Conto I

Tem certos dias que tudo parece desconexo e o tempo das coisas derredor se mostra diferente a cada momento e os acontecimentos nos convencem de que há um destino a nossa espera, mas, o fluir do dia te leva a um bar, e lá, depois de algumas doses, você resolve todos os problemas, sejam eles quais forem.

Pois bem, o meu dia não foi diferente e já eram quase duas da madrugada quando entrei em um bar, (depois de perambular por horas). Havia na entrada um luminoso vermelho que se ascendia e se apagava freneticamente, indiferente ao ritmo das pessoas que entravam ou saiam. Olhei para os sapatos, bati os contra a calçada, afim de livrá-los do pó acumulado durante a caminhada, passei as mãos pelos cabelos e entrei.

No interior do recinto, a pouca iluminação dava sensação de que o tempo era duas vezes mais lento que o normal. Poucas pessoas estavam presentes e como que por um acordo, estavam distantes umas das outras, cada qual parecia estar num planeta diferente, sem par, isoladas no universo de seus problemas.

Dirigi-me ao balcão, algumas cadeiras estavam enfileiradas em toda extensão do móvel, nenhuma delas me agradou.Então mesmo de pé solicitei uma vodka com dois cubos de gelo, tomei o copo na mão direita e me virei para ver o ambiente de outro ângulo, logo a minha frente, percebi por detrás de uma nuvem de fumaça uma jovem, fumando lentamente.

Sua aparência despertava curiosidade, e foi justamente o que me fez fixar o olhar por mais tempo que o necessário, como se fosse possível desvendar ali, naquele momento, todo mistério que a envolvia.

Não vencida a curiosidade, tomei um trago (desceu queimando) fui na direção da obscura criatura. Aproximei-me suavemente, para não perturbar a atmosfera que a circundava e sem nada dizer, me sentei, olhei-a de frente, enquanto saboreava o último trago do cigarro ela me olhou. Como se olha para algo que não se pode entender ou explicar. A maquiagem já desbotada ou borrada em algumas partes do rosto denunciava seu estado de lucidez perturbada, apertou a ponta do cigarro contra o fundo do cinzeiro e me disse, agora desviando o olhar. A voz era triste, porém firme: “você provavelmente tem algo de maior importância a fazer, então me deixe só!”

O curioso é que me faltou as palavras e não tive reação alguma, só depois de algum tempo, tentei dizer qualquer coisa, mas, me pareceu que falava sozinho ou que não era ouvido, então desisti. Passaram-se alguns minutos, postado como estava, não havia gelo no copo e me levantar seria deselegante, até mesmo porque o silêncio como que por força maior criou entre nós um vínculo inexplicável, como se nos entendêssemos sem que fosse preciso dizer uma só palavra. Era nossa solidão que proporcionava aquele momento único.

Sem qualquer som que pudesse ser considerado como uma comunicação, nos levantamos para uma dança insólita, fantástica e explosiva. Os movimentos sincronizados uniam nossos corpos, podia sentir a sua respiração enquanto a mão deslizava sobre a camisa branca e a cabeça jogada sobre meu ombro, transferia para eu a responsabilidade de guiá-la em meu próprio eixo, como se fossemos um só corpo, um todo formado de massas estranhas e agregadas por força de atração.

A mão inquieta me acha os cabelos, escorre pelo rosto até tocar meus lábios, depois, sede lugar a um beijo. O qual provocou uma erupção de hormônios, vinda das entranhas corpóreas para saudar o majestoso encontro.

A dança transcendental a qual estávamos sucumbidos, era de uma lentidão colossal. Sentia apenas nossas partes se tocarem e se inflarem e o jogo sensual de nossos desejos deliberavam os movimentos, alheios ao tempo e incompreensível para os presentes. Em nossos pensamentos nada parecia existir além do espaço que ocupávamos e o temor que o beijo se extinguisse.

No momento seguinte (se é que posso descrevê-lo com fidelidade), começamos a nos livrar das vestes, uma a uma, foraá caindo e revelando nossa intenção.

Nada poderia nos deter, seria vã qualquer tentativa de sabotagem, estávamos inatingíveis, escorregadios e salgados. O mundo parecia girar a nossa em nossa volta e parar seria impossível até mesmo porque, essa possibilidade não chegou a ser pensada, aliás, nada ali foi pensado, só nos deixamos guiar pelos nossos desejos mais insanos e estávamos em plena viagem pelo interior de nossos corpos em busca dos prazeres mais elevados, o que na ocasião poderia ser divino.

O espaço foi limitado por uma mesa, então nos dobramos sobre ela. Seria aquele o portal de passagem para um universo desconhecido, para o qual fui sugado sem oferecer resistência. Tive naquele momento a mais nobre sensação de liberdade e superioridade, era uma convulsão prazerosa e sustentável, algo metafísico, indescritível, pois era um misto de puro êxtase e realização, dissolvido em gemidos e suor.

O que legitimava a ação pública sem pudores ou receios era o desejo incontrolável do gozo, iluminado pelo fogo vulcânico de nossos poros.

O ruído da mesa acompanhava fielmente os movimentos, indiferente, ela, a mesa, parecia entender e suportar o estranho ritual.

Os nossos corpos, já próximos a exaustão, conseguiram nos proporcionar um desfecho carnavalesco, adornado alegoricamente por um clímax multicolorido, digno de aplausos e um show pirotécnico.

Assim como estávamos, um sobre o outro, sobre a mesa, permanecemos, sentíamos apenas a respiração ofegante o desacelerar do ritmo cardíaco provocando uma queda brusca da temperatura corpórea.

Era aquele o fim desejado, só restava me desgrudar daquele corpo. O que de fato não foi trabalho de pouca monta.

Coloquei-me na posição vertical, procurei a saída, girando apenas a cabeça, depois me curvei procurando por algo que pudesse vestir. Vesti apenas a calça. Camisa jogada no ombro, sapatos na mão esquerda e o copo de vodka na outra, tomei um trago, soltei o copo em uma das mesas e atravessei o longo corredor rumo à saída.

Lá fora o sol já deixava o horizonte vermelho, sinal de que o dia se aproximava, então segui pela rua quase deserta cantarolando:

“Tem certos dias em que penso em minha gente

e sinto assim todo meu peito se apertar

Porque parece que acontece de repente

...”

(canção de Vinicius de Moraes, Garoto e Chico Buarque)

Sidi Leite
Enviado por Sidi Leite em 11/03/2007
Reeditado em 11/03/2007
Código do texto: T409346
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