Urucuia nunca mais

Lembro-me de quando ele chegou à cidade, vindo do Montes Claros para lecionar Biologia, assim que colocaram o segundo grau na escolinha. Era um sujeito de estatura mediana, magrinho e tinha uma cara que fazia a gente se lembrar de um gavião, mas, o que mais marcou naquela época foi a beleza de sua esposa, uma morena de olhos verdes, de uma verdura que parecia as águas do Urucuia no mês de setembro e, como era bem feitinha de corpo. Logo começou a despertar comentários na cidade o fato do homem gostar demais de sapos, ele vivia nos alagados da beira do rio capturando várias espécies desses bichos e, o que mais horrorizava a matutada, era o fato de o moço gostar também do sapo cururu e até chegar a pegá-lo com as próprias mãos enquanto louvava as qualidades da feia criatura. Dizia, por exemplo, que eles limpavam nossa cidade de lacrais, escorpiões e que, para a incredulidade da urucuianada, os sapos cururus comiam até cobras menores. Bom, o fato é que a maioria do povo sério da cidade começou a evitar maiores intimidades com o moço e eu, que sempre gostei dessa qualidade de gente que destoa do resto, comecei a trocar idéias com o sujeito e até costumávamos tomar umas Malte 90 na venda de Teodorão. Ele até que estava indo bem, até que tomado por sua curiosidade científica, me pediu que o levasse a um lundu, dança bastante vulgar para o povo importante do lugar, com exceção de mim mesmo, que nem sou tão importante, mas, que gostava de ver esse tipo de fandango feito pelo povinho miúdo e acolhedor da beira do rio e que, inclusive não eram bem vistos pelo pessoal do centro, que os acusavam de preguiçosos e bêbedos. Eu, sempre que minhas obrigações me permitiam, ia me misturar com esse povinho, que eram bastante acolhedores e nunca me fizeram desfeita quando eu estava em suas refestanças. Pois bem, tanto o professor pediu que eu o levasse ao tal lundu que, num mês de julho, quando a seca senta lugar no vale do Urucuia e começa a mudar os prumos dos dias num friozinho bom, quando o caburé senta no barueiro e distrança uma latumia que a gente não sabe se é canto, choro ou pio, foi nessa época que o levei para assistir ao lundu. Quando a viola começou a gemer, o tambor a tamborilar e a negrada a rodar no meio do terreiro, o homem meio que se encantou e foi bebendo e foi fumando fumo, jererê e tudo o mais lhe dessem então, ele se perdeu, tendo a lua cheia e eu por testemunho. No meio do fuá armado, todo mundo meio num transe, ele abriu os olhos pra uma mulata fornida que reinava na dança, a Ziza. Ela era mesmo bonita, nascida e criada aqui, crescida no meio desse povo que é daqui mesmo e que parece que apareceu junto com o lugar, cheia dos vícios e das virtudes desse povo, mulher de muitos namoros, experimentada na arte do dar e receber prazer, coisa que para eles é comum demais. Ele, então, se aproximou, puxou conversa, bebeu do copo dela e lá pelas altas madrugadas provou do tempero da mulata. Daí o homem mudou, foi se afastando lá do centro e se achegando pra beira do rio. A mulher, reservada, não fazia idéia das coisas no começo, mas, depois começou a notar que o homem não era mais o mesmo. Chegava sempre tarde em casa, cheirava a bebida e a cheiros que ela não conhecia, de repente criou o hábito de pescar todo fim de semana, andava com aquela gente queimada da beira do rio, fumava e não falava mais a mesma língua dela. Começou a viajar muito para o Montes Claros e numa dessas idas não voltou mais. O professor estava mesmo diferente, quase não nos falávamos mais, ele vivia enfurnado na beira do rio, com a negrada, comendo cana, peixe frito e cada vez mais enrolado com a Ziza. Passou a matar o serviço, o diretor, meu amigo, pediu que eu fosse atrás dele, conversasse, desse a ele conselhos e, lá fui eu. Procurei a casa da mãe da mulata, casinha simples, de adobe e teia cumbuca, bati palmas, gritei pela dona e, quando atendido, procurei pelo moço, a velha muito solícita, me mandou entrar. Lá dentro não reconheci o moço, sem camisa, descalço sentado na beira de um fogão de lenha, onde a brasa fumegava assando um pedaço de ubre, ele estava fumando um cigarro de jererê na companhia de uns moços, capoeiras, pescadores, gente dali mesmo, que viviam assim mesmo, ele, o moço, é que estava destoado daquele quadro. Homem formado no Ouro Preto, de categoria, vivendo como caboclo urucuiano, tomando canjibrina em copo de chifre, comendo bofe assado, coisa que não compreendi. O moço desconversou, não quis ideia de trabalho, que estava bem e que procurassem outro professor. Fiquei descabriado. Peguei o caminho de volta e entreguei o peixe que me passaram ao diretor. Eu me afastei do moço, segui minha vidinha. De vez em quando recebia notícias do homem. O amor que era farto no início, começou a minguar e os dois começaram a brigar muito, a Ziza começou a exigir conforto e as economias do moço iam se acabando, o desrespeito ia aumentando chegou ao ponto de traição, só o moço não via e nem acreditava. Quanto mais era desprezado, mais bebia e gostava. A Ziza chegou ao ponto de botá-lo para fora, como o moço escreveu para a parentalha e recebeu algum dinheiro, ela o aceitou de volta. Nesse desatino ia o moço levando a vida, definhava, estava irreconhecível, brigavam muito, o homem já não sabia o que fazer. Até que numa noite de pescaria ruim, no começo das águas, o moço chega a casa mais cedo e, quando entrou na porta da cozinha, escutou a balbúrdia vinda do quarto, pé ante pé chega à porta do aposento e vê Ziza nuazinha se refestelando com um rapazinho. O homem sai desatinado. A cabeça rodando, o peito aflito, a boca seca e a alma torturada. Caminha pela rua do gramado. Chuvisca. Ele parece acordar de um sonho ruim. De repente, vê um sapo cururu, firma a vista, o sapo tem a boca costurada. O moço para um pouco. Horrorizado pega o bicho. Corta a linha com um canivete. Quando termina, cai um papel de dentro da boca do animal, ele pega o papel e lê, em letras garranchadas de vermelho, o seu nome. Procurou-me, o dia ainda não tinha amanhecido, relatou-me o fato, pediu-me um dinheiro, iria pegar o ônibus para São Francisco. Urucuia, nunca mais...

Geraldo Rodrix
Enviado por Geraldo Rodrix em 14/11/2012
Reeditado em 09/08/2023
Código do texto: T3984824
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