O Sexto Anel
 

     Os amantes da noite, como vagabundos, prostitutas e boêmios como na época fora, não vem o sono como necessidade vital. Algumas horas do dia são suficientes para o relaxamento e quando chega a noite... ah! A noite aguça os pensamentos, exaltam-se os sentimentos, as emoções ficam a flor da pele e a volúpia toma conta dos mais ávidos amantes. O inimaginável torna-se visível para os adeptos do ópio ou quaisquer outros ácidos, bem como às mais incomuns figuras inebriadas pelas fachadas de neons dos bordeis e completamente imaginável e até palpável em muitos casos para uns poucos indivíduos mais sensíveis frente ao improvável, ao inexplicável... como sonhar acordado. O sonho não é algo comum para quem permanece parte do dia dormindo e a noite toda semiacordado, talvez um whisky a mais fizesse da vida um delírio, enfim.

     Nunca havia estado tão cansado, como naquela ensolarada manhã de outono. O mal-estar resultante de uma noite agitada pela mistura quase sádica do álcool, os ácidos e o calor de um corpo feminino, verdadeiramente poderia ser a causa do latejar das têmporas que tanto incomodava naquele instante... mal podia andar. Eram 10:30 e o sol escaldava as mentes e os corações dos amantes do calor, embora a brisa fria da estação insistisse em minimizar a sensação. Até os pequenos pardais repousavam à sombra, estafados e as folhas dos ipês davam lugar às flores multicoloridas... “interessante como essas árvores tão incomuns florescem fora da primavera”, pensava debruçado sobre as mãos, na janela do quarto. Adormecera sobre a janela, observando o trabalho lento do vento esculpindo formas variadas nas nuvens. E o tempo não dorme, nem devaneia.

     “As nuvens formavam rostos belos, novos e velhos, esculpidos pelos ventos e eu os via flutuarem, navegando o límpido azul do céu, mas via também abutres, planando em seu voo majestoso, salpicando de manchas pretas a beleza da imensidão celeste. A suavidade daquele belo e único momento nunca poderia ser abalada. Havia uma melodia doce e suave que invadiu o ambiente vasto e infinito... eu permanecia estático, embriagado pelo devaneio. As belezas que via, não sei dizer se realmente existiam ou se eram apenas uma variação da imaginação como aquelas que as crianças têm, seriam efêmeras. Subitamente mudariam. E houve um grande clarão, um relâmpago talvez, seguindo de um forte e ressoante estrondo que certamente poderia ser ouvido por todo o mundo. Houve gritos de horror, de dor, medo e uma sensação de solidão principiou-se em minh’alma. A bela paisagem celeste desaparecera por completo, dado lugar a um céu enegrecido que fora tomando conta do mundo lentamente com o passar do raio, como se o lindo dia de outrora fosse se descortinando, como um véu que se rasga ao meio e se desfaz. E eu apenas acompanhava perplexo a tudo... um evento que julguei sobrenatural. Rapidamente surgiu uma terrível serpente que se arrastava pelo céu denso e negro deixando um rastro de fogo e seu rastro foi queimando o véu da dama da noite e por trás dele foram surgindo estrelas reluzentes enquanto caía e queimava. Tão forte era o calor desse fogo que o sentia passear por todo o meu corpo até subir pelas pontas dos meus dedos. Estremeci, febril. Então olhei para as minhas mãos e vi surgir, um a um, seis anéis distintos. Foram aparecendo conforme olhava, três na mão esquerda e outros três na destra. Nesse momento, senti um forte sacolejão e despertei em meu quarto... assustado, procurei pelos anéis em minhas mãos, olhando para os lados, procurando sinais de realidade, de alguma sanidade... eles estavam lá. A paisagem sombria também se fazia presente... a serpente se esgueirava pelas paredes permitindo o surgimento de uma pintura por trás dos escombros do que restara da imagem enegrecida do céu. Procurava entender o que estava havendo... o que seriam aqueles anéis. Até que uma névoa rosada invadiu o quarto, preenchendo o ambiente e com ela uma silhueta angelical se formou a minha frente. O ser de aparência serena pôs-se a bailar conforme a melodia e foram surgindo novos elementos na pintura... seres que me contavam sobre os estranhos anéis. Eles me foram presenteados em épocas diferentes e tinham como ornamentos pedras preciosas de várias cores e formato. Cada um trazido por alguém ou algum ser diferente e que foram se apresentando e desvendando seus significados.

