Lealdade (dezembro de 2012)

O Sonho é amigo do tempo... Guido e Aurora sabiam disso: Os dois jovens sabiam pensar o futuro sem medo, com calma e com força de vontade. Não importava o que, batendo à sua porta um dia, o amanhã pudesse trazer. O tempo, somado ao sonho, faz com que tudo aconteça. A paciência é amiga de todas as virtudes humanas.

O sonho que movia os dois a sonhar era o sonho do casamento. Já noivavam havia dois anos, e desde então se puseram a poupar tudo o que pudessem poupar: Nada de extravagâncias, era necessária muita atenção no comer e no vestir-se; além é claro de sair e divertir-se. Durante dois anos, podiam contar nos dedos as poucas vezes que haviam saído à noite.

Sonhavam os dois juntos com lealdade – o espírito do casamento – em que planejavam seus passos em conjunto para que lograssem alcançar os objetivos sem maiores contratempos. O primeiro passo, este já haviam dado: Foi a concepção das alianças de casamento, feitas especialmente para o casal, em ouro de dezoito quilates.

Em dois anos de noivado, Aurora fez e desfez a lista de convidados pelo menos uma centena de vezes: Parentes da noiva e do noivo, somados uns poucos amigos, alguns vizinhos, e muitos colegas de trabalho. Submetendo a lista ao olhar atento de Guido talvez pela quinquagésima vez, ganhou Aurora um beijo de surpresa na testa.

O casal teria de terminar a lista antes da segunda-feira (o dia seguinte), data escolhida para começarem a calcular o preço do bufê de casamento. Uma vez que o orçamento seja disponibilizado pelas várias das casas de festa da cidade – era comparar então se o que têm na poupança seria o bastante para pagar pelo banquete e pelos vinhos.

Pois bem, estavam juntos em uma noite de domingo no apartamento que dividiam os dois. Não gostavam de ligar a televisão, então com a exceção de algum ruído agradável que entrava pelos fundos através da janela da lavanderia, tudo era só silêncio. O mais puro silêncio. O ruído bom (ou a música agradável, que vinha de fora) dominou a atenção dos dois por um minuto.

É noite e o vizinho dedilha um chorinho nas cordas de violão. Enquanto isso – debruçados os dois sobre a mesa da cozinha – passam os olhos (em voz alta), na lista dos convidados do casamento. Guido discordava de Aurora acerca de um ou dois convidados: Gente da família de Aurora com quem ele não lidava muito bem. Ela sentia-se desconfortável e contra a parede.

Os convidados de quem não gostava Guido não eram especialmente vistos por Aurora – ela não tinha grande afinidade com eles – e por isso quase concordavam em relação ao (não) convite. Mas eram primos da noiva e, nas palavras de Aurora, “ficaria muito feio se não fossem convidados a vir para a cerimônia”. Não sentia haver outra opção senão convidá-los.

Tarde da noite, os dois ali na cozinha, e descobriram que tinham fome: Guido levantou-se da mesa e, passando por trás de Aurora, foi até a geladeira. Havia frango e arroz que sobraram do almoço. Colocando pedaços de frango e colheres de arroz em dois pratos, Guido enfiou tudo dentro do microondas e voltou a sentar-se à mesa.

Tinham fome, mas não era fome de amor. Tinham fome de cansaço, de pura exaustão física. No campo amoroso, por outro lado, tudo apontava para a saciedade. Amavam-se o suficiente para querer estar juntos todo o tempo, “Será que isso acabaria com o tempo?” – Pensou Guido – “Vamos nos enojar na medida em que o tempo pese no relacionamento?”

“É loucura ou é saudade?” Pensou Aurora e continuou, “Quando nos conhecemos, há cinco anos atrás, parece que nos amávamos mais.”. Para Aurora, havia algo que faltava no relacionamento embora, nem de longe, pudesse compartilhar essa ideia com Guido. Sabia que Guido era inteiramente dedicado ao relacionamento dos dois.

Alguém no conjunto de apartamentos dedilhava o chorinho no violão e isso embalava a conversa de poucas palavras de Guido e Aurora. Apreciavam o gosto musical do vizinho e sua performance vinha a calhar para um domingo que teria tudo para ser enfadonho. A música alegrava aos dois igualmente.

“Tom Jobim? Vila Lobos?” Perguntou a Aurora Guido. Francamente, não sabiam. Melhor voltar à lista dos convivas: “Pronto, assim tudo fechado, não vamos mexer em mais nada.” Concluiu Guido com a lista na mão. Decidiu, por último, deixar os dois convidados problemáticos da lista, primos de Aurora, e assim estava tudo terminado. Hora de satisfazer a fome.

O microondas disparou e o aroma de frango tomou conta da cozinha. Mais uma vez, Guido levantou-se e contornou Aurora que estava sentada na mesa para alcançar o aparelho de microondas. Calçando luvas de pano, levantou os dois pratos um a um, deixando sobre a pia da cozinha. Fez sinal para Aurora de que havia queimado um dedinho. Melhor deixar esfriar.

Quase meia-noite e os dois preparam-se para comer as sobras de um frango assado que sobrara do almoço. Depois disso, é arrumar a papelada para o dia seguinte, e então ir para a cama dormir uma boa noite de sonho. Serviram-se na cozinha, cada um com seu prato de arroz e frango, e comeram vorazmente. A fome dos dois era feroz.

Domingo, é noite, e mais uma etapa vencida. Depois de acertado com a casa de festas o bufê, restava ainda muita coisa para fazer. Na próxima etapa, era fechar com uma igreja para a cerimônia de casamento. De fato, teria que fazer isso em conjunto com a escolha do bufê, que têm de vir ao mesmo tempo, no mesmo dia, um evento seguido do outro.

Domingo, é noite, e o chorinho ecoa manso e leve dentro do apartamento. Difícil seria não permitir-se seduzir com a melodia do chorinho. Guido foi o primeiro a terminar de comer. Chupava e lambia os dedos meticulosamente. Seguindo seu exemplo, Aurora ia terminando sua refeição lambendo até a palma da mão.

“Seria saudade ou loucura?” Este foi o último pensamento de Aurora naquela noite, o inconfessável pensamento de Aurora que, saudosa (afinal, era saudade o que sentia) perguntava a si mesma se Guido a amava como no começo do relacionamento. Para ela, havia alguma dúvida, mas seria loucura passageira. Ela amava e confiava. Tudo estava bem.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 19/12/2012
Código do texto: T4044284
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