Um velho triste

Dizem que quem não ouve cuidado, ouve coitado. Dizem que o tempo perdido não se recupera. São frases populares portadoras de uma verdade indiscutível que se aplica muito bem ao personagem da história que segue. História que foi contada a uma pessoa qualquer em um asilo qualquer de uma cidade qualquer. Não interessa, leitor, quem ouve a história. Muito menos a localidade onde seus fatos ocorreram. Atenta-te ao que te é narrado e depois tira tuas próprias conclusões. Porém, se não tiveres paciência para histórias mais reflexivas e menos mercadológicas e pré-moldadas, abandonas agora a leitura. Neste ponto, o narrador muda de foco e deixa o personagem falar.

Oitenta anos! Oitenta anos! Oitenta anos! Oitenta anos e nada! Uma vida (que vida?) que passou e apenas passou sem que eu a acompanhasse. Tens paciência, jovem, para escutar uma história enfadonha de um solitário velho triste e abandonado?

Já vi que és das raras almas que emanam curiosidade e bondade através do olhar. Muito obrigado e espero que tires proveito de algo. Se é que se pode aproveitar algo de quem tanto tempo teve e pouco fez para vivê-lo.

Família? Pergunta-me logo sobre família? Bem, lógico que a tive. Fiquei órfão de pai cedo, muito cedo mesmo, ainda no amanhecer da infância. Os irmãos e irmãs eram muitos e minha mãe foi uma batalhadora. Mas infelizmente eu não soube dar-lhes o devido valor no devido tempo. A partir da adolescência o ego passou a falar mais alto e os desejos de ter e ser o que não podia passaram dominar o que eu chamava de consciência. O tempo levou um a um dos que eu amava de verdade, mas que o egocentrismo cegava-me para a realidade. Fiquei como hoje estou e nem ao menos constituí minha própria família.

Reparaste que não choro? Não! Não sou um iceberg de emoções. A verdade é que nos vales rugosos de minha face já correram rios de lágrimas e hoje não há mais fontes que possam inundá-los novamente.

Ah! Amigos! Também me deixei enganar pelas aparências. Mostrando ser algo que não era, não pude escapar das falsas amizades. Amizades estas que só estavam comigo nos momentos de festas, farras, bebidas, dinheiro e todas as pseudo-alegrias de uma vida ludibriosamente feliz. Nas horas em que vinham as dificuldades e no momento em que “a casa caiu”, vi-me completamente sem norte. Não pude recorrer àqueles que eram de fato amigos, nem aos familiares porque os poucos que a morte não levou já estavam fartos de me darem as mãos quando eu quase nunca andei por meus próprios pés. Não, meu jovem, isso não é orgulho fútil. Foi a voz longínqua da consciência que se me fez ouvir tardiamente. Percebi que não tinha condições morais de solicitar ajuda a quem quer que fosse. Foi nesse momento que reconheci a necessidade de arcar com as consequências da minha vida inconsequente.

Trabalho? Profissão? Estudo? No tempo certo não tive tempo de me dedicar a coisas tão... tão... tão... chatas. Eu tinha que viver a vida! Estudei apenas para cumprir tabela e não fui à universidade. Quanto ao trabalho e à profissão eu tinha apenas ideias que nunca deixaram de ser ideias. Achava sempre injusto o alto salário dos outros, sem ver que eu não fazia por onde merecê-los. Quando podia, não queria trabalhar. Depois, quando precisava, não tinha condições e hoje estou aqui, dependendo da boa vontade de estranhos. Queria ter os bônus sem arcar com os ônus.

Se tive amores? Se tive não sei dizer. Talvez tenha amado. Talvez tenha sido amado. Preocupei-me demais com os prazeres da carne e esqueci as necessidades do espírito. Estava preocupado só com diversão. Veja no que resultou. Tudo não passava de uma fuga da realidade que eu sabia existir, mas que não queria enxergar. Tarde demais! Tarde demais! Tarde demais! A tudo que se me sucedeu, seguiu-se a depressão e o vício do álcool. Fraco, não resisti às tentações e me entreguei de corpo, alma e coração a eles. Selei, portanto, meu destino.

Passei a viver nas ruas, a mendigar comida, a esmolar para beber, a andar maltrapilho, malcheiroso. Quanta ironia, meu Deus! Quanta ironia! Antes tão vaidoso, tão dono de si, tão independente... Agora um lixo humano ambulante.

Deus? Questiona-me agora sobre Deus? Provavelmente nunca tenha querido crê-lo de verdade. No entanto, nunca tive coragem de negá-lo. Não se nega o inegável, não é mesmo?

Um dia, porém, não pude resistir a tamanha autodestruição e acabei desmaiando. Aconteceu que uma alma caridosa resolveu socorrer-me e trouxe-me para este lugar. Não sei quem foi, pois quando acordei já estava cercado de cuidados. Certamente isso é a prova de que Deus não nos abandona, mesmo quando o deixamos de lado.

Claro que me arrependo de muitas coisas que fiz e de tantas outras que deixei de fazer. Todavia, meu caro, a duras penas aprendi que é necessário pagar por tudo o que se faz e por tudo o que se deixa de fazer. A vida sempre cobra sua fatura e eu sei que a minha está altíssima e como diz certa frase “Quem deve, paga! Quem merece, recebe!” O arrependimento não constitui certificado de quitação, mas sim o reconhecimento de uma nota promissória assinada no momento em que recebemos o sopro da vida.

Agora, meu jovem, deixa-me ficar com minha dívida perante a existência. Não posso transferi-la a ninguém. Agora, meu jovem, deixa-te ir seguir teu caminho. Agradeço por ter me escutado (será que não falei sozinho?)! Espero, sinceramente, que possas ter aprendido algo esta história de um velho triste, solitário e abandonado. Não sejas feito eu, que tinha espelhos bem na minha frente, ao alcance das mãos, dos olhos e dos ouvidos e que não soube enxergar os reflexos nos quais de fato deveria ter me espelhado.

Adeus!

Cícero Carlos Lopes – 23-01-2013

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 23/01/2013
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