     No dedo mínimo da destra havia um anel com pedra azul e um pequeno menino, tão belo quanto um querubim, com olhos tão azuis quanto a pedra que me entregara, cabelos loiros e uma pele tão branca como a neve, apareceu fazendo estripulias com a brincar. Estava totalmente nu e dizia coisas como: ‘Os mais belos campos cobertos de lis ornam os mais importantes acontecimentos, como o azul da paz do teu espírito e o sorriso nos teus lábios que reflete o ardor das infindas paixões que hão de vir e cobrir de amor a toda a Terra’. E repentinamente, após dizer estas palavras, dando uma cambalhota tornou-se parte da pintura na parede. Me fitando como aqueles quadros cujo olhar nos acompanha para onde quer que sigamos.

     No dedo médio, o anel tinha uma pedra vermelha e vi descer do céu um dragão cuspindo fogo e com o fogo saía também duras palavras: ‘Vermelho o fogo vem do céu e a vastidão do cogumelo que consome aos homens surge implacável e devastador ao fundo da mais bela paisagem. A dor é maior que a inocência dos jovens e o desejo de vingança domina os corações mais humildes e cheios de paz, fugaz e pérfida é a paz quando não é buscada através do coração’! E tornou-se mais um elemento a completar a pintura da parede.

     O anel de pedra verde do dedo anelar surgia junto com um pequeno duende que sorria muito e entre uma cambalhota e outra dizia: ‘Contrasta com o fogo do dragão o verde claro das mais vastas e belas matas deste globo, onde tudo é vida, onde tudo renasce das cinzas dos vulcões e a esperança aguarda uma chance’. E num salto acrobático, único e ágil foi absorvido pela pintura.

     Juntamente com o forte reluzir do branco da pedra do anel do dedo mínimo da mão esquerda, a dama do lago ergueu-se majestosa em meio às claras águas: ‘A transparência da tua alma abraça as mais lindas damas e o desejo do teu coração as domina, fascina e seduz como a mim seduziu. A sensualidade do teu ser é arma mortal, dominando-a dominaras o mundo’! E o brilho do seu olhar tornou-se o fundo da pintura.

     Era de latão reluzente e sem nenhuma pedra o anel trazido pela prostituta oriental que o colocou no meu dedo anelar como uma aliança: ‘Apossa-te do meu amor e do meu corpo como a este anel! Cortejar-te-ei para todo o sempre, pois sou as musas que cruzarão os teus caminhos, que invadirão o teu coração e se entregarão aos teus caprichos e já circulam em volta de ti como tua língua em meus seios e meus olhos em suas órbitas orgasmaticamente enquanto me invades o ser’. E a pintura ganhou um tom mais sensual, erótico.

     Ainda restava um anel, rodeado de diamantes, refletindo as cores dos outros anéis. Mas ninguém apareceu. A escuridão, o medo e a solidão dominaram todos os cantos da Terra. Uma brisa suave balançava as cortinas e como se do nada viesse, até que apareceu uma ave cintilante a sobrevoar o quarto de um lado para outro. O bater de suas asas emitia um som forte, como um trovão. Ela percorreu todo o mundo e parou frente a minha mão, arrancando do meu dedo o anel, voou rumo à pintura, resgatou todos os que lá estavam e sumiu no horizonte dos meus sonhos. Comecei a chorar compulsivamente... queria de volta a pintura... queria todos lá, mas se foram, levados pela ave. O calor foi substituído por um intenso frio e despertei”.

     Já havia amanhecido. Dormira por quase vinte e quatro horas.. Ao despertar me dei conta que havia passado por um sonho dentro do sonho. Algo que nunca antes acontecera. Um evento singular. Tudo estava como antes. Não havia me levantado. Não estivera debruçado na janela. Minha jaqueta estava jogada em um canto sobre o coturno empoeirado e minha camiseta, com a estampa de uma banda de rock tinha marcas de batom e cheiro de whisky, marcas da noite anterior. Porém havia algo... uma coisa estava fora de cena... uma pequena caixa preta sobre a cômoda me chamou a atenção. Me aproximei, tomei-a em minhas mãos e ao abrir, lá estavam depositados todos os anéis que me queimaram os dedos durante toda a noite. Apenas o sexto anel não estava entre os outros e por fim percebi que o sexto anel significava apenas o equilíbrio entre o sonho e a realidade e surgiria todas as vezes que a capacidade de voltar dos sonhos estivesse ameaçada pelo meu inconsciente.

 
Augusto Komar
Enviado por Augusto Komar em 02/02/2013
Reeditado em 30/06/2020
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