PIANO

Não sabia nadar, mas também não sabia muitas outras coisas, não sabia tocar qualquer instrumento musical. Piano, por exemplo. Tinha dificuldade em preencher um boletim com os seus dados pessoais. Melhor, deixaria o boletim em branco. Mas atirou-se ao mar. E, mais tarde, tocou piano. E, mais tarde ainda, reagiu a “James” como possibilidade de ser “James”. Entretanto, tudo começou na praia e era Outono e a neblina escondia o mundo. Vestido de preto, rigorosamente de preto, calças, casaco, camisa, gravata, sapatos, meias, rigorosamente de preto. Distinto, elegante, esguio, talvez belo. Não sabia nadar e mergulhou ao encontro da ondulação. Por momentos, sentiu o risco de entrar na morte, é sempre possível entrar na morte sem glória. Mesmo vestido, o frio atingiu-o como uma vertigem. Soube escapar da voragem sem explicação e adormeceu estendido no areal. Soube escapar, ou escapou, inevitavelmente. Acordou sob um tecto branco, o tecto branco de uma casa branca, paredes imaculadas nos limites de um espaço ocupado por uma poltrona branca. E um piano. E o seu corpo vestido de negro, o corpo deitado. Pousado na superfície ontológica de um pano branco. Nada mais. Ninguém mais. O som do mar próximo, a penumbra projectando talvez sombras pelos cantos da sala. Assim. Agora era a música que saía das teclas sobre pressão dos dedos ainda húmidos, frios. A noite se tornou constante e envolvente. Lembrou-se de alguns nomes possíveis, “James” foi o que lhe provocou um riso incontido, uma melancolia áspera. Sempre a mesma brancura, cada vez mais intermitente. Não saber tocar piano era apenas esquecimento. Como não saber nadar, como não saber muitas outras coisas. Por exemplo, acordar numa sala com um piano depois de adormecer entontecido na solidão de um areal anónimo. O brilho do mar ao fundo, o fundo sem regresso. Desligaram as máquinas, uma forma subtil de anunciar a morte do paciente depois de algumas horas em coma. James morreu!

In “Contos em 8 Milímetros”