A casa da montanha (parte II)

Oito dias. Dias de muito descanso, introspecção, descobertas, e Helena encontrava-se radiante, corada e mais ávida do que nunca por aventuras...

No dia seguinte após sua chegada (dormira mais de 15 horas naquele aconchego de lugar, logo após o almoço. Precisava daquilo!) começou a explorar aquela casa e seus arredores, com o pique de uma criança peralta. Acordou antes das seis horas, fez um café reforçado e sentou-se na sala com a janela já aberta (desde o dia seguinte); ficou observando a tal caixinha, sentindo-se culpada em querer abri-la, pois não fazia seu feitio mexer no que não lhe pertencia. Acabou caindo na tentação e qual não foi sua surpresa quando achou um molho com quatro chaves, sendo uma de carro. “Estranho, será que é do último inquilino que se instalou aqui? Mas por que não voltou para buscá-lo? Agora fica essa curiosidade... Não devia mexer no que não lhe diz respeito. Intromissora!”

Caminhava todos os dias por aquele lugar pitoresco e a cada dia se apaixonava mais por ali. Descobriu também, no dia seguinte de sua chegada, o atalho que começava próximo à porta da cozinha e terminava perto do rio. Romântico. Mas também escorregadio, lembrou-se, massageando o traseiro dolorido...

Passou a manhã fazendo uma pequena faxina, pois era sexta-feira, seu dia escolhido para limpeza. Vícios de solteira que só pode ajeitar a casa nos fins de semana. Estava com um short jeans e camiseta rosa. Prendeu os cabelos num rabo de cavalo e pôs-se a limpar os vidros, chão e tudo o mais que pudesse. O dia estava meio nublado. Não saía o sol havia dois dias. O tempo mudaria, provavelmente. Chuva? Talvez. Colocou um fone no ouvido e enquanto ouvia Rachmaninoff, precisamente História dos três amores, sua favorita, não pode ouvir um carro que chegara, nem as batidas firmes na porta. Como estava em êxtase ao som da música clássica, não viu a expressão avaliadora do homem que a observava. Ao virar-se, deu-se conta daquela presença forte no solar da porta e gritou. Gritou e pôs-se em posição de ataque, ridiculamente com a vassoura apontada para aquele que, antes sério, agora ria abertamente daquela cena singular. Helena, num misto de sensura e medo também avaliou aquele sorriso forte, de dentes perfeitos numa boca... Epa! Estava ficando sem foco na situação. Arrumou-se e perguntou:

- Quem é você e o que faz na minha casa, sem ter sido convidado a entrar? O que quer, senhor...

- Franco... Franco Guimarães. Estou aqui há cinco minutos batendo na porta e, como não fui atendido - e sabendo que a casa estava ocupada, pois vi seu carro parado - resolvi abri--la e ver se alguém corria perigo. Mas, pelo visto, quem corre sou eu – disse isso ameaçando rir de novo.

O clima ficou mais leve, mas mesmo assim, Helena insistiu:

- O que quer mesmo aqui...?

- Veja bem, viajei de São Paulo pra cá, sem parar. Bem... quase. Estou um caco. Não faço mal nem a uma mosca nesse estado. Se me deixar entrar, posso me explicar melhor...

Estava ficando louca! Helena viu naquele olhar o desespero de alguém cansado - como ela, há poucos dias, e confiou. ”Louca!...”

- Entre. – Saiu na frente arrumando o lugar que, em meio à arrumação, estava uma bagunça.

