A tarde invernosa estava sombria, cinzenta em vários tons. Ela, acometida por uma depressão sazonal, passava por uma quase transmutação e já não estava ali. Se não fossem as useiras autocríticas e vezeiros auto-julgamentos, seria uma rica experiência. Um pouquinho de calor e uma voz para ouvir, era só o que lhe traria de volta.
Talvez na Primavera, pensou e quase chorou.


Fechou os olhos; esticou a boina de feltro de cor bonina até o nariz e, em posição fetal fez com que o edredom amoldasse aos seus contornos. Dormiu sobre o tapete felpudo no assoalho e já era outra manhã.  Esticou-se deslizando com o edredom que a seguia, à moda de Gugu, o filhote de Popeye, colocou o Cd de Kitaro e quase dormia de novo.

Levantou-se e, com o punho da mão enluvada, limpou o quadrado vidro da janela embaçada. Um nariz estava perto do seu e uma pequena mão batia na madeira toc toc. Suspendeu a parte inferior e a travou. Reconheceu o garoto que mora por ali, de cor jambo, olhos redondos e vivos quase dourados, da cor de mel brilhante na garrafa que a seguia, ansiosos e tristes, nos raros dias que saía de casa. Abriu a porta.

-posso entrar, dona?
-claro, entre e sente; vou fazer um chocolate quente, aceita um?
-quero sim, sou doido por chocolate! Mole, de barra, no copo, como estiver. Minha madrasta, que é da cor de chocolate, diz que meus olhos são iguais à cor de sua pele, infelizmente, ela diz.
-não passa um só dia que a gente não brigue... Também...
-também o quê?
-essas coisas que parece que os adultos também não entendem...
-como assim?
-um é de um jeito e outro é de outro, e tem que entender, quer dizer, algumas, outras não pode.
- quais as outras?
-dizer uma coisa ruim machuca mais que uma surra...

Ela inspirou e expirou forte depois daquele jorrar de confissões, próprio de uma criança tímida que de um momento para outro, abre a torneira das palavras e deixa fluir o que sente. Sua intuição jornadeira dizia: vocês ainda serão muito importantes um para o outro.

- Florlinda...
- O que? Que nome a senhora disse? Florinda é seu nome?
- Não... Pensei  alto. Minha mãe, quando nasci falou: minha flor linda e este é o meu nome
- como a senhora...

Um silêncio dourado invadiu a sala e não havia sol. Uma alegria morna transformou o ambiente, e fazia frio. Árvores e nuvens dançavam, apesar de, do lado de fora só a neve existisse.
Ele se despedia apressado:
-obrigado pelo chocolate, pela música e por conversar comigo. Posso voltar?
- quando quiser, Arani*
Nos intervalos dos dias ela o esperava para responder perguntas e contar coisas. Enquanto isso, as estações mudavam e cada uma trazia uma surpresa
- Posso entrar?
...
 


* da cor dourada em Guarani
(Fragmento do livro Diálogos, em meu pensamento)