriu a porta para que ele voltasse para o dono, mas Sherlock permanecia ali. Com um ar de súplica, quase humano, ele olhava para ela e apontava para a porta entreaberta. Ela se aproximou e devagar empurrou a porta. Naquela sala esquecida, entre garrafas de  whiski vazias, cinzeiros abarrotados de cigarros, ele dormia no sofá. No deserto de suas impalpáveis dores e amores, tinha engolido todo o pó do desafeto. A jovem sentou-se num canto do sofá, suspendeu cuidadosamente sua cabeça e colocou-a em seu colo. O corpo dele estremeceu ao tato. Sentiu um vento fresco que batia em seu rosto como uma brisa de verão. Pensou estar sonhando, quando ouviu o pequeno ruído contínuo do ventilador no teto, trazendo-lhe de volta àquela  atmosfera opressiva. Ao abrir os olhos, se deparou com os dela, calmos como dois pequenos lagos. Confuso, perguntou seu nome e pausadamente ela o pronunciou: Ítaca. Exausto, acabou dormindo de novo. Acordou pela manhã muito cedo, olhou em volta e viu Sherlock que contente, abanava a cauda. Por algum motivo inexplicável ele sentia-se muito bem, como se estivesse livre daquele enlutamento, do sol negro da melancolia. De alguma forma inconsciente ele tinha revertido aquele processo. Lembrou vagamente daquele sonho, do encanto daqueles olhos, olhos pássaros que pareciam ter diluído o peso daquele mundo cindido e triste. Pensou em sensações que somente o mundo dos sonhos propiciam, tão ilógico e avesso a razão ! e no entanto, concluiu: "É o sonho da razão que produz monstros". Ele, mais do que ninguém, agora sabia disso. Lá fora, uma clara manhã prometia um dia ensolarado e sair daquele apartamento era só o que ele queria - Tomar o café da manhã na rua, dar uma grande volta com Sherlock. Pobre cão ! - pensou pegando a coleira. Sentia-se culpado por te-lo negligenciado tanto. Ao procurar a chave da porta, sob uma estante viu um livro aberto numa página. Era um poema. Com pressa, passou os olhos aleatoriamente, mas acabou se debruçando nas duas últimas estrofes :


"Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Humilde e verde. A arte é essa Ítaca
De um eterno verdor, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e que é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável."
                                                                  Jorge Luis Borges. 



Por uns segundos ficou ali, divagando... Borges, Heráclito - o velho pré-socrático ”taoista”, a Odisséia de Ulisses... tudo aquilo ele tinha lido, mas aquele nome em particular, ecoava como um déjà vu... Ítaca... quando sua atenção desviou-se para o cão que latia em frente a porta, ansioso pelo tão esperado passeio. “Et voilá ! “ – disse ele em voz alta -  "A chave está na porta,  já nem me lembrava". Ao destrancá-la para sair, surpreendeu-se ao ver que estava apenas fechada. Qualquer um poderia ter entrado. "Que noite!" - desabafou.  Afagou a cabeça do cão e disse: 
  - É, meu amiguinho, tem coisas que é melhor nem entender !
Para Sherlock, em seu mundinho desprovido de razão, tudo parecia elementar...elementar meu caro leitor.



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* foto - William Wegman. O modelo na foto é realmente uma estrela. Um weimaraner chamado Man Ray. Willian Wegman também pintor, ficou famoso por fotografar Man Ray em belas composições marcadas por uma plasticidade incrível vestindo roupas de gente em diferentes poses. Para quem quiser conhecer outras fotos é só digitar o nome do artista no Google.