Conversaram longamente, enquanto tomavam um suco e Helena ficou sabendo que o homem era filho do velhinho da casa de fantoches. Agora conhecido de Helena, que foi algumas vezes no vilarejo e conversara animadamente com o homem – uma personalidade local: auditor empresarial aposentado e viúvo, que escolhera aquele lugar para se ocupar do que sempre quisera fazer: bonecos. Por incrível que pareça. Brinquedos para animar as crianças. Um sonho antigo, nunca levado a sério. Já que não tivera netos, pois o filho - solteiro convicto - nunca foi pai. E pelo jeito não seria jamais... Só queria trabalho, viagens e mulheres para se divertir (Helena não simpatizou com o tal filho.). E ele, de auditor virou um homem feliz na função a que se dedicava nos últimos anos. Pouco vendia, mas fazia a alegria de muitas crianças que por ali passavam. Dinheiro não era problema...

Franco era deliberadamente atraente. Sem beleza física aparente, mas inteligente, de voz firme, olhos de um verde magnífico, gentil e bem humorado, o que o tornava um charme. Aparentava ter um 48 anos mais ou menos; bem vividos, dadas as viagens que fizera pelo mundo afora, como ela pôde descobrir pelas conversas. E pareceu respeitoso, mediante a profissão de Helena e sua vida nada badalada e crua. Não lhe pareceu irônico que uma mulher de quarenta anos, recentemente alcançados, fosse caseira e não saísse em busca de aventuras amorosas como uma loba. Vivia praticamente dos congressos, cursos e... Trabalho. Ao contrário, pareceu encantado, com a postura daquela mulher moderna, mas distinta. “Coisa rara” – pensou ele. Afinal, disse ser o dono do molho de chaves, o qual lhe fazia muita falta, tendo em vista que já perdera as originais nas margens do rio, ali mesmo, há um mês, quando foi reapreciar o local e esqueceu-se de tirá-las do bolso da bermuda. Um distraído incurável. Um tombo (o que ela entendeu...). E Helena ficou ainda mais curiosa em como um homem culto e sensível daqueles podia ser assim tão... tão... Fugiram-lhe as palavras. Ele a olhava nos olhos e, vendo-lhe a timidez, olhou para o horizonte através da janela. Mudaram de assunto. Disse-lhe que vinha para aquele lugar desde adolescente, com um grupo de amigos que passavam as férias a casa do tio de um deles, do outro lado das montanhas. Apaixonou-se e fez o pai apaixonar-se por ali também, de tanto que falava do lugar. Até o dia em que o pai lhe comunicara a compra de um chalé, próximo às montanhas onde ele tão bem se sentia. Desde então, vinha sempre que podia. Só que agora ficava nas casas que as famílias alugavam para turistas, pois o pai se casara – pela terceira vez - e o chalé ficara pequeno para todos. Na verdade, estava prestes a comprar esta em que se encontravam. Questão de tempo e muita conversa com os herdeiros. Tinha muito tino para os negócios. Era-lhe a melhor e mais aconchegante, além de ser um pouco mais afastada do vilarejo. Espaço. Era tudo que queria. E Helena entendeu melhor aquele homem. Após algumas cervejinhas, petiscos e muita conversa despediram-se na promessa de se verem mais adiante, num outro dia.

E assim sucedeu.

Nos dias que se seguiram, conversaram, caminharam e se conheceram melhor, firmando uma agradável amizade. Aquele deck virou seu ponto de encontro e magia, pois dali a visão era tão gostosa que não viam a hora passar. E foi ali que se beijaram e fizeram amor pela primeira vez. Até se exaurirem. Até seus corpos doerem pelo desconforto. Helena e Franco descobriram-se amantes e amigos; cantores em uníssono numa mesma melodia: a da vida. Não havia uma noite em que não fizessem amor naquela cama enorme que se tornou pequena perante aquele encontro de dois corpos ávidos, apaixonados. E aquela mulher da pintura, que antes lhe causara tanta estranheza, parecia que sorria para ela, em harmonia com seu êxtase de vida. Foram vinte e um dias de total felicidade. Franco baixou a guarda de um homem sério e trabalhador aos extremos e passou as coordenadas do que deveria ser feito, por telefone. Não trabalhara que nem um louco a vida toda para se privar daqueles dias. Que aqueles jovens emprumadinhos do escritório fizessem a sua parte por ele. Não havia tantos problemas assim que não pudessem ser resolvidos. Foram treinados pra isso. E eram muito bons.

