ESAÚ E JACÓ
 

 
E Jacó disse-lhe: vende-me o teu direito de primogenitura. (...) E assim, recebido o pão e o cozinhado de lentilhas (...) foi-se, dando-se pouco de ter vendido o seu direito de primogênito.” Gênesis, 25;31
 
 
Os filhos de Isaque foram Esaú e Jacó,
Mas numa teima danada a dupla vivia,
Pois que naqueles tempos um deles só,
Poderia herdar toda’ herança da família.
 
Era de Esaú, o mais velho, esse direito,
Do ventre da mãe foi primeiro a nascer.
Mas este era rude e muito pouco afeito,
Às tarefas que um líder precisa exercer.
 
Embora a Esaú o pai Isaque escolhesse,
Foi a Jacó a quem ele deu sua investidura,
Esaú a vendera por um prato de lentilha.
 
Dessa maneira se fez que Esaú perdesse,
Ao direito que ele tinha de primogenitura,
Foi Jacó que se tornou patriarca da família.
 
A emblemática história de Esaú e Jacó está na origem da relação conflituosa entre israelitas e palestinos (edomitas) e mais tarde instruiria a complicada relação entre judeus e cristãos.
Independente do fato de terem existido ou não os dois filhos brigões do patriarca Isaque, eles constituem tipos arquetípicos que podem ser recenseados por toda a história de Israel. 
Aliás, a saga do povo de Israel e mais tarde do povo judeu é um edifício magnificamente construído através de um monumento literário em que um livro complementa o anterior e dá alicerce para o seguinte. Daí se pode claramente perceber que a história de Isaque e Rebeca é uma continuação da saga de Abraão e Sara e a de Jacó e Esau dá seguimento a ela e proporciona material para o livro seguinte, que é história da fundação de Israel propriamente dita, protagonizada pela família formada por Jacó e seus doze filhos.
A força da Bíblia judaica está justamente nessa formidável relação de continuidade e utilização de mitos, costumes, lendas e fatos, costurados num todo lógico, que pode ser visto por dentro, com os olhos do espírito, como se ela fosse, efetivamente uma obra de realização divina, e ao mesmo tempo, por fora, como uma saga histórica, onde é a atuação do homem é o principal fator de construção de construção desse edifício.
Com efeito, ao coletar e registrar, de forma episódica, as tradições e mitos mais antigos da humanidade, apropriando-se deles como argumento e supedâneo para suas próprias reivindicações, os cronistas de Israel recuperaram para a memória da humanidade não só uma época perdida na bruma dos tempos e somente referida em mitos e contos de duvidosa reputação, mas também informações valiosas sobre a vida social desses antigos povos, contemporâneos das primeiras civilizações.
 
A história de Esaú e Jacó é um primor de manipulação de uma velha tradição ainda hoje praticada entre os povos do Oriente Médio, da África, e até a bem pouco tempo entre os povos do Oriente, marcadamente os japoneses e hindus, onde o patriarcado ainda conserva sua marca, atribuindo ao filho mais velho a herança das tradições da família.
Esaú nasceu primeiro, e por tradição deveria herdar a chefia do clã fundado por Abraão. Ele era o preferido de Isaque, que nesse particular seguia a tradição, mas Rebeca, a mãe, preferiu Jacó, o mais novo. Resquícios do poder matriarcal a fazer oposição ao poder patriarcal? Talvez. Mas, mais que isso, o que se revela nesse conto bíblico é uma clara disposição de se quebrar uma tradição, atribuindo ao mais novo o direito de reivindicar o comando do clã.
É isso que Israel sempre tentou justificar com as crônicas bíblicas. Chegado depois ao concerto dos povos ocupantes da terra de Canaã, seu direito seria sempre contestado se fosse fundamentado apenas na tradição da primogenitura. Daí a história de Esaú e Jacó começar com o conveniente oráculo que diz que o mais velho deveria se submeter ao mais novo. Aliás, essa manobra já havia sido utilizada antes, na narrativa referente ao nascimento de Ismael e Isaque, onde o primeiro também é preterido em função do segundo, com a justificativa de que não teria um sangue puro, pois era filho da escrava egípcia de sua legítima esposa, Sara.
A conotação racista desse conto está na clara distinção de aparência física entre os povos que sairiam desses dois irmãos (os israelitas e os edomitas). Ela aparece claramente na informação de que Esaú, o mais velho, era vermelho e peludo e Jacó, embora o texto bíblico não o refira, era diferente de seu irmão. Dessa forma, pela cor da pele (‘Admoni, o vermelho), Esaú tornou-se o edomita, pai do povo do mesmo nome que viria a se tornar o principal inimigo de Israel na luta pelo controle da terra de Canaã.
Outro claro elemento de distinção racista que se faz aqui é questão sócio-econômica, questão esta que já fora referida na metáfora de Abel e Cain. Novamente o modo de viver dos israelitas (representado por Jacó), que era o pastoreio, e o modo de viver dos cananeus(representado por Esaú), que era a caça e a agricultura) é mais uma vez invocado para mostrar a diferença entre Israel e seus belicosos vizinhos, os cananeus.
 
