FARSA DO PINTOR FERIDO
 
 
 
Aquilo era o fim do mundo. Eram paredes, eram pincéis espalhados pelo chão, eram silêncios. E os silêncios eram nascidos da simples decisão de se ignorar tudo em volta. Uma decisão nascida do coração do pintor com os olhos cansados de ver tantas coisas.
Aquilo era o fim do mundo. Era um quarto quase vazio, encrustado atrevidamente no terceiro andar de um prédio antigo, insistentemente reivindicando sua necessidade de existir, no meio de uma metrópole que se aliviava em matar os passados.
O futuro não interessava ao pintor, este que observava tudo o que sentira de um mundo caótico, que esperava apenas uma pincelada correta para consertar as coisas. Mas o pintor sempre entendeu, com uma verdade independente de sua fé, que tudo é acidental, tudo  independe do senso de equilíbrio que até as feras mais sanguinárias enxergam.
Em seu pensamento, apenas a frase desconexas  de algum poeta exausto por também existir.   Nunca antes, o pintor deixara de terminara uma tela por falta de argumentos. Mas em sua mente, constavam apenas frases, não imagens.
E o quarto era a prisão apenas do corpo. A alma já não estava mais ali. Havia submergido em um oceano artificial, composto de plasma. Um quarto estado da matéria, tão inodoro que conseguia extirpar de suas narinas, o terrível cheiro do mundo. E mesmo que os restos de pinturas antigas, ainda  com suas tintas espatifadas nas paredes, mentissem ao espectador o caos, o pintor sabia que havia apenas o lugar onde a inexistência foi morar.
Lá fora tudo acontecia.  Mares se levantavam contra a terra, na terrível ira de Posseidon que corria com seus cavalos brancos em direção à casa dos homens. Hefestos fendia a terra para cuspir labaredas pelo mundo e forjar dos corpos mortos, as almas cromadas dos seres sem coração. E no céu,  Diana confundia aos apaixonados, guiando-os a um abismo oculto pela bruma.
Dentro do quarto, entretanto, o pintor vacilava, naquele silêncio irracional. Onde estaria a sua antiga forma? Onde estava a sua antiga ambição? O pintor se perguntava: Sou eu quem me vê? E suas pinturas não respondiam. E ele olhava para todo aquele amontoado de telas trabalhadas no limite da fúria. Via o retrato do cavaleiro com o tecido caído aos pés, a cópia de um Delacroix intimidador e a extrema ousadia de traços sem forma numa festa do interior, com corpo de baile rodopiante e quase sonoros sorrisos de ignorância.
O pintor então, decidiu que a matemática imperava. A matemática era a única verdade, aquela que equilibrava os versos doloridos escritos no quinto andar e a música feita de desencontros do telhado.
E por ser a matemática o indiscutível, é que olhou firmemente para a tela em branco a sua frente, disposto a por fim a toda aquela selvageria sem rumo que era viver. E as tintas naquele momento, se tornaram impossíveis elementos da escrita. Com suas ligações químicas excêntricas e reações inesperadas. Solvente e soluto se confundiam e no fim, não eram mais nada.
Lá embaixo, onde nada é óbvio, uma pequena explosão iniciou as chamas que descortinariam o futuro. Nada limpa mais ao mundo do que o fogo. Uma tradução em plasma e dor, da transformação da criação de Deus. E elas aos poucos subiam pelos fios, absolutamente sem pressa, como que esperando o momento de tudo se acabar.
Naquele que era o templo da criação, o pintor então lançou-se à tela. Cada pincelada, era uma estocada no peito e um dedo acusador na cara de cada ser humano que compunha o planeta.  As cores berravam e entoxicavam, imortalizavam e criavam criaturas próximas de Deus. Muitos anjos conseguiram se libertas das cores, e fugiram para o espaço, temerosos de uma verdade insuportável até mesmo para quem não tem culpa.
E os sons brotavam da escrita do pintor. Eram canhões e eram tambores. Eram prenúncios de guerra, de marchas para o abismo, de infernos feito de pura seda e trompas em brasa. E eram também o coro dos frisos de Klimt para Stoclet, onde Beethoven dizia aos homens: Sim, é necessário.
E a tela ficou maior que o mundo. O pintor, tornou-se  o homem diante de Deus. E de sua trágica posição de quem contempla as cores do inevitável, sentiu o vazio de ser apenas um, e sendo um, ser também um deus. Nada de lamentações. Nada de perguntas. O pintor apenas golpeava a tela. Criava o indevassável, o desesperado, a solução para as canções sem nota de repouso.
E aos poucos, além do mundo cravado nos olhos e na mente daquele que escrevia com cores, a fumaça abarcava o quarto, tornando lacrimejantes os olhos ausentes. E enquanto esta se avolumava, tentando desesperadamente avisar a todos do fim de uma arquitetura gasta pelo tempo, as chamas avançavam, limpando a tudo pelo caminho. Sobrariam apenas as vigas e aqueles que, como os homens fortes, não se curvariam ante os desígnios obscuros de um destino feito contra a liberdade.
E enfim, a última punhalada foi dada na tela, no exato momento em que o fogo irrompia pela porta. E o pintor era a apatia. Era a ausência de gravidade. Nem o calor terrível, nem o cheiro de fumaça, poderia fazê-lo se mover da frente de sua tela, aquela que dizia do insuportavelmente grandioso.
E assim, enquanto as chamas vagarosamente consumiam seu corpo, ele apenas pensava: “não quero mais o tempo, nem quero mais a verdade”. E assim foi. Com todas as palavras que um homem é capaz, tornou-se o elemento mais primordial da carne, até ser futuramente, espalhado pelo vento que de tudo sabe, por um mundo gigantesco e por campos de flores que ainda existiam.
As chamas cessaram-se , quando a água vinda mecanicamente inundou o quarto. Sobrou a tela, intacta ante a fúria do fogo, e falando de maneira terrível e celeste de tudo aquilo que compõem os termos de uma equação.
No centro da metrópole cinzenta, onde havia a antiga casa das idéias,  Deus não permitiu que nenhuma outra arquitetura rivalizasse com a construção do nada. E o nada, era a grande verdade. Não existir, era o único alívio pra quem já nasceu condenado.
O vento encheu as ruínas, saiu, entrou por uma caixa e de lá, deu as costas para o mundo.
 
EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 15/01/2013
Código do texto: T4086405
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