Antes de voltarem para suas vidas transloucadas de antes, ficou a promessa: reencontrarem-se ali. Naquele mesmo lugar, na primeira oportunidade - que seria dali a dois meses, no outono. Mas ele prometera lhe fazer uma visita no trabalho, antes disso, quando fosse ao Rio. Despediram-se e cada um tomou seu rumo.

A nova Helena que chegou ao Hospital deixou os colegas afoitos para saberem da fofoca, mas ela, discreta como sempre, nada lhes disse. Só notaram seu semblante preocupado, com os passar dos dias e, mesmo não falando nada, sabiam que a decepção (e provavelmente amorosa) era a causa daquilo. Hum... Aquelas férias...

Quase três meses se passaram e, apesar de não receber a esperada visita, Helena recebeu um único telefonema. Gentil, mas com poucas palavras. Ao telefone, Franco parecia preocupado e muito, muito ocupado. Mas mostrou-se interessado em reencontrá-la o mais rápido... Que pudesse. Demorou. E aquela mulher segura de si caiu em prantos por saudade, insegurança, na verdade. Não que precisasse de um homem para cuidar dela. Aliás, não dava a menor oportunidade para a aproximação dos colegas de trabalho. Precisava de Franco. Aqueles dias foram-lhe especiais a ponto de sentir-se mulher novamente – e não um objeto de prazer como tantos queriam. Foi feliz, enquanto durou...

Vários dias depois do telefonema. Saindo do hospital, após uma semana terrível em que acompanhou uma doce garotinha, até o final derradeiro, Helena encontrava-se muito triste e abatida. Parou frente à porta do carro e, antes que tocasse na maçaneta, uma mão forte e suave ao mesmo tempo cobriu a sua. Era ele! Podia sentir. E ao virar-se, viu aquele que se tornara seu homem, seu querido e gentil homem. Bem vestido e cheiroso - como sempre, com um molho de chaves na mão direita, sacudindo-a para o alto.

- Estas ficam com você. Não vou correr o risco de perder também esse molho. Comprei a casa da montanha. Para nós. Quero estar de novo e sempre que possível, naquele ninho de amor e paz. O que acha?

Helena não disse nada. Abraçou-lhe o pescoço e o beijou, num misto de prazer e alívio incontroláveis. Sabia muito bem o que queria. Foram até seu apartamento onde mataram a fome de si mesmos. Ficaram juntos até que ele precisou voltar para resolver os trâmites legais de tudo, antes de partirem para mais uns dias nas montanhas.

Foi lá que se casaram, três meses depois, numa cerimônia singela, no deck da casa. Foi para lá que foram sempre que seus serviços o permitiam (Ele mudou-se para o Rio, onde abriu uma filial do Escritório de Advocacia, junto ao sócio – que continuou na sede.). Ela, grávida de um menino aos quarenta e um anos de idade, continuou na labuta, porém, assistindo às crianças com outro olhar. Mais consciente do que a cercava, não com menos carinho, ou outro bom sentimento, porém, com mais força. Aquela que não possuía antes de conhecer a felicidade. A saudade do avô não mais lhe deixava angustiada. Ficaram as boas lembranças.

Agora, quando iam para a casa da montanha, passavam naquele vilarejo e, antes de virarem a curva para casa, acenavam para aquele velhinho simpático e feliz – que agora teria pra quem fazer os mais incríveis fantoches que sua mente pudesse criar. Netos... Finalmente! Agora valeria a pena viver mais um pouco. Entrou renovado e fechou a porta, já pensando no próximo boneco que criaria.

Luzia Avellar
Enviado por Luzia Avellar em 17/11/2012
Código do texto: T3990369
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