Jacó e Rebeca, com um estratagema roubam de Esaú o seu direito de primogenitura. Surge daí uma questão ética que sempre preocupou os comentadores da Bíblia. Jacó, o pai do povo escolhido por Deus para gerar a matriz sagrada entre os povos da terra seria então um velhaco fraudador? E sua mãe, Rebeca, matriarca consagrada, uma mulher sem escrúpulos que não se peja em enganar seu velho e moribundo marido somente para realizar o desejo de ver consagrado o seu preferido? E essa trama, digna de um Bórgia ou de um Plantagenet, foi engendrada por inspiração do próprio Deus?[1]
Para não complicar demais as coisas, fazendo com que o pai dos israelitas aparecesse como um traidor, um puxador de tapetes, violador de tradições, o cronista bíblico criou o imaginoso estratagema em que Esaú vende o direito de primogenitura por um prato de lentilhas. Então Jacó não fez trapaça para obter o direito de ser o primogênito da família israelita, mas sim, comprou-o dando a Esaú aquilo que Esaú queria: o seu modo de vida, a agricultura. 
Israel, portanto, não roubou esse direito, mas sim negociou, e essa característica de bom negociante do povo judeu é uma capacidade que o tem acompanhado por toda a sua história. Na Midrash, conjunto de comentários rabínicos à Bíblia, Jacó aparece como o patriarca perfeito, que conquistou por vontade divina, o direito de suceder ao pai e dar nascimento ao povo de Israel. E Esaú por oposição, pai do povo edomita, um histórico inimigo de Israel, aparece como o opositor feroz e selvagem, completamente oposto a tudo que Jacó representa.
,E para que Deus, que patrocinou o embuste cometido por Jacó e sua mãe contra o velho e moribundo Isaque, defraudando o rude Esaú, não aparecesse como uma divindade aética, que incentiva fraudes, o cronista bíblico faria Jacó pagar mais tarde por essa trapaça. Isso aconteceu quando Labão, seu sogro, o levaria a trabalhar quatorze anos como servo para ele. Fez isso através de um novo embuste, que consistiu em fazer com que ele, enganosamente, dormisse com a sua filha mais velha, a remelenta Lia, pensando que o fazia com a mais nova, a bela Raquel. Nesta outra história, Jacó, que na história anterior foi o embusteiro, se torna agora uma vítima da tradição (que ele violou), pois segundo Labão, não era costume na sua terra fazer o que Jacó fez, ou seja, passar o mais novo na frente da mais velha. Por isso, se ele queria Raquel, a filha mais nova, teria que levar de contrapeso, a mais velha.
 
“Que é isso que me quisestes fazer? Porventura não te servi eu por Raquel? Porque razão me enganastes?” Gênesis, 29;35.
 
Durante sete longos anos Jacó enamorado,
Para Labão trabalhou sem esmorecimento.
E por prêmio deveria receber o combinado:
A mulher que lhe dominava o pensamento.



Essa era Raquel, a pastora bonita e brejeira,
Por quem de amor ele de pronto se tomara,
Por essa prenda trabalharia uma vida inteira,  
Tão forte a paixão que no peito agasalhara.



Mas a tradição dava à mais velha a primazia.
E daí, sendo duas as filhas do pastor Labão,
Por consorte lhe foi entregue a bronca Lia.



Mais sete anos ele trabalhou de bom grado,
E mais trabalharia não fosse o tempo ilusão, 
Que rápido vai quando se está apaixonado

 
A história de Jacó e Raquel é uma bela história de amor. Camões que o diga, pois um dos seus mais belos sonetos nela se inspira para mostrar que o amor vence o tempo, os engodos e a fadigas. Mas não seria a história de Jacó com Raquel uma nova manipulação do cronista bíblico para justificar a rapinagem que Jacó fez com Esaú? É bem possível que sim, pois mesmo esta nova fraude seria depois compensada pelo nascimento qualificado dos filhos de Raquel, José e Benjamin (a quem Jacó amou mais) do que aos anteriores, filhos de Lia e das escravas de ambas.Trapaças que continuam depois com os meio-irmãos vendendo o filho amado de Jacó com Raquel para servir de escravo no Egito.
É assim com engodos e trapaças que se arma o nascimento do povo escolhido. Esse enredo, avesso a qualquer noção de ética moderna, onde a fraude é tão condenável quanto a rapinagem pura e simples, são, no entanto, justificadas como se elas fossem arquitetadas pelo próprio Deus.
  
A história de Esaú e Jacó é claramente um arquétipo que reflete o conflito existente em todas as famílias onde a tradição patriarcal se instalou. Essa tradição confere ao filho primogênito o direito de liderar o clã. Esse costume também informou e continua informando o direito de sucessão nos países que ainda mantém o regime monárquico. É evidentemente uma tradição que carrega em si mesma a semente do conflito. Pois quem garante que os filhos que nascem depois( e que não tem nenhuma culpa disso) se conformarão com esse fato? A História registra muitas guerras, oriundas dessa tradição. E na história das famílias ela também já deixou muitas marcas. Aliás, Machado de Assis escreveu um interessante conto sobre esse assunto.
Trapaças, embustes, racismo e ideologias á parte, o que fica dessa história é uma clara lição de sociologia e humanismo que precisa ser compreendida para que os conflitos, oriundos da intolerância e do racismo, ao invés de serem abolidos pela compreensão e pelo congraçamento entre os povos, se acentuem, mesmo depois de tantos milênios de história.  
 
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[1] Os Bórgias constituiram uma famíliade  nobres espanhóis e italianos que se tornou importante durante a época da Renascença. Sua atuação no cenário político é tido como uma das experiências mais corruptas e criminosas da História. Dois personagens dessa família, Alfonso e Rodrigo se tornaram Papas com os nomes de Calisto III e Alexandre VI. Outro Bórgia famoso foi Lucrécia, famosa pela sua vida dissoluta e criminosa. Os Plantagenets  é o sobrenome da família que reinou na Inglaterra entre 1154 e 1399. Seus nomes mais conhecidos são o de Henrique II, Ricardo, o Coração de Leão e João Sem Terra.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 04/01/2013
Reeditado em 11/01/2013
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