A noite libertina

Aquela chuva na janela não parava. Nunca parava. Verão sem nexo, e a chuva correndo solta numa disputa de gotas que atingem o vão da janela primeiro. Não sentia o tempo passar como todos sentiam, não admirava o que era belo na vida sem que alguém me dissesse. Não era grande admirador de bebidas extravagantes, mas era uma ocasião digna de um belo porre.

Comecemos da origem do acaso. Bom, a noite era fria como não tinha de ser naquela época do ano, como a situação presente, mas não era uma noite chuvosa. Todos os nossos amigos estavam à sua espera, e entusiasmo era o que não faltava naquela noite. Estávamos sentados no sofá até que chega deslumbrante com seu vestido negro, o qual enfatizava a pela alva como a lua. Cheguei a fazer planos para mais tarde dentro da minha cabeça, os quais ela só saberia na hora certa. E como era de se esperar mais uma vez, seu primeiro olhar foi direcionado a mim, como quem dissesse –me admire sem parar – e é claro eu obedecia. Por certo que conhecia cada centímetro do corpo dela, mas cada detalhe novo era como um vinho do porto guardado há mais de cem anos aberto numa ocasião especial exclusivamente para mim.

Seu segundo olhar foi para Marcel, seu melhor amigo. Óbvio que não liguei muito, uma vez que os dois eram amigos há tanto tempo, e o mesmo não era provido de características muito másculas, eu diria até que tinha atitudes dubitáveis. Havia mais homens na casa, e muitas moças também, mas já tinha a minha própria. Perdão, mas com tanta empolgação esqueci-me de apresentar-lhes a minha amada. Seu nome é Eugène, essa que está deitada no chão agora, ao lado de Marcel. Por favor não façam muito barulho, eles estão dormindo. Aposto que estão se perguntando se tenho ciúmes dela com Marcel assim desse jeito, mas torno a repetir que não, ainda mais agora que dormem tão profundamente....

Voltemos então à cena da outra noite. Eugène estava com um batom vermelho, e como eu adorava aquela cor. Seu cabelo estava preso para o alto, usava as sandálias prateadas e um colar de pérolas que havia comprado pra ela especialmente para aquela noite. Eugéne tinha um defeito que eu adorava, era ostensiva, gostava de causar inveja nos outros. E eu, como sempre, cedia aos seus caprichos dando–lhe roupas e jóias sempre que pedia. E era terrivelmente linda.

Ficamos por um momento na casa e depois partimos para outro lugar mais adequado à situação. Era o aniversário de Eugène, completaria naquela noite vinte e cinco primaveras. Não éramos casados, e eu pretendia me casar com ela o mais breve possível, e assim escolheria uma ocasião perfeita para propô-la em casamento. Partimos para um bistrô próximo ao Sena. Como ela adorava aquele lugar. Era um ambiente agradável, mas ironicamente falando, suas mais doces sobremesas eras salgadas de preço.Mas dinheiro nunca foi problema para mim. Aliás nesse ponto eu era bem perdulário. Doidivanas ela me chamava, mas pra falar a verdade nunca entendi essa palavra, até que um dia pesquisei sobre e descobri que ela me chamava disto, mas hipocritamente era o defeito que ela mais gostava em mim.

Pedimos vinho. Vinho tinto, um original Bordeaux. Era impressionante como casava a cor do batom de Eugène e o vinho. Não podia imaginar algo que combinasse melhor até o presente momento. Foi uma noite inesquecível, rimos e contamos velhas histórias. Voltamos para casa e por fim não dormimos, conforme meus planos. Eu despi a noite, bebi o vinho tinto dos seus lábios e amei a lua.

Eugène havia pedido para levar a garrafa do vinho da noite anterior. Bebemos e deixamos a garrafa sobre o criado mudo ao lado da cama, para o caso de sentirmos a mesma sede de poucos instantes atrás. Eugène adormeceu em meio aos meus afagos, mas eu não conseguia parar de venerar minha bela. Devo confessar que meu amor por ela era um tanto exagerado como é de se notar. Não sei se ela usava de encantamento, o que sei é que seu amor era veneno que matava aos poucos. Sedução é uma arma que poucos sabem utilizar, mas menos ainda são os que tem o domínio sobre esse artifício, mesmo dormindo, e Eugène era uma dessas. E por fim me rendi, e nunca almejara tanto por continuar em sua companhia mesmo em sonhos.

Despertei com o grito escandaloso do telefone. Eu atendi. Eugène não perguntou quem era, mas eu preocupado em dar satisfações expliquei que se tratava de assuntos do trabalho, e que fui convocado para substituir um companheiro que adoecera, e teria que viajar o mais breve possível e resolver os assuntos da empresa. Disse a ela que voltaria em poucos dias, não sabia ao certo ainda. E Parti.

A viagem serviu para refletir sobre muitas coisas que eu não havia decidido. Já estava estabilizado na vida, tinha meus bens, a minha amada, agora só me faltava constituir uma família. A certeza veio quando passei em frente à joalheria e avistei a mais perfeita aliança e sem pensar comprei. É isso, vou me casar, foi o que pensei. Não via a hora de retornar e por fim selar de vez nosso compromisso.

Morara há tantos anos em Paris, mas nunca via com tanta beleza aquela cidade. Antes era tudo tão simples. É impressionante como o amor nos cega para umas coisas, e para outras um detalhe se torna tão precioso. Passei numa adega próxima ao metrô, e comprei o vinho que Eugène tanto gostava. Imaginei que tanto tempo fora de casa o vinho já tivesse acabado.

Eugène adorava surpresas. Boas, é claro. Então resolvi não avisar e simplesmente aparecer. Peguei um táxi e me pus a caminho de casa.Na janela do táxi já via os resquícios de uma possível chuva. Admirei minha casa por fora. Mon Dieu, quanto tempo habitava aquele espaço e nunca reparei tantos detalhes. A chuva começara, como eu previra, e eu tive dificuldade em abrir a porta porque carregava em uma mão a garrafa do vinho, e na outra flores, não esquecendo é claro da aliança aprisionada numa caixinha de veludo no bolso interno do meu paletot. Com passos largos cheguei à porta do quarto, que por descuido Eugène havia deixado aberta. Pobre dela. Fitei-a no seu mais longo deleite deslumbre dos sonhos. Acompanhada. Cansada pobrezinha, provavelmente foi uma noite muito cansativa pra ela. Doara tanto amor à outro que provavelmente não restara sequer um isso para mim. Marcel foi quem recebeu seu amor. E beberam do vinho, e a lua que me prometeu amor eterno, adormeceu aos afagos de outro.

Colocara minha máscara da tragédia. E a raiva pulsava nas veias dos olhos. Minha respiração ofegante e a forma como apertava a garrafa de vinho caracterizavam um possível incidente. Eugène movimentou levemente seu braço em direção a Marcel e cobriu seu peito com posse. Movimento infeliz aquele, que me fez trocar as flores de uma mão por um revólver que eu abrigava em uma gaveta. E o mesmo ódio que fez meus olhos vermelhos chorarem, atirou em uma parede a garrafa do vinho. Com o barulho ambos acordaram. Incrível que mesmo com toda aquela situação Eugène ainda tinha controle sobre sua mais poderosa arma, a sedução. O vinho no chão vinha na minha direção. Quando se deram conta da arma um minha mão levantaram-se, e eu mirei. Mirei para mim mesmo. Quando notei um ar de alívio em Eugène não me restou mais dúvidas. Resolvi presentear cada um com uma bala. Eugène gostou tanto que guardou seu presente no coração, e pra quem quisesse ver o expôs como uma medalha. Marcel por sua vez vai guardar para sempre na sua memória. E eu ali em pé em frente à janela vi os dois caírem juntos no chão, e voltaram a dormir. Minha atenção voltou então para a chuva. Havia me enganado outra vez, porque no chão presenciei o casamento do vinho e do sangue, e com certeza não havia combinação mais perfeita que aquela.